O caminho do diálogo

 

Orabino ortodoxo Hanan Schlesinger, 59 anos, lembra do dia em que saiu de casa para, pela primeira vez, cruzar a barreira simbólica que há três décadas o separava de seus vizinhos. Na região onde vive, na Cisjordânia, existem nove palestinos para cada israelense. Mas até aquele momento, dois anos e meio atrás, nunca havia conversado com nenhum deles. Quando disse que estava indo se encontrar com um grupo árabe, a esposa tentou demovê-lo.

– Você está louco? Vão te matar! – assustou-se.

Hanan persistiu. Caminhou por 20 minutos com o coração palpitando de ansiedade, rumo ao encontro promovido por um movimento que tentava aproximar os dois povos para o diálogo. Como seria recebido? Corria algum perigo? Deveria desistir? As perguntas pipocavam na sua mente. Quando chegou lá, espantou-se ao ver um grupo com 15 palestinos e 15 israelenses reunidos. Até que uma mulher árabe, coberta de lenços, se aproximou.

– Não acredito que estou falando com você – reagiu o rabino.

– E eu não acredito que estou falando com um colono, porque não falamos com colonos – ela respondeu.

E assim Hanan foi percebendo que aquela gente, afinal, não era assim tão assustadora como ele pensava. Começava a entender que também existia uma história palestina:

– Eu sou judeu, colono, sionista, e sinto esta terra como toda minha. Não há um sentimento mais forte para um judeu do que voltar a esta terra. Mas, pela primeira vez, escutava que minha presença aqui era um prejuízo para eles. Fiquei nervoso de ver que eu era a causa do sofrimento dos outros, fui pra casa cheio de reflexões.

Um novo mundo se abria na sua mente. Mais tarde, criou coragem e digitou no Google “ocupação israelense na Palestina”. Descobriu muitos sites falando mal dos colonos.

– Entendi que a minha verdade era relativa. E que os palestinos também têm suas verdades, seus direitos, sua humanidade, sua identidade. A Cabala fala em rodar o mundo e encontrar parte da verdade, que cada um tem parte da verdade. E, se a verdade é algo relativo, existe a mentira? Uma mentira é uma verdade parcial que se disfarça de verdade total, absoluta. Em todos os lados, alguém tem parte da verdade. Mas, quando penso que tenho a verdade absoluta, é o momento em que estou mentindo. Entendi que ser colono, sionista, é uma parte da verdade. E, se não quero viver na mentira, tenho que conter dentro de mim as outras verdades. E tenho que fazer algo junto com meus novos amigos palestinos – conta.

A consciência fez com que o rabino se tornasse um ativista, e hoje é um dos líderes da ONG Roots (Raízes), trabalhando pela paz. Em dois anos, o movimento já atingiu 13 mil pessoas, em encontros sempre com 50% de participantes judeus e 50% palestinos. O idealizador do projeto é o palestino Ali Abu Awwad, 44 anos, filho de uma líder do Fatah. Assim como o rabino teve de rever seus (pré)conceitos, Awwad também precisou repensar os seus antes de abraçar o trabalho.

– Sempre me senti vítima, joguei grande quantidade de pedras nos israelenses, fui membro ativo do Fatah. Tinha muito ressentimento. Nunca me senti delinquente ou criminoso. Não me importava se golpeava um israelense, me sentia feliz. Sempre pensei que eu era um líder pela liberdade – recorda Awwad, que cresceu como refugiado.

Até que acabou preso pelos israelenses durante a primeira intifada, iniciada em 1987. Nos quatro anos de confinamento, começou a estudar sobre não-violência. Anos mais tarde, quando já estava em liberdade, veio a segunda intifada, em 2000. Seu irmão foi morto por soldados de Israel, e o ressentimento cresceu.

– Todo o tempo pensava em vingança, queria que o outro desaparecesse. É um ódio que te consome por dentro. Mas quantos você vai matar? Não me convenci que fazer justiça é matar o outro, nada vai trazer de volta o meu irmão – compreendeu.

Aprofundando-se em leituras e conhecendo outras experiências de coexistência, como o Círculo de Pais – que aproxima famílias palestinas e israelenses que perderam filhos no conflito –, decidiu que era preciso fazer mais. E passou a dedicar a vida para estimular o diálogo que parecia impossível.

– Todos pensam que o outro é o vilão do filme. É difícil aceitar os argumentos do outro, a gente não quer escutar. É um conflito com duas vítimas, mas ficam competindo para ver quem é mais vítima. Aqui (na ONG) a gente aprende a conhecer as raízes do outro – narra.

A estratégia é que cada participante leve um amigo, e os encontros são realizados nas próprias casas. Os organizadores calculam que, de cada grupo, aproximadamente 20% dos presentes saem sensibilizados, dispostos a rever conceitos. Uma semente de transformação.

– Fazer a paz dói, mas vai custar mais barato do que o preço da guerra – acredita Awwad.

 

Disputa nacional, religiosa e econômica

 

Os projetos de coexistência entre árabes e israelenses mostram que é possível construir novas ideias e relações, mas poucos ainda parecem dispostos a abraçá-las.

Num terreno inconstante de fés absolutas e leis relativas, um dos poucos consensos que ligam Israel e Palestina na atualidade é o pessimismo em relação a um acordo de paz. O fracasso na implementação dos acordos de Oslo, de 1993, e o agravamento do conflito na última década congelaram a esperança de entendimento, afastando as duas pontas. Do lado de Israel, o governo de Benjamin Netanyahu se alinha cada vez mais à direita conservadora, com apoio de grupos religiosos ortodoxos, e estimula a proliferação de assentamentos israelenses nos territórios palestinos. De outro, o Hamas segue no poder em Gaza, lutando contra Israel e também rompido com a Autoridade Nacional Palestina, que controla os territórios palestinos na Cisjordânia. A intransigência de lá e cá dificulta o diálogo.

– Hoje não há tratativas. Não há paz e não vai haver paz – desilude-se Moty Cristal, especialista em negociações, que orientou equipes de Israel em conferências com palestinos na década de 1990 e no início dos anos 2000.

Ele observa que o conflito árabe-israelense é o único no mundo que tem três características simultâneas: ser uma disputa nacional (por territórios e recursos), religiosa (judaísmo X islamismo) e econômica (pela diferença social crescente que separa israelenses e palestinos).

– Nos primeiros 40 anos, a questão religiosa não era fundamental, era um conflito nacional por Estado, com refugiados, mas em 2001, a partir dos ataques de 11 de setembro, o que havia embaixo da superfície emergiu – analisa.

Em vez de esperar uma saída para o conflito, Moty considera o quadro semelhante ao de uma doença crônica, com a qual árabes e israelenses precisam conviver. Com o agravamento das tensões nos países do entorno, como Síria e Iraque, a instabilidade aumentou, embaralhando ainda mais o cenário:

– Os últimos seis anos foram muito ruins para os valores liberais com as guerras no entorno, uma bagunça tão grande que alimentou a ideia de “não vamos fazer nada”, porque os riscos não encorajam.

Formado em história e filho de um sobrevivente do Holocausto, o diplomata de carreira Dori Goren, que assumiu recentemente o cargo de cônsul-geral de Israel em São Paulo, é outro pouco esperançoso. Ele observa que a comunidade internacional frequentemente propõe soluções que cabem no papel, mas não se aplicam à prática da região. Um dos pontos de discórdia é Jerusalém, reivindicada como capital por Israel e Palestina – e que ele considera “indivisível”. Na Cisjordânia, os assentamentos judeus estariam tão incorporados ao território que parece cada vez mais difícil removê-los.

– Os palestinos não aceitam a ideia de um Estado judeu, e se eu fosse palestino talvez não aceitasse também. Não vejo solução, mas às vezes a solução aparece de forma inimaginável – torce Dori, lembrando que, na Terra Santa, não é a racionalidade que pauta as relações:

– Quem não acredita em milagre no Oriente Médio não é realista.

Para os palestinos, não há começo de conversa possível sem a retirada das colônias israelenses em seus territórios. A questão é considerada prioritária pelo governo da Autoridade Nacional Palestina, presidido por Mahmoud Abbas. Embora o traçado original de 1948 previsse que Israel ocuparia 53% do território, hoje o país detém 78% – e os 22% da área que permanecem sob controle palestino estão permeados por colônias judaicas.

– A fonte da violência é a ocupação. É claro que os palestinos vão reagir. O que aconteceria se Israel fosse ocupado à força? Quando eu sento no meu escritório para trabalhar, olho pela minha janela e o que vejo? Um assentamento judeu (o de Psagot, ao lado de Ramallah). Isso é uma agressão. Nós temos o direito de dizer: não aceitamos isso – diz o ministro da Cultura da Palestina, Ehab Bessaiso.

Na sua avaliação, o único caminho para resolver o impasse seria a mobilização da comunidade internacional para pressionar Israel a devolver os territórios ocupados. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, tem feito reiteradas críticas à política de expansão da colonização israelense.

– Estas iniciativas provocativas só vão aumentar a tensão e minar qualquer perspectiva de solução política – disse ele, durante um debate no Conselho de Segurança sobre o Oriente Médio em janeiro.

Apesar dos apelos, Israel anunciou recentemente a expansão das colônias na Cisjordânia. Aos críticos, apoiadores de Netanyahu respondem que este é um problema menor – e que a retirada de todos os assentamentos israelenses de Gaza, em 2005, não garantiu avanços no processo de paz.

– As dezenas de declarações das Nações Unidas contra o Estado de Israel surpreendem, quando não há declaração contra a Síria, não falam sobre direitos humanos no Líbano, no Egito. Este é um país que busca a paz, mas não podemos correr riscos, temos que nos defender quando somos atacados pelos terroristas. Estou de acordo que exista um Estado palestino se for um Estado desarmado – argumenta a deputada Anat Berko, do partido governista Likud.

Na visão do conselheiro do Hamas Terrer Nuno, colocar a culpa na organização é uma estratégia de Israel para fugir das negociações:

– Quando sentaram para conversar, Netanyahu disse para Mahmoud Abbas que ele tinha que escolher entre o Hamas e o processo de paz. Agora,  Netanyahu diz que pararam o processo de paz porque há divisão entre Hamas e Fatah. Então não sabemos se eles querem reconciliação ou não. Sobre o que eles querem negociar? Eles recusam todas as coisas, não há parceria, e colocam a culpa no Hamas.

E os atentados cometidos pelo Hamas contra Israel? Para Nuno, seriam “estratégias de resistência” válidas para reagir à invasão de Israel e às políticas israelenses:

– Israel está transformando todos os palestinos em resistentes, este governo radical está fazendo isso. Quando a vida e a morte são a mesma coisa, e as pessoas escolhem a morte, isso tem um significado. Recentemente, duas pessoas jovens pegaram em armas, matando israelenses nas ruas. Eles sabiam que seriam mortos, mas a morte ou a vida para eles é igual. Isso significa que não há futuro, porque a política de Israel destrói tudo, e estamos pagando o preço. A guerra não é mais entre facções palestinas e o exército de Israel, mas entre pessoas comuns.

O professor Sérgio Gryn, que dá cursos de comunicação para a paz no Instituto Internacional de Liderança da Histadrut, observa que há sempre mais de uma narrativa para entender o que acontece ali. Enquanto os palestinos sentem que sua terra foi invadida, os judeus falam em retorno, porque entendem que estão voltando à terra prometida por Deus. Compreender os diferentes pontos de vista pode ser um primeiro passo para o diálogo.

– Onde está a verdade? Nem com um, nem com o outro, um pouco lá e um pouco cá. Para chegar à paz é preciso um exercício de empatia, entender por que o outro pensa diferente, mas não são muitos os que conseguem se colocar no lugar do outro – diz.

Na organização Roots, o rabino Hanan Schlesinger e o ativista palestino Ali Abu Awwad seguem trabalhando diariamente para isso, numa área da Cisjordânia que é considerada “o coração do conflito”.

– Se a paz conseguir crescer aqui, vai crescer mais facilmente em outros lugares – anseiam, cada um em seu idioma.

 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Pontos da discórdia

Reconhecimento: o governo de Israel exige que o país seja reconhecido como Estado Nacional do povo Judeu, assim como os palestinos querem um Estado Nacional do povo palestino. A exigência israelense é rejeitada mesmo por palestinos que já reconhecem Israel, sendo considerada ofensiva a árabes-israelenses.

Jerusalém: Israel reivindica soberania sobre a cidade inteira e a considera sua Capital. Os palestinos querem Jerusalém oriental como Capital do Estado independente que pleiteiam.  A ONU defende  o caráter binacional.

Ocupação: ilegais segundo uma série de resoluções da ONU, os assentamentos judaicos na Cisjordânia são vistos como um obstáculo à paz. O atual governo israelense, de inclinação à direita, incentiva as colônias. Estima-se que haja mais de 500 mil colonos judeus na Cisjordânia e em Jerusalém oriental.

Refugiados palestinos: os palestinos dizem que os refugiados (5 milhões, segundo a ONU) têm o direito de voltar ao que é hoje Israel – ideia rejeitada pelo  país.

Fronteiras: os palestinos exigem que seu futuro Estado seja delimitado pelas fronteiras anteriores a à Guerra dos Seis Dias, em 1967. Israel quer discutir o traçado.

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