Porto Alegre

na era da barbárie

FOTO: Fernando Gomes, BD

Publicado em 08 de outubro de 2016

Cabeças decepadas, execução no aeroporto, mães mortas diante dos filhos, corpo atropelado e arrastado pelas ruas da Cidade Baixa: o crime explodiu não apenas em quantidade, mas também em brutalidade, e a selvageria transbordou para todos os lugares de Porto Alegre. Em meio à crise financeira do Estado e à guerra dos traficantes, como interromper essa rotina macabra?

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Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

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Ticiano Osório

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Diogo Perin

Após uma visita à casa da avó, Jeferson de Oliveira Lapuente saiu à rua no bairro Mario Quintana, zona norte de Porto Alegre. Era a noite de 16 de janeiro, um sábado, e fazia calor. Ele vestia uma camiseta amarela e uma bermuda escura com listras horizontais. Perto de uma praça, homens saltaram de um carro, apresentaram-se como policiais e forçaram o jovem de 22 anos a embarcar. Partiram em alta velocidade.

Não se sabe ao certo para onde Jeferson foi levado. O que se sabe é que ele tinha alguma relação com o grupo criminoso que domina o mercado de drogas na Bom Jesus, no Jardim Protásio Alves, na Vila Safira e no Mario Quintana. Sua captura, por um grupo rival da Vila Jardim, era mais um capítulo na guerra entre facções de traficantes que conflagrou a Capital, espalhando terror e mortes. Conforme alguns depoimentos, seria uma represália por um triplo assassinato ocorrido na manhã anterior.

O episódio acabou em homicídio, como de hábito. Jeferson foi esfaqueado várias vezes – na parte interior da coxa direita, na parte interior da coxa esquerda, junto à axila, em dois pontos das nádegas, abaixo de ambos os ombros. Mas no fim aconteceu algo diferente. Os assassinos cortaram fora a cabeça do rapaz, na altura da mandíbula. Os dentes inferiores ficaram ligados ao corpo. A arcada superior, ao crânio.

À 1h19min do dia 17 de janeiro, uma postagem no perfil de Jeferson no Facebook exibia fotos da cabeça decepada, cercada por pistolas, revólveres e um fuzil. Os bandidos devem tê-lo forçado a informar a senha da sua conta na rede social, antes de matá-lo, ou então usaram o celular dele para fotografar e fazer a publicação.

Pela manhã, o corpo foi encontrado na altura do número 10.100 da Avenida Protásio Alves, no bairro Mario Quintana, estirado no acostamento de terra batida. Estava enrolado em um cobertor, com uma mensagem escrita a tinta de spray – uma ameaça ao grupo criminoso com o qual Jeferson teria alguma ligação. A cabeça foi deixada a cinco quilômetros de distância, na Rua Dr. Murtinho, bairro Bom Jesus, no coração da zona controlada pela quadrilha. Estava dentro de uma caixa de papelão, com a face voltada para cima.

Desde o início do ano, mais de 1,1 mil pessoas foram vítimas de homicídio apenas na Região Metropolitana de Porto Alegre, mas a morte de Jeferson se reveste de um significado especial. Ela é representativa de um novo estágio da onda de violência que ensanguentou o Estado. Mostra que o crime não explodiu apenas em quantidade de ocorrências, mas também em brutalidade. Simboliza o ingresso em uma era de barbárie, impulsionada pela quase certeza da impunidade e pela banalização do homicídio. Matar se tornou tão comum, tão normal, tão sem consequências no Rio Grande do Sul, que em muitos casos já não é considerado suficiente. Para que signifique algo, é necessário adicionar crueldade.

– Pelo que percebo, com certeza há uma escalada na brutalidade. Essas coisas não eram comuns. Havia a morte em si, o homicídio. O fato de estarem cortando cabeça, cortando braço é para demonstrar a força, a depravação que eles têm. Não basta dar um disparo de arma de fogo e a vítima  falecer. Eles querem cortar e mostrar – afirma a delegada Luciana Smith, da 5ª Delegacia de Homicídios, responsável pela investigação do caso.

O sociólogo Rodrigo  de Azevedo, professor da PUCRS e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, avalia que a decapitação indica que a violência não está sendo usada apenas como forma de extermínio, mas também como uma “ferramenta simbólica”. É algo já visto em ações do Estado Islâmico e nas cruentas guerras do tráfico da Colômbia e do México.

– Algumas coisas que antes não eram aceitáveis acabam sendo aceitas, e há uma espetacularização disso – observa o professor.

O problema é que as decapitações pelo tráfico, inauguradas com Jeferson, não são uma realidade isolada, sem relação com o que acontece no resto da sociedade. São a faceta macabra de um fenômeno mais amplo, o transbordamento da selvageria para todas as áreas e para as mais variadas vertentes da criminalidade, transformando em rotina o que era inimaginável. Um exemplo pode ser encontrado na alta dos latrocínios, os roubos acompanhados de morte. Em 2012, ocorreram 17 casos na Capital.

A partir de então, o patamar se elevou: 25 em 2013, 25 em 2014 e 23 em 2015. Em apenas nove meses de 2016, já são 28 mortes.

 

Execução no aeroporto

A cultura da impunidade provoca cenas de terror que revelam o transbordamento da violência, não mais restrita à periferia: no final da manhã de 19 de setembro, no dia em que completava 18 anos, Marlon Roldão Soares foi assassinado com mais de 15 tiros no saguão do Terminal 2 do Salgado Filho.

Reprodução de câmera de segurança

Ladrões e traficantes estão

assassinando mais mulheres

Ocrescimento dos latrocínios é revelador do vale-tudo da violência porque, segundo especialistas, a um assaltante não interessaria matar. Ele quer sair com o fruto do roubo, sem maiores complicações. Em geral, só mataria quando algo dá errado ou quando se sente ameaçado pela vítima. O expressivo aumento na quantidade de latrocínios pode significar, portanto, que esses freios se esgarçaram. Os bandidos estão mais propensos a assassinar, pelo menor motivo ou mesmo sem ele.

Essa hipótese parece ser reforçada por uma peculiaridade revelada nas estatísticas. Tradicionalmente, as mulheres representam uma parcela reduzida das vítimas de latrocínio (no ano passado, apenas 4,3% do total), provavelmente porque o bandido não enxerga nelas um risco e não vê necessidade de atirar. Mas em 2016 houve uma reviravolta nos números. Dos mortos em assalto até agora em Porto Alegre, 26% são mulheres.

O latrocínio de maior repercussão deste ano, o de número 25, escancarou de tal maneira o triunfo da barbárie que provocou a demissão do secretário estadual da Segurança, Wantuir Jacini, e motivou um pedido de socorro ao governo federal, na forma do envio de agentes da Força Nacional. Ocorreu na tarde de 25 de agosto, uma quinta-feira, nas imediações do Colégio Dom Bosco, um tradicional estabelecimento privado no bairro Higienópolis. Enquanto aguardava no carro o filho que estava na escola, a vendedora Cristine Fonseca Fagundes foi abordada por assaltantes que queriam levar seu celular. Não esboçou reação, mas levou um tiro na cabeça. Morreu diante da filha adolescente, que também estava no automóvel.

– A morte já não acontece porque o assaltante está em risco, é porque ele se sente com poder. Essa é a virada que os latrocínios deste ano demonstram. O aumento da violência não é só quantitativo, também há uma piora qualitativa. Cria-se a cultura de que matar é banal. A impunidade faz com que o homicida vá cometendo mais crimes e crimes cada vez mais bárbaros. Essa é a espiral da violência – observa Alberto Kopittke, secretário de Segurança Pública de Canoas e estudioso do assunto.

Ainda que os latrocínios envolvendo mulheres estejam em alta, é outro o principal fenômeno relacionado às mortes femininas. Nos últimos anos, cada vez mais, elas passaram a ser vitimadas pelo crime organizado. Os homicídios passionais deslocaram-se para segundo plano – no ano passado, por exemplo, representaram 31,6% dos assassinatos de mulheres, contra 45,5% de óbitos resultantes de acertos de contas e execuções do tráfico. Em 2016, a tendência se acentuou, com uma profusão de vítimas.

A lista de execuções e chacinas é infindável. Em março, em uma rua da Vila Cruzeiro, três gerações de uma mesma família foram eliminadas por um atirador. Morreram  Paula Cristina Assis Medeiros, 40 anos, e sua filha Lauren Morjana Medeiros da Silva, 16 anos. A adolescente estava grávida de oito meses. O bebê não sobreviveu.

"No tráfico, havia um certo tabu (de matar mulheres), uma certa respeitabilidade, ligada à noção da mulher como propriedade de alguém. A respeitabilidade dessa propriedade alheia, pelo acirramento das disputas do tráfico, diminuiu."

 

Emil Sobottka

Professor de ciências criminais

No mesmo mês, no bairro Agronomia, Elisandra Alves dos Santos, 22 anos, foi morta com quatro tiros de espingarda em um crime relacionado à guerra das drogas. Em maio, em Canoas, foi a vez de Cinara Gobbe Lagranha, 45 anos, ser assassinada por homens que supostamente estariam à procura de seu filho.

A morte veio em dose tripla no mês de agosto. Pamela Vasconcelos Correa, 18 anos, Adriana Machado Cruz, 22 anos, e Karina Santos Marques, 23 anos, originárias do bairro Mario Quintana, foram retiradas de dentro de uma casa em Alvorada e mortas com tiros na cabeça, em plena rua. A suspeita é de que o crime tenha relação com a execução de um casal encontrado dentro do porta-malas de um carro em Porto Alegre, ligada a disputas do tráfico.

Uma razão para o crescimento dessas mortes é a maior participação feminina no tráfico. Kopittke observa que a Lei de Drogas de 2006, ao aumentar as penas mínimas, estimulou o encarceramento. Com mais homens na prisão, espaços começaram a ser ocupados por mulheres.

– Elas foram empurradas para o crime, para manter o negócio que aquele grupo familiar tinha. E aí começaram a entrar em uma área de risco, a serem vítimas da guerra – diz.

Mas também parece existir uma relação com a brutalização da violência. Com a explosão da ferocidade, as mulheres simplesmente deixaram de ser poupadas. Casos recentes sugerem que várias delas foram mortas por ter relação com traficantes, não com o tráfico. Foram executadas porque estavam no lugar errado, para dar um recado, por pura maldade. Não parece haver outras explicações possíveis para o assassinato brutal da adolescente Rafinha Silva, 17 anos, ocorrido em 27 de setembro entre a Cidade Baixa e o Menino Deus, uma zona de classe média na parte central da Capital. Depois de dispararem pelo menos 17 tiros contra a garota, a maioria no rosto, os assassinos passaram de carro por cima do corpo dela, arrastando-o por mais de 60 metros. Não se sabe por que Rafinha despertou tal ódio.

Para o sociólogo Emil Sobottka, professor do programa de pós-graduação em ciências criminais da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), mais mulheres estão sendo assassinadas porque uma espécie de limite foi ultrapassado.

– Havia um certo tabu, uma certa respeitabilidade, mas não no sentido do discurso típico da classe média. No tráfico, essa respeitabilidade está ligada à noção da mulher como propriedade de alguém. A respeitabilidade dessa propriedade alheia, pelo acirramento das disputas do tráfico, diminuiu. É um tabu que está caindo – analisa.

Como os casos mencionados evidenciam, o tráfico está no centro do processo que mergulhou o Rio Grande do Sul na selvageria, mas houve ajuda do Estado e da sociedade. As atuais facções, que controlam vastas áreas na Região Metropolitana e dominam os presídios, começaram como gangues modestas, envolvidas em um outro confronto na periferia.

Esses bandos se matavam entre si, nas disputas por território, mas os crimes não eram elucidados pela polícia, não chamavam atenção no noticiário e não geravam interesse da população dos bairros mais abastados. A mortandade era encarada como uma realidade distante, às vezes até com um certo deleite: afinal, seriam bandidos exterminando uns aos outros.

 

Três mulheres mortas,

três gerações eliminadas

 

Empurradas para o crime, mulheres começaram a ser, cada vez mais, vítimas da guerra do tráfico de drogas. Em março, em uma rua da Vila Cruzeiro,

um atirador matou Paula Cristina Assis Medeiros, 40 anos, e sua filha Lauren Morjana Medeiros da Silva, 16, que estava grávida de oito meses.

FOTO: Tadeu Vilani, BD

Gangues com armamento pesado matam inocentes com balas perdidas

Essa indiferença gerou um monstro. As gangues se transformaram em facções, e os conflitos viraram guerra. Para enfrentar o inimigo, os exércitos do tráfico lançaram-se a uma corrida armamentista. Apreensões policiais realizadas nos últimos três anos mostraram que o tradicional revólver 38 perdeu espaço para pistolas, submetralhadoras, carabinas e fuzis. Nas mãos de uma multidão de soldados da droga, as armas começaram a ser utilizadas para todo tipo de crimes.

– O que está acontecendo é que esse pessoal começou a ir às zonas mais aquinhoadas da cidade para praticar latrocínios. Estamos vendo agora o que já era corriqueiro nas vilas havia muito tempo – observar Sobottka.

O sociólogo Rodrigo de Azevedo, da PUCRS, entende que a atual política de segurança estadual colaborou para isso. Uma marca dos quase dois anos de governo José Ivo Sartori, avalia o especialista, foi priorizar o combate às drogas, gerando um superencarceramento – o número de presos saltou de 28 mil para 34 mil no período. Azevedo afirma que essa estratégia não teve impacto no mercado de entorpecentes, mas ateou fogo à guerra entre as diferentes facções, à medida que forçou a renovação dos comandos, o que ocorreu pela via da violência.

– O aumento do encarceramento deu maiores possibilidades para esses grupos arregimentarem novos membros dentro do sistema prisional. Quando saem, essas pessoas praticam crimes, até porque estão endividadas e precisam fazer o pagamento. Na verdade, a política de segurança aumenta a probabilidade de crimes violentos, também porque a maior pressão sobre o mercado da droga faz integrantes do tráfico migrarem para outras atividades, como o roubo de carros. Isso tem acontecido, e esses roubos têm gerado latrocínios. Na minha opinião, essa política de priorizar ações contra os mercados ilegais é equivocada. Acirra disputa por território, faz os grupos se armarem mais, produz superencarceramento, fortalece as facções e intensifica a violência na rua – diz Azevedo, que propõe formar uma coalizão voltada ao combate dos homicídios.

 

A política de priorizar ações contra o tráfico de drogas é equivocada. Acirra disputa por território, faz os grupos se armarem mais, produz superencarceramento, fortalece as facções e intensifica a violência na rua. A prisão de homicidas tem impacto na redução de homicídios, enquanto a prisão de um traficante não tem impacto algum sobre a venda de drogas.

 

Rodrigo de Azevedo

Sociólogo

A pressão sobre o tráfico, com a prisão dos integrantes mais experientes, rejuvenesceu os membros das facções – e bandidos mais jovens tendem a ter menos autocontrole e a ser mais violentos. Possivelmente não seja acaso que, nos latrocínios ocorridos na Capital, a idade média dos autores tenha caído de 26,5 anos, em 2012, para 19,6 anos nos primeiros oito meses de 2016.

A combinação entre o acirramento na guerra do tráfico e a proliferação das armas também gerou uma outra face cruel da onda de intensificação da violência: as mortes de inocentes atingidos por balas perdidas. Para moradores de zonas conflagradas, ficar no meio do tiroteio tornou-se uma possibilidade real, e com frequência as vítimas são crianças. Houve pelo menos sete mortes desse tipo no ano passado em Porto Alegre, algumas vezes envolvendo meninos e meninas que estavam brincando na rua, em pleno dia. Um dos casos mais chocantes ocorreu em abril. Durante um confronto em que foram disparadas mais de cem balas no bairro Vila Nova, um tiro de fuzil atravessou a janela de alumínio e atingiu a cabeça de Laura Machado, sete anos, que dormia em um beliche. O fuzil é uma arma para conflitos bélicos: desfere até 700 tiros por minuto e, dependendo do modelo, chega a custar R$ 40 mil.

– As facções estão em guerra, e o armamento pesado é para isso. Não há um front demarcado, com lados bem definidos. São confrontos urbanos e, no meio do tiroteio, sobra para todos. Bala perdida é, entre aspas, normal numa situação dessas. E como são armamentos pesados, as residências não têm resistência. Por isso, as pessoas são atingidas dentro de suas casas. A ocorrência desses fatos demonstra que há autoridades paralelas muito fortes, que se sentem com o poder de vida e de morte – observa Emil Sobottka.

 

Enfraquecimento da polícia é combustível para o crime

FOTO: Félix Zucco, BD

Demissão do secretário e pedido de socorro

O latrocínio de maior repercussão em 2016 foi o de Cristine Fonseca Fagundes, 44 anos, morta quando buscava o filho no Colégio Dom Bosco, zona norte da Capital. Provocou a queda do secretário estadual da Segurança, Wantuir Jacini, e teve como consequência o envio, pelo governo federal, de agentes da Força Nacional.

Asituação também se agravou no atual governo, afirmam especialistas, por causa da política de corte de despesas, que levou à eliminação de horas extras, e pelo parcelamento de salários, que produziu aposentadorias e desligamentos em massa nas polícias, reduzindo ainda mais efetivos que já eram minguados. Entre o começo da administração Sartori, em janeiro passado, e maio deste ano, só a Brigada Militar perdeu 2,8 mil agentes. Na prática, o Rio Grande do Sul ficou ainda mais despoliciado do que já era. Os criminosos sentiram que o Estado encontrava-se à sua mercê, que o risco de ser apanhado era mínimo, que podiam matar sem se incomodar. Entregaram-se à selvageria.

– Há um certo equilíbrio entre o esforço normal da polícia e os crimes. Se esse equilíbrio é rompido em desfavor da polícia, se ela enfraquece a sua atuação, o criminoso percebe rapidamente. Aumenta a sensação de impunidade, a ideia de que se está livre para praticar crimes. E nessa situação há a tendência para exagerar, para exacerbar a violência, para cometer crimes bizarros como as decapitações. É como a situação em que há uma greve da polícia e ocorrem saques. Ninguém aproveita para roubar arroz e feijão, vai roubar tela plana – afirma o ex-secretário nacional de segurança pública José Vicente da Silva Filho, professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da PM de São Paulo.

O efeito dos erros é como um incêndio, se alastra muito rápido, mas depois é lento para apagar. Os criminosos percebem rapidamente quando a policia dá uma paradinha. Aumenta o crime de maneira geral e começam a aparecer os comportamentos mais violentos.

 

José Vicente da Silva Filho

Professor do Centro de Altos Estudos

de Segurança da PM de São Paulo

Silva Filho cita vários exemplos de como um enfraquecimento da polícia, mesmo que momentâneo, tem como efeito gerar escalada no crime. Na Grande Salvador (BA), uma greve de policiais em abril de 2015 fez os homicídios dispararem 500%. Houve 35 mortes em apenas um dia. O efeito já foi verificado mesmo em sociedades ricas e de baixa criminalidade. Em 1969, os policiais de Montreal, no Canadá, decretaram greve. Na mesma noite, o crime explodiu na cidade. Seis bancos foram roubados, mais de 100 lojas sofreram saques, houve 12 incêndios de proporções consideráveis, uma pessoa foi morta e o prejuízo com depredações chegou a US$ 3 milhões. Depois de 16 horas, uma lei foi aprovada às pressas, obrigando os policiais a voltarem ao serviço. Se um único dia sem polícia é capaz de soltar tantos monstros, qual a consequência de meses ou anos de precarização das forças de segurança?

– Esse fenômeno já aconteceu em vários lugares. Em 2014, houve um grande movimento nos Estados Unidos criticando os policiais por perseguir negros. Por causa disso, a polícia parou de abordar pessoas. Em consequência, os homicídios cresceram 17% em 2015 nas 50 maiores cidades americanas, o que não acontecia havia décadas – responde Silva Filho.

O especialista afirma que tal afrouxamento policial é mensurável por meio de dados concretos, como número de prisões, de inquéritos, de armas apreendidas e de veículos fiscalizados. No Rio Grande do Sul,  indicadores básicos disponíveis sugerem uma deterioração dos serviços. Levando em conta o primeiro semestre de cada ano, as prisões em flagrante da Brigada Militar diminuíram de 53.405 em 2013 para 34.196 em 2015. No mesmo período, as operações de policiamento caíram de 105.570 para 54.081 – um corte quase pela metade. O número de inquéritos policiais abertos tem apresentado tendência de evolução, chegando a 118.997 no primeiro semestre deste ano, mas muito abaixo dos 227.764 de 2007.

– O efeito dos erros é como um incêndio, se alastra muito rápido, mas depois é lento para apagar. Os criminosos percebem rapidamente quando a polícia dá uma paradinha. Aumenta o crime de maneira geral e começam a aparecer os comportamentos mais violentos. Se o Rio Grande do Sul não se mobilizar já, corre o risco de ficar cinco anos nesse estado de violência sem solução – prevê Silva Filho.

Estado deveria tratar homicídios como prioridade máxima, dizem especialistas

Explosão da ferocidade

A execução de Rafinha Silva, 17 anos, entre os bairros Cidade Baixa e Menino Deus chocou a população e aumentou a sensação de pânico na cidade: após dispararem pelo menos 17 tiros contra a adolescente, a maioria no rosto, os assassinos passaram de carro por cima do corpo dela, arrastando-o por mais de 60 metros.

FOTO: Fernando Gomes, BD

Odescalabro da criminalidade no Rio Grande do Sul coincide com um processo de relativo controle da violência em outros Estados brasileiros. Essa é uma tendência que vem do final da década de 1990, quando São Paulo e Rio de Janeiro experimentaram práticas como a integração operacional das polícias civil e militar – um pilar dos programas que deram certo país afora, mas que o Rio Grande do Sul sequer se atreve a discutir.

A partir dali, estabeleceu-se um modelo de intervenção que já foi adotado com bons resultados em mais de uma dezena de Estados enfronhados em crises na segurança pública. Uma medida essencial do pacote é tratar como prioridade o enfrentamento ao homicídio. Outra consiste na produção de dados detalhados sobre as ocorrências, com informações sobre horários e locais dos diferentes tipos de crimes, depois utilizadas pela autoridades para organizar suas ações e pela população para cobrar resultados.

Especialistas criticam o Rio Grande do Sul por não ter acompanhado essa tendência. Sobottka sustenta que o Estado está na contramão do resto do país. Azevedo afirma que não há uma política de segurança com estratégia clara, levando a um desperdício dos recursos existentes. Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, garante que o problema não é falta de dinheiro:

– A máquina pública gaúcha passou ao largo de todas as mudanças que foram colocadas em prática e deram certo em outros Estados. Não se modernizou nem mesmo com soluções propostas ainda nos anos 1990. Nos últimos 20 anos, todos os lugares que adotaram práticas de integração operacional das polícias conseguiram ter um maior controle da dinâmica criminal. Nos 11 Estados em que há programas de redução dos homicídios, conseguiu-se reduzir o crime e fazer a população se sentir mais segura, porque focar na violência letal cria um círculo virtuoso que atinge todos os demais crimes. O Estado deve ser mais inteligente do que o crime, deve usar os recursos disponíveis com inteligência. Não dá para ficar na fórmula mágica mais gente, mais dinheiro, mais viaturas. O país mostrou que existem práticas de sobra. Você com certeza precisa de mais dinheiro, mais gente, mas até para saber onde usar o dinheiro e onde empregar as pessoas, você precisa empreender uma forte reforma de gestão. Falta dinheiro? Falta no país todo. Mas se o Rio Grande do Sul realizasse o que os outros Estados já realizaram, conseguiria fazer frente a parte do problema.

De todas as medidas, o combate ao homicídio é encarado como a mais importante para conter a barbárie. Ainda que o Rio Grande do Sul tenha ampliado o número de delegacias especializadas (em 2013, elas saltaram de duas para seis em Porto Alegre), os estudiosos da área entendem que o Estado está longe de fazer seu dever de casa nessa área. Lembram que os presídios gaúchos estão superlotados, mas não de assassinos. Conforme dados da subcomissão do sistema prisional da Assembleia Legislativa, só

4,6% dos apenados foram encarcerados por assassinato. Somando os latrocínios, o índice fica em torno de 10%. Ou seja, em um Estado que se aproxima dos 2,5 mil assassinatos ao ano, 90% dos presidiários estão recolhidos por crimes menos graves, principalmente tráfico.

O tamanho da impunidade em relação ao crime letal não está muito claro. No Brasil, em geral, estima-se que só 5% dos homicídios sejam esclarecidos. Um dado fornecido pelo Ministério Público indicava que o Rio Grande do Sul teria um índice de 8% no começo da década. Neste ano, no entanto, a Polícia Civil divulgou ter solucionado perto de 80% dos casos ocorridos no Estado durante o primeiro quadrimestre. Essa taxa seria bem superior a de países desenvolvidos como os Estados Unidos, mas pode ser enganosa: não significa que a polícia tenha conseguido provar a autoria dos crimes que considera esclarecidos. No final de 2013, quando realizou um levantamento completo sobre as ocorrências de janeiro daquele ano nas mais violentas cidades gaúchas, ZH encontrou um quadro preocupante. A polícia considerava resolvidos 55% dos casos, com investigações concluídas e o nome do suspeito indicado. Em quase metade desses casos, no entanto, o MP considerou que não havia provas e não realizou a denúncia à Justiça. No fim, dos 88 registrados ao longo do mês estudado, só 27 chegaram ao tribunal – um índice de 30,7%.

A resposta da polícia costuma vir nos casos de maior repercussão, como latrocínios ou crimes que envolvem vítimas de classes sociais mais favorecidas. As mortes do tráfico na periferia não merecem a mesma atenção. E é aí que se gera a cultura da impunidade que leva a situações quase inacreditáveis, como a execução de um jovem de 18 anos, ocorrida em 19 de setembro, em pleno saguão do Aeroporto Salgado Filho e amplamente documentada por câmeras de segurança.

Como a gente nunca apanha os homicidas, essa onda vai se espalhando para toda a sociedade. Superlotamos o presídio com qualquer preso, menos o homicida. Já que há poucas vagas, é mais importante ainda que a gente prenda os piores.

 

Alberto Kopittke

Secretário de Segurança de Canoas

– A gente achou que os crimes eram só lá na periferia. Era costume dizer: “Ah, eles que estão se matando. É um bandido a menos”. Mas como a gente nunca apanha o homicida, essa onda vai se espalhando e vai chegando em todos os pontos da sociedade – alerta Kopittke. – Os grupos vão disputando para ver quem é mais maligno. A espiral vai aumentando, não só em quantidade, mas de forma cada vez mais macabra, atingindo outros grupos sociais. Por isso precisamos mudar a concepção e investigar o homicídio de qualquer pessoa da mesma forma, com a mesma prioridade. Precisamos prender as pessoas certas pelo crime certo, porque quem é preso por homicídio com uma boa investigação vai ficar preso mais de 10, 15 anos. Hoje estamos superlotando o presídio com qualquer preso, menos o homicida. Já que temos poucas vagas, e isso é real, é mais importante ainda que a gente prenda os piores.

Estabelecer essa prioridade é fundamental porque o homicídio é justamente o tipo de crime para o qual a prisão tem um efeito de contenção, sustenta o sociólogo Rodrigo de Azevedo. Estudos e exemplos mostram que, quando a sociedade prende o homicida (não raro envolvido com uma organização criminosa), as pessoas pensam duas vezes antes de matar e ocorre uma redução na quantidade de casos. Trata-se de uma modalidade em que o cálculo do risco é muito presente. O mesmo não ocorre no tráfico em si, no qual o encarceramento é encarado como parte do negócio.

– Deveria ser dada prioridade à questão dos homicídios, com ampla apuração dos casos, não importa quem seja a vítima. Esse criminoso é que dever estar encarcerado. A prisão de homicidas tem impacto na redução de homicídios, enquanto a prisão de um traficante não tem impacto algum sobre a venda de drogas. Precisamos dar uma prioridade institucional que envolva vários órgãos, não só a polícia, mas também o MP e o Judiciário. Os praticantes devem ser responsabilizados rapidamente. Não pode levar cinco, seis, sete anos para que aconteça um julgamento – afirma Azevedo.

Essa visão é compartilhada pelos diferentes especialistas em seguranças ouvidos por ZH, mas não é consensual na cúpula da segurança gaúcha. Diretor do Departamento Regional de Polícia de Porto Alegre, o delegado Cléber Ferreira tem 45 anos de experiência e é considerado uma referência pelos colegas, mas tem uma visão bastante distinta quanto a diagnóstico e remédio. Para ele, o homicídio é um crime imprevisível, passional, em que o perpetrador “está num bar bebendo, toma uma cachaça a mais e acaba matando”.

Se os dados dos últimos meses mostram que cresceu a proporção de mulheres vítimas de latrocínio, interpreta o delegado, isso é porque elas estão mais presentes nas ruas, “dirigindo carro, pilotando moto, comandando empresas”. Ferreira reconhece que a brutalidade e a violência se intensificaram, mas atribui isso a fatores culturais. Cita os filmes e os videogames violentos – como se eles só existissem nas sociedades violentas.

– Hoje o delinquente não quer só cometer o delito. Além de assaltar, ele ainda bate, no início e no fim do assalto. Ele quer realmente te machucar. Isso é a banalização da violência, através dos jogos eletrônicos, dos filmes, das novelas. Tem desestruturação familiar, falta de princípios, valores, desemprego, falência na educação. Tudo isso vai desaguar na criminalidade – acredita.

A proposta de Ferreira é direcionar esforços para os crimes considerados menores, como furto de celulares:

– O cobertor é tão curto que a gente acaba dando prioridade para esses casos de grande repercussão. Aquele roubo que acontece na rua, que acontece no estabelecimento comercial, nós esquecemos. Daí a pessoa vai tendo sucesso nisso e vai migrando. Deixa de assaltar o cidadão na rua e passa a assaltar um carro, um banco, uma empresa. Vai sendo cada vez mais ousado, porque está rendendo. Daqui a pouco, está matando. A polícia investigando esses pequenos delitos que acontecem cotidianamente, a sensação de impunidade acaba. A orientação nossa é para que os delegados se dediquem a isso com mais intensidade. É nos distritos, que atendem diariamente a comunidade, onde está faltando uma maior atenção.

 

O colapso do sistema prisional e a “desumanização da elite”

FOTO: André Ávila, BD

Ação polêmica

Em abril, após tiroteio, PMs mataram quatro assaltantes em frente ao Hospital Cristo Redentor, na zona norte de Porto Alegre. Vídeos mostraram que uma das mortes teve características de execução, o que gerou repercussão até no Exterior. Policiais foram condecorados pelo governo estadual.

Um outro gatilho da perversidade que passou a caracterizar os crimes é o sistema prisional. Não apenas porque é lá que apenados de todos os tipos são arregimentados pelas facções e formados na tão falada “escola do crime”, mas também porque as condições subumanas a que são submetidos nas cadeias gaúchas representam a maior demonstração de que a vida humana não tem valor em nossa sociedade.

– Sinalizamos muito claramente com nosso sistema prisional que a vida não tem importância. A pessoa sai do sistema prisional mais propensa a tirar a vida de outro. Se a sociedade mostra para mim que a minha vida não tem valor, porque vou respeitar a dos outros? Na luta, vou tentar atirar primeiro. A valorização da vida só está presente no discurso da classe média, e sempre pensando em si mesma – analisa o sociólogo Emil Sobottka.

As condições vergonhosas no sistema penitenciário são reveladoras de uma faceta incômoda da sociedade, que adiciona tempero ao caldo da selvageria: a banalização da violência está entranhada mesmo naqueles que se consideram cidadãos de bem. Sobottka enxerga isso no discurso cada vez mais presente do “prende, arrebenta e mata” e na tendência de andar armado como forma de autodefesa. Para ele, é um processo de “desumanização da elite”.

Somando a impunidade com a cultura de que a vida vale pouco e com um Estado que faz uso dessa violência, aí vira um faroeste, uma disputa para ver quem vai atirar primeiro. É o caldo perfeito para que a perversidade passe a fazer parte do cotidiano.

 

Renato Sérgio de Lima

Vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Isso se verificou em abril, quando vieram a público vídeos que documentavam uma ação em que PMs mataram quatro assaltantes na zona norte de Porto Alegre. Uma das mortes teve características de execução. Um criminoso que estava estirado no chão, desarmado, foi fuzilado por um dos brigadianos. No Exterior, a ação policial teve repercussão no noticiário e chocou pela forma como a polícia gaúcha agiu, mas por aqui obteve um amplo apoio da população.

E também do governo, que condecorou os PMs envolvidos.

Além de revelar que a sociedade está sintonizada com a lógica do olho por olho, o episódio mostrou que as próprias forças policiais podem colaborar para o clima de barbárie.

– Somando a impunidade com a cultura de que a vida vale pouco e com um Estado que faz uso dessa violência, aí vira um faroeste, uma disputa para ver quem vai atirar primeiro. É o caldo de cultura perfeito para que a perversidade passe a fazer parte do cotidiano – observa Renato Sérgio de Lima.

É esse cenário complexo e multifatorial que Kopittke descreve como “uma tempestade perfeita”, que forneceu combustível para que um grupo de bandidos se sentisse à vontade para decapitar Jeferson Lapuente na noite de 16 de janeiro deste ano. Depois desse primeiro caso, ocorreram pelo menos mais sete decapitações na Região Metropolitana – seis em Porto Alegre e uma em Viamão, a pouca distância do bairro Mario Quintana, onde a maioria dos casos foi registrada. Acredita-se que há um nono episódio – uma foto da cabeça foi reconhecida pela família, mas a vítima nunca foi encontrada e ainda é dada como desaparecida. Em algumas situações, houve esquartejamento. Em quase todas, os restos mortais foram deixados em áreas públicas, para que todo mundo pudesse ver. Em um caso recente, os criminosos filmaram a decapitação, feita a golpes de facão e martelo, e divulgaram as imagens na comunidade. Apesar das características em comum, a polícia gaúcha investiga as ocorrências como homicídios isolados.

Até o momento, não há uma única pessoa presa pelas decapitações.

FOTO: Arquivo Pessoal

Tratamento desumano

Esta foto, descreveu o colunista David Coimbra, “é um flagrante de um dos corredores do Presídio Central. Os homens estão ali porque as celas se encontram lotadas. Eles tentam dormir. Os que estão de pé esperam sua vez de descansar. É preciso fazer revezamento, simplesmente porque não há espaço para todos. Assim são as noites no Presídio Central”.

ações para

frear a violência

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Humanizar os presídios

O superlotado sistema prisional gaúcho submete os apenados a condições subumanas. Para parte da sociedade, isso não é um problema. A ideia é que os bandidos merecem ser tratados da pior maneira. Mas o resultado é a amplificação da violência. Não apenas porque, em lugar de ressocializar, as cadeias precárias fortalecem as facções, mas também porque passam a mensagem de que a vida não tem valor. Os criminosos deixam o sistema mais propensos a matar.

– Contrariamente à posição majoritária na sociedade, acho que precisamos de uma política de humanização do sistema penitenciário, com nenhum preso além da capacidade dos presídio. Lá dentro, a autoridade tem de ser do Estado, e não da facção – diz o sociólogo Emil Sobottka.

Humanizar, segundo o sociólogo, significa oferecer condições tais que até mesmo o governador possa passar uma noite no presídio.

– Se não for assim, o presídio não está valorizando o ser humano – defende.

Especialistas afirmam ainda que o Estado está prendendo muito, mas não está prendendo certo. Desde 2007, a população carcerária do Estado saltou de 24,9 mil para 34,4 mil, mas não conseguiu reduzir o crime. Pelo contrário, a violência explodiu. A explicação é que está superlotando as penitenciárias de pequenos traficantes, permitindo que as facções se organizem e se fortaleçam a partir dos presídios. Seria necessário centrar fogo no encarceramento de homicidas — muitos deles, vale frisar, ligados ao tráfico. Se faltam recursos, dizem, é preciso estabelecer prioridades.

– A crise financeira não pode ser desculpa para não se ter um plano. Tem de traçar um plano, fazer escolhas – observa Kopittke.

Combater os homicídios

Os programas bem sucedidos de combate à violência, no Brasil e no Exterior, tiveram como pilar fundamental o combate ao homicídio. O princípio é investigar todos os assassinatos, produzir inquéritos bem fundamentados e garantir que os bandidos mais perigosos estejam encarcerados. As sociedades que adotaram essa política, passando a mensagem de que matar não será tolerado, conseguiram reduzir as mortes. Podem não controlar o tráfico, mas controlam a violência do tráfico. Em Recife, por exemplo, o programa Pacto Pela Vida conseguiu diminiur em 34% os crimes letais no período de quatro anos.

Alberto Kopittke, secretário de Segurança de Canoas, sugere um aumento das equipes especializadas, formadas por um delegado, investigadores, papiloscopistas (especialistas em impressões digitais) e peritos:

– Hoje temos 10 equipes, mas são 2,7 mil homicídios por ano no Estado. O cálculo que deveríamos buscar é de no máximo um homicídio por semana por equipe.

Nos EUA, diz Kopittke, cada equipe investiga de 12 a 20 homicídios por ano. A taxa de casos solucionados é de cerca de 65%.

Controlar as armas

Em 1992, São Paulo registrou 4,9 mil homicídios. Sete anos depois, o número estava em 13 mil. Analisando os dados, as autoridades perceberam: no período, haviam despencado as apreensões de armas pela polícia. Uma das medidas para reverter a situação foi reforçar as apreensões. Atualmente, as mortes estão na faixa de 4 mil por ano em São Paulo, a menor taxa do país.

Uma estratégia é premiar o policial, com algum valor em dinheiro, por cada arma de fogo que ele apreender. Kopittke entende que essa política poderia ser adotada por meio de uma parceria com os municípios.

No Rio Grande do Sul, policiais civis, policiais militares e agentes penitenciários atuam de forma independente e desarticulada. Para os especialistas, isso significa desperdiçar recursos. Integrar não quer dizer fundir as forças, um tabu no Estado, mas fazer com que trabalhem de forma coordenada.

– O Rio Grande do Sul não consegue integrar, não consegue estabelecer metas comuns de intervenção. Isso foi feito com bons resultados em Pernambuco, no Ceará, no Rio, em São Paulo e em Minas, mas o Rio Grande do Sul foge da discussão. Quando falo de integrar a gestão, significa integração de recursos, troca de informações, gerenciamento da inteligência e compartilhamento de dados – explica Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Integrar forças de segurança

Produção de dados

Para combater de forma eficiente a criminalidade, as forças de segurança precisam basear seu trabalho em dados estatísticos. Especialistas afirmam que esse é um dos pecados do Rio Grande do Sul. Em Estados como São Paulo, as autoridades têm acesso instantâneo a que tipo de crimes ocorre em cada trecho de rua e em que horários, o que permite dar uma resposta racional à realidade.

– Os bandidos são muito previsíveis, agem sempre no mesmo lugar. Não adianta ter estatística criminal, precisa do indicador de qualquer hora em qualquer dia. O Rio Grande do Sul só precisa copiar o sistema que já existe em São Paulo ou em Minas. São sistemas públicos, desenvolvidos aqui. É só o gasto de implantar. Sem esse instrumento básico, a segurança gaúcha é como um carro sem velocímetro – afirma José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública.

Adotar políticas de prevenção

As medidas citadas demonstraram, nos locais onde foram adotadas, capacidade para produzir resultado em curto prazo. São ideais para conseguir uma virada em situações de crise. Mas, para obter resultados mais profundos e consistentes, é preciso pensar no longo prazo. E aí entram as políticas de prevenção, que abrangem diferentes esferas governamentais e incluem qualificação de espaços públicos, regularização fundiária, geração de renda, educação, saúde.

Um dos princípios dessa abordagem é que o jovem das regiões mais conflagradas consiga enxergar uma alternativa que não o crime. Chicago (EUA) é uma referência. Em 2001, a cidade implantou o projeto Becoming a Man, focado em estudantes de 12 a 16 anos com maior risco de envolvimento no crime, seja por características pessoais, familiares ou sociais. Eles participam de encontros semanais ao longo do ano escolar, durante os quais trabalham valores como integridade, autodeterminação e expressão da raiva. Entre 2013 e 2015, o programa reduziu em 50% as prisões por crimes violentos e em 35% as prisões em geral, além de melhorar o desempenho escolar.

– É preciso identificar pessoas em risco e criar vínculos. Quanto antes for feito, maior a possibilidade de sucesso. O que ninguém diz no Brasil é que o Tolerância Zero, de Nova York, fez isso. Trabalhou na prevenção e reduziu em 20% a população prisional ao longo de 10 anos. Eles detinham mais jovens, mas esse jovens eram encaminhados para projetos de prevenção. Em média, a prevenção custa 10% da repressão e é 70% mais efetiva – refere Alberto Kopittke.

Reocupar territórios

As grandes cidades do Rio Grande do Sul perderam território para as facções criminosas. Vários bairros e regiões estão sob controle do tráfico e só recebem representantes do Estado para buscar cadáveres. Essas áreas conflagradas são focos de violência e fonte de crimes que depois se espalham pelas cidades. Especialistas afirmam que é preciso que o poder público tenha uma política de reocupação, o que pode acontecer nos moldes das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), com raízes na bem-sucedida experiência colombiana. Os agentes de segurança devem entrar e ficar.

– Não é só entrar e depois sair. Precisa entrar, ficar lá dentro e criar um programa de aproximação com a população, gerar confiança, retomando o modelo do policiamento comunitário  –  diz Renato Sérgio de Lima.