César espera a cura

A quele dia de maio entregou a César Augusto Martin, 53 anos, uma certeza.

– Infelizmente, tenho que te dar essa notícia – disse o médico, visivelmente abalado.

Especulada havia meses, a suspeita agora se transformava em diagnóstico. Os tombos, os tropeços, a fala arrastada, as pernas rijas que resistiam em obedecer aos comandos, tudo se encaixou na descrição de uma das mais cruéis sentenças da medicina: esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença neurodegenerativa incurável que provoca a perda de neurônios motores, podendo levar à paralisia completa do corpo. Atordoado com a confirmação, o técnico em operação tentava conciliar a assimilação das primeiras orientações e o fluxo convulso dos pensamentos: “O que vou fazer? O que pretendo a partir de agora? Como vai ser o meu caso? Eu tinha a expectativa de viver muito... logo agora que me aposentei e queria aproveitar a vida... Até quando vou conseguir me dominar?”. Ao lado da mulher, a empresária Jacqueline Fuga Martin, 49 anos, o paciente chorou. O médico abraçou o casal.

– Um dia de cada vez – pediu o especialista.

Desde então, César encara uma dupla espera. Aguarda o pior, sabendo que o desenrolar da enfermidade é implacável e que ele pode estar na fase final da plenitude de sua independência, enquanto tem certeza de que a ciência avançará a tempo de salvá-lo.

– Você vê que as coisas estão acontecendo no seu corpo, é bem cristalino, dá para enxergar, mas procuro sempre driblar esses pensamentos. Eu vou mudar essa história, não me entrego. Para Deus, acho que nada é impossível.

De causa desconhecida, a ELA enfraquece e atrofia os músculos voluntários – dos braços, das pernas, da respiração e da garganta. O paciente cai, enfrenta dificuldade para falar e engolir, tem cãibras e percebe tremores involuntários, a chamada fasciculação. O diagnóstico é difícil porque não há um exame específico capaz de atestá-lo, dependendo da avaliação clínica do médico, que se “convence” a partir do conjunto de sintomas apresentados. A evolução do quadro não é abrupta, dá-se ao longo de meses, e costuma seguir um ritmo constante: nas pessoas em que a doença começou se intensificando rápido, a tendência é de que mantenha a velocidade acelerada. Nos pacientes com manifestação lenta dos sinais, a piora ocorre mais devagar.

– Na imensa maioria dos casos, a progressão é ininterrupta – destaca o neurologista Francisco Tellechea Rotta, especialista em doenças neuromusculares e membro fundador da Associação Regional de Esclerose Lateral Amiotrófica (Arela - RS).

O período médio de sobrevida após a constatação dos primeiros sintomas é de três anos e meio. Cerca de 20% dos doentes vivem mais do que cinco anos, e apenas 10% ultrapassam a marca de uma década. Remédio distribuído gratuitamente na rede pública, o Riluzol tem efeito modesto no aumento desse tempo. O tratamento costuma se concentrar no alívio das queixas: insônia, dores, excesso de salivação. A abordagem multidisciplinar, com fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo e nutricionista, melhora a qualidade de vida.

Enquanto ainda se acomodava na nova condição, César decidiu agir. Entusiasta de viagens e expedições off road, não suspendeu qualquer plano – pelo contrário, intensificou a agenda turística.

– Por enquanto, eu mando em mim. Vou queimar os cartuchos todos, não vou poupar nenhum, vou dar tiro para tudo que é lado.

Apesar da contrariedade da fisioterapeuta, temendo um desgaste excessivo, o aposentado embarcou com a mulher para um roteiro por Portugal e Espanha. O ritmo do passeio foi determinado pelas limitações: sentindo-se muito cansado, César precisava parar com frequência para restabelecer as forças e o fôlego. Ele e Jacqueline entraram em todas as igrejas que avistaram para acender velas e rezar. No retorno ao Brasil, o casal já se organizou para o próximo destino: Pantanal. Com César ao volante, eles rodaram um total de 5 mil quilômetros. Banharam-se em rios de água translúcida e foram acolhidos pelos colegas da excursão – o técnico revelou o diagnóstico ao grupo para justificar por que era tão lento nos trechos de caminhada. Em uma das trilhas, caiu de mau jeito e machucou o cotovelo, incidente que causou comoção. A atenção excessiva da guia turística, oferecendo arnica para aplicar na lesão, deixou-o irritado. César precisou de alguns instantes para assimilar o impacto, físico e emocional, antes de prosseguir. “Está aqui a doença”, pensou. “Não adianta eu me iludir.”

No apartamento onde mora no bairro Rio Branco, em Novo Hamburgo, o aposentado desfruta de uma rotina inédita depois de três décadas de trabalho no Polo Petroquímico, quando saía cedo e voltava à noite, cumprindo plantões em madrugadas, feriados e finais de semana. Cozinha diariamente para esperar Jacqueline e os dois filhos, Juliana, 28 anos, e Eduardo, 24, todos envolvidos com a loja de tecidos da família. Aos sábados e domingos, a conversa se estende após o almoço. Sempre unido, o quarteto revigorou os laços com o sobressalto recente.

– Você pode ter uma vida legal quando aceita a situação e não fica vivendo num drama. Claro, a gente fica triste, chora, mas a gente também está vivendo legal – comenta a mulher. – Tenho que ser forte para que a vida dele seja cada vez melhor. Não quero que me veja debulhada. O amor que sinto é forte demais para deixá-lo para baixo.

Juntos há 34 anos, César e Jacqueline tiveram de abandonar um dos passatempos prediletos. Por conta da dor e do desconforto nas pernas, ele não mais a acompanha nas caminhadas pela cidade. A empresária agora sai sozinha, percebendo que conhecidos com quem cruza pelo caminho estranham a ausência do companheiro. César se contenta em conduzir a shih tzu Olívia – os passos curtos da cadela em concordância com o vagar do dono – em uma volta na quadra. Expectativas e planos também estão sendo adaptados a dimensões mais restritas.

– Imaginava nós dois velhinhos, caminhando na beira da praia... Não fico mais pensando tão para a frente. Procurei ir tirando isso da minha cabeça – reconhece Jacqueline.

No computador, na barra que agrupa endereços de sites no navegador da internet, César mantém duas pastas lado a lado: “Expedições”, com links relativos a viagens, e “ELA”, que reúne páginas de entidades de apoio e centros de pesquisa. As consultas à primeira têm sido mais frequentes do que à segunda. Passado o choque inicial e a busca sôfrega por informações, o aposentado decidiu se afastar um pouco do tema. Mantém-se atento a novidades do noticiário, mas vem tentando se ocupar mais de outros assuntos.

Pelo mundo, estudos científicos começam a indicar caminhos promissores para desvendar a ELA. Uma brincadeira que se tornou viral na web em 2014 viabilizou uma fonte notável de recursos – envolvendo anônimos e famosos, o Desafio do Balde de Gelo consistia em derramar água gelada sobre a cabeça ou fazer uma doação em dinheiro a uma organização sem fins lucrativos que presta assistência a pacientes. Mais de US$ 100 milhões foram arrecadados e investidos em pesquisas como a que foi divulgada em julho pela revista Nature Genetics: a descoberta do gene Nek1, ligado à doença, pode levar ao desenvolvimento de novos tratamentos. Francisco Tellechea Rotta acredita que os próximos anos também terão achados importantes na área. Manter um estado de ânimo elevado, diz o neurologista, é fundamental para o paciente.

– Ele tem que ter planos e expectativas. Tem que lutar, não pode se entregar. Quem se entrega para a doença acaba tendo uma evolução pior. Ele tem que se preocupar em viver, apesar de todas as dificuldades e mudanças que isso vai trazer. A vida continua com as coisas boas e ruins – ressalta Rotta.

Enquanto a esclerose lateral amiotrófica avança, César viaja pelo mundo: “A doença surgiu com o alerta: não deixa para amanhã”

Deserto do Atacama

Marrocos

Namíbia

Fascinado por cenários inóspitos e dunas, César já esteve nos desertos do Atacama, quatro vezes, e da Namíbia. Visitar o Saara era um sonho de infância. Enquanto pesquisava se era possível assumir os custos da viagem, uma reflexão sobre a ELA foi determinante para se decidir pela compra das passagens:

– Por que não? Vou esperar o quê? A doença surgiu com o seguinte alerta: não deixa para amanhã, não deixa para o ano que vem o que você pode fazer hoje. Vamos!

Em setembro, César embarcou com os filhos e a nora para o Marrocos. Conheceram Casablanca, M’Hamid, Zagora, Merzouga, Erfoud. Entusiasta da fotografia, o aposentado aproveitou o distanciamento geográfico para se desvencilhar dos pensamentos negativos, concentrando-se nas belezas exóticas que se alternavam diante da sua lente – produziu 1,2 mil imagens em duas semanas. No amanhecer do dia 23, entrou em um balão para sobrevoar a imensidão de areia saariana nos arredores de Marrakesh. A esfera amarela subiu com suavidade, sem balançar. O silêncio do cenário ermo convidou a um momento de introspecção. Maravilhado, César se deu conta de que tinha mais a agradecer do que pedir. “A esperança vai morrer comigo”, pensou.

Em novembro, César e Jacqueline devem viajar à Bolívia para conhecer o Salar de Uyuni.