Publicado em 11 de março de 2016

No Rio Grande do Sul dos cartões-postais, regiões como a dos Campos de Cima da Serra são apresentadas como terra de desfiladeiros deslumbrantes, comida gaúcha típica e passeios refrescantes em riachos de montanha ponteados por belas cachoeiras. O que o viajante desconhece é a via-crúcis a percorrer para desfrutar dessas atrações, seja pela péssima qualidade dos caminhos que levam aos parques onde essas belezas estão expostas, seja pela infraestrutura turística — inexistente. Até fome e sede você corre risco de passar. Na região dos Aparados, por exemplo, o Parque Estadual do Tainhas e o Parque Nacional da Serra Geral não têm água encanada nem lanchonete. Sequer uma bodega.

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Humberto Trezzi

humberto.trezzi@zerohora.com.br

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Omar Freitas

omar.freitas@zerohora.com.br

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Ticiano Osório

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Diogo Perin

Tainhas, o parque fantasma

Ovisitante que chega ao Parque Estadual do Tainhas corre o risco de jamais saber que esteve ali. Não existem placas indicando que se trata de área natural preservada, e é incomum avistar guardas circulando pelos 6.654 hectares de matas e pradarias nativas situadas entre os municípios de Jaquirana, São Francisco de Paula e Cambará do Sul. Criado em 1975, o belo reduto ambiental é desconhecido e inacessível. Quase um fantasma, traçado em torno do Rio Tainhas, marcado por cachoeiras e lajeados e habitado por animais silvestres. No caminho, pode-se topar com carcarás e corujas.

É um privilégio para pouquíssimo gaúchos. O parque permanece fechado a visitas desde que foi criado, há 41 anos. Exceções são abertas para cientistas e estudantes, que, com permissão por escrito do governo estadual, têm acesso à sede da área ambiental, pernoitam nas cabanas usadas pelos guardas e percorrem santuários da fauna e da flora. Se algum desavisado pede para ingressar de improviso na sede do parque, será instruído a dar meia-volta em uma estrada que, por si só, representa uma aventura.

Esburacado e repleto de rochas afiadas, capazes de perfurar pneus, o caminho que corta o Parque Estadual de Tainhas é tomado por caminhões-boiadeiros ou carregados de toras, escassas caminhonetes e algum que outro carro cujo motorista esteja disposto a quebrar a suspensão. Em dois pontos, a estrada corta o Rio Tainhas — no Passo do S e no Passo da Ilha. Nos dois locais, a estrada termina dentro da água. O veículo tem de entrar no rio e percorrê-lo em cima de pedras, por centenas de metros. Um descuido pode levar o viajante correnteza abaixo.

A atendente do Centro de Informações Turísticas de Cambará do Sul é sincera quando questionada ao telefone se é possível visitar o parque:

— Ah, fosse o senhor, eu não ia... A estrada é ruim e agora piorou, com os buracos dos caminhões depois das chuvas. Acho que o senhor não consegue passar. Não tem água, banheiro, nada. É um parque selvagem.

Selvagem e escondido. As placas de sinalização das duas principais rodovias da região, a ERS-110 e a ERS-020, não mencionam a existência do Parque Estadual do Tainhas (algumas indicam Passo do S e Passo da Ilha). Por que não mencionam? Porque duas foram furtadas e não repostas. Outras deveriam ter sido instaladas em 2010 pelo Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer), junto com a chegada do asfalto na ERS-110. Nunca viram a luz do dia.

Dos 6 mil hectares de terras desapropriadas para criação da área preservada, apenas cerca de 10% foram indenizados. Os outros donos de terras ainda esperam dinheiro do governo. O resultado é uma briga jurídica de décadas, e, assim, gado e árvores exóticas (como o pinheiro americano) ainda ocupam uma área que deveria ser só para espécies nativas. Enfim, muita coisa conspira contra o parque.

— Organizamos passeios, mas não há condições de abrir de forma generalizada — afirma o biólogo Daniel Slomp, gestor do Parque Estadual do Tainhas.

Slomp diz que a ideia é, no futuro, abrir licitação para que empresas privadas banquem a infraestrutura de banheiros, lancherias e trilhas turísticas. Tudo supervisionado pelo Estado.

O curioso é que uma estrutura assim já existe. No Passo da Ilha, encravado dentro do parque, um camping particular aluga barracas, vende comida e disponibiliza banheiros, a quem pagar. O camping tem mais de 40 anos, é anterior ao parque, e por isso recebeu permissão especial para continuar funcionando. Não está sob jurisdição estatal, mas é um bom exemplo de como tudo poderia funcionar.

No belo Parque Estadual do Tainhas, o rio cobre a estrada de terra. O carro tem de andar na água, sob risco de ser levado pela correnteza

Um embate ideológico

Essas precariedades não são exceção, mas rotina — e não apenas na Serra. Das 29 principais unidades de conservação ambiental protegidas por lei no Rio Grande do Sul (divididas em Reservas Biológicas, Áreas de Proteção Ambiental, Estações Ecológicas, Refúgios de Vida Silvestre, Parques Estaduais e Parques Federais), apenas 11 estão abertas à visitação cotidiana, sobremaneira parques e estações ecológicas. Abrem, mas, em sua maioria, não apresentam as mínimas condições para receber turistas.

Das duas funções básicas dos parques estaduais — proteção e visitação —, só a primeira é executada a contento e, mesmo assim, com carência de funcionários para tanta área a cuidar. Quase toda a população está alheia a tesouros da natureza.

Quais gaúchos já ouviram falar do Parque Estadual do Espinilho, na Fronteira Oeste, assim chamado por ser um dos raros locais a abrigar essa árvore espinhenta e rara? Ou então dos pinheirais do Parque Estadual do Espigão Alto e da Estação Ecológica de Aracuri-Esmeralda, na encosta da Serra? São áreas espetaculares, mas sem qualquer aparato para visitantes, frequentadas de forma esporádica por turmas escolares e, de maneira sistemática, apenas por especialistas em vida selvagem, como biólogos e zoólogos.

Há razões para isso. Muitos ambientalistas arrepiam-se à menção da palavra turismo. Imaginam bandos de visitantes expondo a perigos o habitat de animais em extinção — uma ameaça que realmente existe, se a área de preservação não for bem gerenciada. Outros temem macular a pureza do bioma com atrativos comerciais, como lojas, lanchonetes ou veículos cheios de humanos e sua trilha de dejetos característicos dos passeios ao ar livre.

— Existe essa visão de que a natureza não deve ser monetizada e que qualquer ação privada será danosa ao meio ambiente. Muitos ambientalistas ainda acreditam que não se deve intervir na natureza, o que acaba por incentivar que avancemos justamente na direção contrária da questão ambiental, pois afastamos as pessoas do contato com essa natureza. Perdemos a oportunidade de sensibilizá-las e engajá-las em sua conservação, além de ampliarmos o impacto nos locais que recebem visitantes e não têm infraestrutura adequada — critica Michel Bregolin, coordenador do Curso de Turismo da Universidade de Caxias do Sul (UCS), montanhista e especialista em Educação Ambiental, para quem o Brasil como um todo precisa rever sua relação com a natureza: — Vivemos em um país que ocupa o primeiro lugar no mundo em recursos naturais, somos um gigante de biodiversidade, mas não aprendemos a valorizar isso. Seguimos uma lógica de que o que é abundante tem pouco valor. Disso vem a pouca pressão política da sociedade sobre os governantes em relação a priorização das ações na área de ambiente, incluídos os parques.

Entre os que combatem com veemência a "privatização dos parques" está um dos pioneiros da militância ambiental no Estado, Caio Lustosa. Em recente audiência pública, ele queixou-se das terceirizações de unidades ambientais cogitadas pelo governo José Ivo Sartori.

— Onde esse pessoal andava quando fizemos, nos anos 1970, uma dura peleia para estruturar o Parque Itapuã? Essa ideia vem de agentes do capital colocados dentro do governo. É preciso barrar a iniciativa privada em unidades de conservação — defendeu Lustosa em pronunciamento na Assembleia Legislativa.

Além do embate ideológico, há empecilhos jurídicos. Os governos estadual e federal não pagaram grande parte das indenizações devidas em decorrência da desapropriação de terras particulares para construir os parques. Somente após a imissão de posse (documento no qual a área é considerada governamental) é possível a instalação de infraestrutura, esclarece o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pelas unidades de conservação ambiental do governo federal.

Aventura na Serra Geral

Dentre as paisagens que marcam as encostas da serra gaúcha, é provável que o cânion Fortaleza, no município de Cambará do Sul, seja a mais impressionante. A muralha de pedras situada a 950 metros de altitude se debruça sobre desfiladeiros verdejantes e abismos de tirar o fôlego. Uma versão brasileira, em tamanho menor, do Grand Canyon americano.

As comparações terminam aí. O conjunto de penhascos cortados pelo Rio Colorado, nos Estados Unidos, é dotado de logística completa para turismo, com acessos fáceis, ônibus pagos pelo ingresso no parque, restaurantes. O Parque Nacional da Serra Geral, onde fica o cânion Fortaleza, não tem luz, água encanada, lancheria. O único sanitário disponível fica a 5,5 quilômetros dos despenhadeiros, na cabana dos vigilantes, na entrada do parque.

O turista pode seguir três trilhas. A mais curta leva à borda dos desfiladeiros. Uma outra, mais demorada, percorre a borda até o ponto alto do cânion, que lembra uma muralha com vista para o mar (daí o nome Fortaleza). A terceira é para a Pedra do Segredo, que se equilibra de forma incrível sobre outra pedra, bem menor. Nesse caminho, dá para tomar banho em rios lajeados, cachoeiras e poços naturais e observar graxains (uma espécie de raposa brasileira). Com sorte, aparecem veados-campeiros e até o raro puma (o leão-baio, como chamam na região).

No Parque Nacional da Serra Geral, não existem guias, cercas, cordas ou avisos que impeçam o turista de cair nos despenhadeiros

 

Sem infraestrutura, sem hotel, o viajante é obrigado a encerrar a visita no entardecer. Compreensível, mas aí o turista tem de encarar uma viagem de volta até a cidade de Cambará do Sul. Um percurso desaconselhável de dia, quanto mais à noite. Dos 22 quilômetros que separam Cambará do Sul da entrada do parque, seis são sem asfalto. Dentro do parque, os outros 5,5 quilômetros de trilhas são ainda piores. Caso o veículo estrague, não há borracharia ou oficina num raio de dezenas de quilômetros. E o celular não funciona na área do parque.

Como não existe transporte coletivo até o parque da Serra Geral e, também, com medo de danificar os carros, muitos motoristas optam por alugar táxis. Dirceu Velho Santos, 62 anos, cobra R$ 80 por casal para ir de Cambará até o cânion Fortaleza (ou R$ 100, para quatro pessoas). O carro vive na oficina, para consertar a suspensão.

Patrulhamento existe, pelo menos. O Instituto Chico Mendes (que controla os parques) informa que há cinco postos de vigilância armada entre os parques da Serra Geral e Aparados da Serra, que operam em regime de 24 horas. Eles se comunicam via rádio e realizam ações de patrulha, inclusive noturnas, de tempos em tempos. O número de funcionários está dentro do previsto e sua qualificação profissional é maior do que a exigida.

Guardas, contudo, não garantem a sobrevivência dos turistas nessa área de 30 mil hectares criada em 1992. Não há guias que orientem os visitantes, nem cercas ou cordas que os impeçam de cair nos despenhadeiros.

— O lugar é lindo, mas o risco de queda é grande — resume o comerciante Marcelo Mosmann, de Parobé, que conheceu o cânion Fortaleza no início de fevereiro.

O advogado Israel Pacheco e sua mulher, a professora Daniela, foram de Venâncio Aires para Cambará e ficaram extasiados com o parque da Serra Geral. Só que se dizem "chocados" com a falta de estrutura.

— Com tanta serraria na região, não conseguiram nem umas tábuas doadas para fazer uma cerca e evitar que as pessoas caiam no abismo? — questiona Daniela. — E cesto de lixo, por que não existe?

A indignação do casal aumenta ao saber que há planos do governo federal de cobrar ingresso dos visitantes.

— O que oferecem que justifique um ingresso? Se alguém passar mal, nem banheiro ou papel higiênico tem, quanto mais auxílio médico — reclama Israel.

A involução do Aparados da Serra

Segurança é um item presente no mais conhecido desfiladeiro do Rio Grande do Sul, o Itaimbezinho, no Parque Nacional de Aparados da Serra. A borda do cânion é toda demarcada, cercada e pontilhada de avisos sobre o perigo. Acidentes motivaram a proibição de descidas, escaladas, rapel e outros esportes de aventura.

O Aparados da Serra conta com um atrativo que faz o visitante esquecer precariedades. São as gralhas azuis, aves em situação vulnerável, que fazem do parque sua morada. Elas brincam com os turistas e chegam a posar para fotos.

O parque foi fundado em 1959 — a julgar pela estrada de terra, continuamos em 1959. Há décadas é prometido o asfaltamento entre Cambará do Sul e o cânion. Dos 18 quilômetros entre a cidade e o parque, apenas um está asfaltado. O visitante que vence a buraqueira precisa estar precavido: não há lanchonete, bar ou restaurante dentro do parque ou nas imediações.

O cenário já foi mais convidativo. Uma pousada, a Paradouro, ocupava a beira dos penhascos, onde hoje está o Centro de Visitações Turísticas. Também era permitido acampar por ali. A pousada foi fechada no início dos anos 1990, e a permissão para camping, revogada. O governo federal considerou que a presença noturna de turistas e também os riscos de incêndio decorrentes de acampamentos colocavam em risco os 13 mil hectares do Aparados. Biólogos e ambientalistas em geral apoiaram a medida, temendo que a rica e rara fauna local, que inclui pumas e veados, fosse incomodada ou até caçada pelos turistas.

Depois disso, pouco se incrementou. Uma lancheria chegou a ser aberta, mediante convênio com a iniciativa privada, mas fechou há alguns anos. Há o já citado Centro de Visitações, que tem  banheiros e uma exposição permanente com fotos de animais selvagens, dos pinheirais que caracterizam a flora e do próprio Itaimbezinho, em dias claros ou sob neblina. Funcionários também estão disponíveis para contar a história do parque.

A advogada curitibana Salete Nogarotto, que esteve pela primeira vez no Itaimbezinho em fevereiro, acompanhada do marido Henrique Cavalin, sugere aperfeiçoamentos.

— Poderiam pelo menos colocar uma plataforma sobre o abismo, de preferência transparente, como no Grand Canyon norte-americano. Aí o visitante teria uma ideia melhor da paisagem.

 

Parque Nacional de Aparados da Serra já teve pousada e permitia camping. Hoje, o lanche mais perto fica a 10km de distância

O eterno abre-e-fecha

de Itapuã

Écompreensível que algumas unidades de conservação sejam refratárias ao turismo. Não é compreensível que os parques abertos à visitação sejam refratários aos turistas. Conforme especialistas consultados por Zero Hora, de todos os parques gaúchos, apenas o do Caracol, em Canela, tem comida à venda (e artesanato). Os demais exigem passeios rápidos e acanhados, já que muitos sequer têm banheiros. Ficam nos sonhos atividades como esportes radicais, lojinhas com souvenires, estandes de culinária típica e linhas turísticas de ônibus ou barco.

As deficiências talvez expliquem por que o Aparados recebe em média 70 mil visitas por ano — em termos regionais, um bom número —, enquanto as Cataratas, em Foz do Iguaçu (PR), atrai 21 vezes mais: 1,5 milhão de turistas. O parque paranaense tem vários restaurantes, linhas-turismo, passeios guiados e esportes de aventura, além de contar com um hotel.

Uma cena recente registrada no Parque Estadual de Itapuã, em Viamão, situado a 50 minutos de

Porto Alegre, expõe outro problema. No início de fevereiro, os 11 funcionários que fazem manutenção e limpeza entraram em greve, por falta de pagamento do mês de janeiro. Desde então, quatro pessoas se revezavam para limpar, cobrar ingressos e cuidar da área de 5,5 mil hectares.

Não funcionou e, há duas semanas, o parque foi fechado à visitação. Sem prazo para reabrir. Será feita uma licitação para contratar uma nova empresa de manutenção e limpeza.

Desde 2002, Parque Estadual de Itapuã já fechou pelo menos sete vezes por conta de paralisações de funcionários

Poderia ser apenas um contratempo, não fosse o fato de que as paralisações de servidores são crônicas desde que o parque foi reestruturado, em 2002. Pelo menos sete vezes os serviços foram interrompidos e, com isso, a unidade de conservação teve de suspender visitas. Em 2014, o Itapuã chegou a ficar dois meses fechado.

Itapuã é uma região de morros, vegetação baixa e praias de águas límpidas, encravada na confluência do Guaíba com a Lagoa dos Patos. Por ali, passeiam bandos de aves e podem ser vistas lontras. Nos anos 1970 e 1980, a área foi ocupada por veranistas, que ali instalaram centenas de casas. O parque foi criado em 1973, e as moradias passaram a ser proibidas. Centenas de proprietários, em vez de serem indenizados, receberam títulos precatórios – e até agora lutam na Justiça para modificar os valores a serem recebidos. Como seus donos não arredaram pé, o Estado, em 1988, adotou uma solução drástica: mandou demolir as casas de veraneio.

Em 1991, o governo estadual tomou outra medida radical: fechou o parque à visitação, até recuperá-lo da degradação praticada pelos veranistas. Itapuã só foi reaberto para visitas em 2002, cheio de restrições: é proibido a prática de esportes como futebol, o uso de caiaques, barcos a motor e o pernoite (não há camping).

O objetivo dos administradores é louvável: que os animais não sejam importunados e a vegetação se mantenha intocada. O problema é que as atividades que deveriam ser ofertadas ao público não funcionam direito. Quando foi reaberto, 14 anos atrás, o parque previa turismo em três praias: das Pombas, Pedreira e Praia de Fora. Apenas a praia das Pombas permitiu ingresso do público. A Pedreira ficou fechada a maior parte do tempo – neste verão está aberta –, e a Praia de Fora não abre, praticamente desde 2002. Por quê? Porque não tem energia. Um gerador eólico montado ali estragou, em 2012 – e o local permanece sem luz nem bombeamento de água. Os banheiros e as churrasqueiras estão tomados pelo mato. A única lancheria de todo o parque, nas Pombas, parou de funcionar há mais de quatro anos. Não há serviço de guias turísticos.

Uma última curiosidade: os 57 quilômetros entre Porto Alegre e o parque são percorridos por asfalto até quase a entrada. Por um desses mistérios da burocracia, o asfalto deixa de existir cerca de três quilômetros antes do parque. Cede lugar a uma estrada de terra, esburacada e empedrada. Mais um obstáculo ao turismo.

Turvo: exuberante

e convidativo

Avisita ao Parque Estadual do Turvo, na fronteira do território gaúcho com a Argentina, dá uma lufada de otimismo. O primeiro parque criado no Rio Grande do Sul, em 1947, é uma maravilha ao alcance dos turistas — e até que é bem estruturado. Guarda-parques percorrem o dia inteiro os 15 quilômetros da estrada que corta a área. Eles também patrulham o Rio Uruguai em barcos a motor, recolhendo redes colocadas clandestinamente por pescadores e, por vezes, prendendo caçadores em flagrante.

Mediante pagamento de ingresso, o turista pode utilizar uma rede de quiosques com churrasqueira, banheiros limpos, água encanada e luz elétrica. Tudo às margens do rio. A estrada interna, apesar do chão batido, permite a qualquer carro descer até as águas e subir, sem atolar. Na entrada, há um centro de visitações turísticas, que inclui museu com dezenas de animais empalhados (típicos da região), e pode-se assistir, em cadeiras confortáveis e sob o ar-condicionado, a um audiovisual com imagens de bichos raros, da flora tropical e das operações feitas pelos guarda-parques.

A exuberância no Turvo atende pelo nome de Salto do Yucumã, maior sequência de cascatas longitudinais do mundo. O Rio Uruguai, nesse trecho, tem uma fenda que forma um degrau entre as suas margens (a argentina e a brasileira). Essa rachadura natural gerou cachoeiras que se estendem, lado a lado, por 1,8 quilômetro. Quando chove, porém, o rio enche, as águas nivelam e encobrem as cascatas, que desaparecem temporariamente.

Parque Estadual do Turvo abriga o célebre Salto do Yucumã.  Em fevereiro, a água das chuvas encobriu as cascatas longitudinais

 

Borboletas às margens do Rio Uruguai, no Parque Estadual do Turvo

O Turvo também é o único reduto gaúcho de dois predadores criticamente ameaçados de extinção: a onça pintada e a harpia, maior espécie de águia sul-americana (conhecida pelo "capuz" de penas que cobre sua cabeça). Vez que outra algum visitante sortudo consegue flagrar esses magníficos animais em uma vasta floresta tropical com 17 mil hectares. Circulam por ali, também, antas, jaguatiricas, quatis e cutias.

Apesar da boa infraestrutura, o Turvo exibe problemas comuns aos demais parques. O primeiro, para o qual colabora a distância de Porto Alegre (cerca de 500 quilômetros), é a falta de divulgação. Poucos no Estado sabem da existência desse santuário ambiental. A maior parte das visitas é de escolares da região noroeste do Estado. A seguir, vêm a falta de sinal telefônico (a partir da porteira, o celular não pega), a ausência de lancherias, restaurantes e de serviço de guias (com exceção das informações prestadas pelos guardas). Tampouco existe atividade esportiva ou passeios de barco, canoagem ou rafting. Para a inveja brasileira, no lado argentino barcos cheios de turistas cruzam as cascatas do Salto do Yucumã.

— Tinha de ter um lugar para comprar água, guia para passeios — comenta a turista Sônia Galli, de Cachoeirinha, que visitou o Turvo no final de fevereiro.

O atual diretor do parque, Telmo Rosa Lopes, admite essas carências e pretende introduzir alguns atrativos no Turvo:

— Entre nossas ideias, constam uma linha de ônibus turístico, churrasqueiras na entrada do parque, pelo menos uma lanchonete e um porto para passeios de barco. Vamos ver se sai, em parcerias com a iniciativa privada.

Dois caminhos

Qual é a melhor maneira de administrar os parques? No Rio Grande do Sul, duas visões se chocam. Ambientalistas ortodoxos e muitos biólogos entendem que a grande meta é preservar — e a missão cabe ao governo. Se houver a visitação sistemática, muito bom. Mas a ausência de turistas não chega a ser um problema.

A outra visão, dos adeptos do chamado desenvolvimento sustentável, é de que parques, além de preservados, devem ser voltados para o turismo — e, assim, garantir verba suficiente para seu próprio sustento. Os exemplos mais citados são o Parque do Iguaçu (no Paraná) e o Grand Canyon, nos EUA. Parte dos serviços é estatal, parte é terceirizada. Esse modelo é defendido com ardor pelo governo José Ivo Sartori.

— Nossa meta é manter controle estatal sobre a proteção e terceirizar serviços que podem oxigenar as finanças do parque, como refeições e esportes radicais. Passeios guiados de bicicleta em Itapuã e no Turvo, acampamentos... Por que não? Funciona na maior parte do mundo — defende a secretária estadual de Meio Ambiente, Ana Pellini.

Hoje, a grande fonte de sustento dos parques gaúchos é a medida compensatória, dinheiro que uma empresa repassa ao governo quando faz uma obra que trará impacto ambiental. Quando é feito um Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima), 0,5% do valor do empreendimento é direcionado para as unidades de conservação. A prioridade do investimento é para a região onde será concretizada a obra, mas nem sempre. Não fosse esse tipo de recurso, na maioria das vezes proveniente da iniciativa privada, os governos dificilmente teriam como guarnecer e manter serviços nos parques.

— Diante das dificuldades do poder público em qualquer esfera, onde falta até dinheiro para saúde, educação e segurança, dinheiro para meio ambiente é uma excepcionalidade. É muito pouco — aponta Ana Pellini.

Ambientalistas enxergam com desconfiança a busca por lucro que move a terceirização de parte dos serviços (que eles chamam de "privatização"). Um grupo de militantes e de parlamentares de esquerda criou uma Frente em Defesa dos Parques Gaúchos. O agrônomo Leonardo Melgarejo, presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), admite a precariedade dos parques, mas diz que os governos não precisam "apelar a privatizações" — podem captar recursos internacionalmente ou aplicar dinheiro de compensações ambientais. Melgarejo também recomenda cautela quanto a atividades de lazer.

— Uma coisa é escalada de morros, outra é permitir jet-ski. Não queremos mais motor, mais asfalto, mais gente jogando lixo. Há risco de perda de árvores e animais — sintetiza.

Outros ambientalistas têm menos temores quanto a experiências turísticas.

— Dependendo do que for terceirizar, sou plenamente a favor. Temos parques que funcionam bem porque têm toda a parte de turismo terceirizada, como Foz do Iguaçu — opina Kathia Vasconcellos Monteiro, do Instituto Augusto Carneiro.

As autoridades federais não são tão entusiasmadas quanto o governo Sartori. A visão é mais preservacionista. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) entende que a função primordial, a proteção dos parques, tem sido desempenhada, mesmo ante o contingenciamento orçamentário por parte da União. Os dirigentes da autarquia preferiram expressar a análise por meio de nota, sem entrevistas pessoais.

A terceirização é vista, no ICMBio, como possibilidade para parques com grande volume de visitação, como ocorreu em Foz do Iguaçu. Para unidades menores, a ideia é manter a estrutura mediante recursos de compensação ambiental. Há, contudo, possibilidade de terceirizar serviços de lancheria no Parque dos Aparados.

Questionado sobre a ausência de estruturas básicas no Parque da Serra Geral, como água e banheiros, o órgão federal diz que está projetada a construção de um centro de atendimento a visitantes, com banheiros e área para acampamento selvagem. Serão também providenciadas barreiras em várias partes do cânion Fortaleza. Isso não foi providenciado antes porque o ICMBio não tinha posse jurídica da área (houve demora nas indenizações aos donos das terras desapropriadas). Com essa estrutura, passará a ser cobrado ingresso.

3 sucessos nacionais

Situado na divisa dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, é conhecido por abrigar o pico das Agulhas Negras, um dos mais altos do Brasil. Tem piscinas naturais muito frequentadas pelos visitantes. O ingresso dá direito ao uso de quiosques para piqueniques e churrascos. As trilhas contam com escadarias. Tem dois abrigos e duas áreas de camping, que permitem pernoite, mediante autorização solicitada previamente. Pode-se fazer escaladas e montanhismo.

Situado em Foz do Iguaçu, oeste do Paraná, é um dos mais bem acabados exemplos de turismo ecologicamente sustentável. Afora caminhadas para visitar as fabulosas cascatas do Iguaçu, o turista pode praticar rafting ou fazer passeios de barco pelo rio, rapel nas encostas dos cânions, trilhas de bicicleta e arvorismo. Um hotel de luxo está encravado dentro do parque, e há outros na estrada de acesso _ que é asfaltada. Os caminhos internos, também asfaltados, são percorridos de ônibus panorâmicos (o pagamento está embutido no ingresso). O Ibama terceirizou a recepção de turistas num centro de visitantes, que dispõe de telefones, fraldário e lojas. Há 230 funcionários, elevadores panorâmicos, lanchonetes e banheiros. A terceirização terminou com as extensas filas de veículos e cortou pela metade o atropelamento de animais silvestres. O parque recebe 1,5 milhão de visitantes por ano.

Situado a 60 km de Brasília, é exemplo de um local capaz de conciliar passeios agrestes  com atrativos turísticos. Entre eles, providências simples, como escadas para quem deseja ficar ao lado das principais cachoeiras, banheiros em vários pontos e permissão para realizar rapel nos penhascos, sob vigilância de guardas. O parque oferece uma área para camping, com possibilidade de pernoite.

O exemplo

americano

Marcelo Rech

Não exatamente pela escassez de inovações na história dos Estados Unidos, mas pela revolução na relação com a natureza, o escritor e historiador Wallace Stegner definiu a criação da rede de parques nacionais como "a melhor ideia que a América já teve". Longe de ser um exagero, os hoje 59 parques nacionais e 405 áreas especiais dos EUA atraem a cada ano quase 300 milhões de visitantes. Pelo esmero na manutenção e pela obsessão em engajar os visitantes na proteção das áreas, muitos dos turistas se convertem em evangelizadores do lema do Serviço Nacional de Parques, que completará 100 anos em agosto: "Usufruir, educar e preservar para as gerações futuras".

Os parques são também um bom negócio. Seu orçamento anual é de US$ 3,6 bilhões — os serviços de alimentação e de aventura, como rafting, são locados a concessionários que faturam U$ 1 bilhão por ano. Em alguns parques especialmente atraentes, como Yosemite, na Califórnia, cada automóvel paga US$ 30 (cerca de R$ 120) pelo passe de uma semana. É caro para padrões brasileiros, mas, em contrapartida, os visitantes desfrutam da segurança de trilhas bem sinalizadas, de estradas transitáveis, de abrigos abastecidos para emergências e do apoio de nada menos que 28 mil funcionários, de arqueólogos a guias historiadores, e, naturalmente, de milhares de park rangers, os populares guardas de uniforme verde e cáqui.

A combinação de organização com preservação de áreas selvagens é o segredo dos parques dos EUA: se quiser, o visitante mergulha nos confins da natureza sabendo que, lá no fundo, há um sistema de proteção zelando pelo bem-estar dele. Há riscos, sobretudo em escaladas, incêndios e no isolamento do inverno, mas, desde a criação do primeiro parque, Yellowstone, em 1872, o modelo foi concebido para receber de famílias com carrinhos de bebês até aventureiros experientes.

O Serviço de Parques zela por áreas altamente turísticas, como a da Estátua da Liberdade, em Nova York, ou vastidões geladas, como o Parque Denali, no Alasca. Em todos, prevalecem há um século o mesmo conceito de qualidade e o mesmo convite a um convívio harmônico com a natureza — as gerações de hoje e as que ainda estão por vir agradecem por essa grande ideia.

Parque Nacional do Itatiaia

Parque Nacional da Chapada dos

Veadeiros

Parque Nacional do Iguaçu