Publicado em 20 de MAIO de 2016

Uma luta contra o relógio se inicia toda vez que a sequência numérica 1-9-2 é discada. Será mais um pedido de socorro ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), mobilizando uma rede de médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem e motoristas em torno de uma missão: o mais breve possível, conectar a vítima aos recursos de que ela necessita. Seja ela quem for. Esteja onde estiver. Tempo é vida  – e, nos quatro casos descritos nesta reportagem, ressurreição.

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Bruna Scirea

bruna.scirea@zerohora.com.br

FOTOS

Jefferson Botega

jefferson.botega@zerohora.com.br

Edição

Carlos André Moreira

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Diogo Perin

JULIANO PEDIU AO AMIGO SOCORRISTA: "ME SALVA"

Acena aconteceu há exatos dois anos. Um homem levou quatro tiros na cabeça, mas só caiu alguns passos depois, sobre a grama fina que cobria o canteiro da calçada. O carro ficou ao lado, com a porta escancarada e as luzes ainda acesas. Era o que iluminava aquela imagem: a de um homem vertendo sangue.

Chuviscava na noite daquela quarta-feira, 21 de maio de 2014, quando moradores da Rua Ivoti, no centro de Imbé, correram para fora de suas casas – assustaram-se com os estampidos. Não demorou para que um cordão de gente se desenhasse em volta do corpo do baleado. A vizinhança só se afastou quando a equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) saltou da ambulância, ordenando espaço.

– Socorro, Tica – murmurou a vítima, estirada logo à frente, ao reconhecer a voz do homem que se aproximava.

– Cara, não acredito que é tu. Fica calmo, não fala mais nada – limitou-se a responder o socorrista, Tica, evitando demonstrar o impacto.

– Então me salva.

Juliano Grassi havia deixado a casa da mãe pouco antes das 21h. A caminho de seu apartamento – onde assistiria a seu time, o Grêmio, assumir a vice-liderança do Brasileirão, ganhando do Botafogo de virada –, resolveu fazer uma rápida parada para ver uma amiga. Aguardava a jovem dentro do carro, um Audi branco, diante da casa dela, quando um motoqueiro se aproximou. Como parte de seus 27 anos haviam se dado dentro da oficina mecânica do tio, com fluxo contínuo de motos e amigos, achou que era um conhecido. Abriu a porta e só o que viu foi a boca do cano de um revólver calibre 32.

A primeira bala arrancou-lhe cinco dentes, alojando-se na nuca. Tentou proteger o rosto com as mãos e levou mais três tiros na cabeça. O quinto atingiu o ombro esquerdo. Um sexto projétil foi encontrado dentro do carro, tempos depois.

O motoqueiro partiu em fuga. Juliano, ainda no veículo, cuspiu pedaços de dente e golfadas de sangue. Avistou uma senhora saindo de uma casa próxima e tentou ir em busca de ajuda. Foi cair sobre o canteiro da calçada.

Quando o Samu chegou, chamado por um dos moradores daquela rua, Juliano estava agitado. Apesar das quatro balas na cabeça, tinha consciência do que acontecera e perguntava-se: por quê? Perturbava-se. Dentro da ambulância, precisou ser amarrado em uma maca. Ao seu lado, era um amigo de infância quem prestava cuidados e reforçava, a cada pouco, o pedido para que ficasse calmo. Tica é o apelido de Tierres Emerim da Rosa, que já somava sete anos como enfermeiro do Samu no Litoral quando, de repente, viu sob sua responsabilidade um camarada, suplicando-lhe pela vida.

Surpresas fazem parte da rotina de um socorrista. Quando um chamado chega via 192, as informações nem sempre vêm de acordo com a real situação.

Em Imbé, Juliano Grassi levou quatro tiros na cabeça. Se não fosse o trabalho realizado na ambulância, teria morrido antes de chegar ao hospital

Dois anos depois, Juliano ainda não tem a resposta definitiva para o motivo  do atentado contra sua vida. A polícia acha que ele foi confundido com um traficante

Às vezes, é menos grave do que se dizia. Em outras, o interlocutor – por pânico ou desconhecimento – não dá nem conta de descrever a gravidade do caso. Quase sempre, condutores, técnicos de enfermagem, enfermeiros e médicos saem em disparada, ambulância cortando o trânsito, sirenes ligadas, para atender a alguém que nunca viram. Mas podem chegar à cena e encontrar um amigo. Estão preparados. O espaço para a emoção é pequeno em um serviço que só funciona se apoiado em seu princípio maior: a técnica.

Orientados por um médico da regulação, Tierres e equipe iniciaram o manejo de Juliano. Pressão e batimentos passaram a ser monitorados – os socorristas acompanhariam qualquer alteração mais significativa nas funções vitais. Aplicaram soro para que aumentasse o volume que corria pelas veias do paciente – a grande perda de sangue, que jorrava longe, poderia terminar em um choque hipovolêmico, uma falha no sistema circulatório que leva à morte em poucos minutos. Tiveram ainda o cuidado de garantir que, consciente, Juliano não sentisse dor: injetaram-lhe morfina. E evitando uma provável parada respiratória provocada pela obstrução da via aérea, aspiraram todo o sangue e destroços de dentes que deslizavam goela abaixo. Garantiram assim, em um processo que não passa de segundos, que a vítima chegasse ainda com vida ao atendimento hospitalar, 13 minutos depois. Sem os cuidados do Samu, Juliano provavelmente teria morrido no caminho.

Ainda seria preciso mais exames, hospital, Unidade de Terapia Intensiva (UTI), cuidados de médicos especializados, dias de internação. Nos casos em que se percorre a linha entre a vida e a morte, o atendimento de urgência pré-hospitalar quase nunca basta em si mesmo. Mas é o que garante ao paciente a chance de chegar até a próxima etapa. O papel do Samu, nas situações de risco extremo, é virar a ampulheta. Dar mais tempo ao paciente, prolongando a possibilidade de sua sobrevivência.

Ao certificarem-se de que Juliano estava estabilizado, iniciaram o percurso de cinco quilômetros até o Hospital de Tramandaí. Ainda lúcido, o jovem respondeu às ordens dos socorristas: movimentou partes do corpo, respirou com mais vontade e tentou se manter calmo. Foi sentindo-se então como uma televisão velha que já havia sido desligada, mas que demorara para concluir o comando. Tudo escurecia com uma certa cadência. Quando abriram as duas portas traseiras da ambulância SA34, Juliano ainda viu uma última cena: na entrada da emergência do hospital, uma equipe de três pessoas estava a postos, esperando por ele.

Só então apagou.

Foi levado diretamente para o centro cirúrgico, onde lhe tiraram uma bala da parte posterior do crânio. Mas ainda havia outras quatro – três na cabeça, uma no braço. Três horas depois de chegar ao hospital, era colocado mais uma vez na unidade de suporte avançado do Samu para ser levado até Porto Alegre. A viagem de mais de uma hora seguiu sem ocorrências. Já era madrugada quando deu entrada no Hospital Cristo Redentor, na Capital, onde removeram o projétil do ombro e julgaram ser melhor não mexer nos outros. O quadro era grave demais.

Passou um mês amarrado a uma maca da UTI. A medicação o deixava agitado, queria arrancar os aparelhos que o ajudavam a respirar. Em Imbé, os comentários eram de que estava desenganado. Não teria tanta sorte. Mas chegou o segundo mês, e foi para o quarto do hospital. Passou por uma nova cirurgia para colocação de um stent em uma artéria atrás da orelha e recebeu alta 30 dias mais tarde. Saiu de lá já não se perguntando mais nada.

Dois anos depois, Juliano ainda não tem a resposta definitiva. Investigações da Polícia Civil apontam que teria sido vítima de um acerto de contas – uma encomenda que não era para ele.

O Audi branco, que ficou com a porta escancarada e iluminou o sangue vertendo de sua cabeça naquele 21 de maio, tinha o mesmo modelo e a mesma cor do carro de um dos maiores traficantes do Litoral Norte. Deve ter sido confundido. Ele já não quer mais saber. Está vivo.

Casou-se. Abriu sua própria oficina mecânica no início deste mês. Das possíveis sequelas, só ficou com uma, que, considerando tudo o que passou, nem é tão má assim: está surdo do ouvido esquerdo. Ainda tem a audição do lado direito intacta. Agora, toda vez que o som de ambulância do Samu cruza seu caminho, Juliano sente calafrios. É como se estivesse novamente diante da morte. Só que antes de o volume da sirene se diluir na distância, a sensação já é outra:

– Proteção. Me reconforta saber que, se eles chegarem até a vítima e ela ainda estiver com vida, as chances de sobreviver serão grandes. Fui ressuscitado por eles.