AS SETE VIDAS DE MICHELLE

Nas próprias contas, Michelle Unfer morreu sete vezes. E sete vezes ressuscitou na tarde de um sábado de verão em Caxias do Sul, que vivia a calmaria dos dias que sucedem o Ano-Novo. No último 2 de janeiro, os relógios marcavam pouco mais de 16h. As vias centrais da cidade serrana estavam quase desertas quando foram tomadas pelos gritos de uma mulher desesperada.

– Minha filha está morrendo! Minha filha está morrendo! – repetia, de joelhos sobre o asfalto.

A cabeleireira Marisa Bergonci, 49 anos, havia descido os 22 degraus que ligam a porta do apartamento até a calçada da Rua Tronca sem ver o que estava pela frente. Não se lembra de praticamente nada daquele dia. Só sabe que berrou. Jogou-se no asfalto e berrou. Berrou o quanto pôde.

Instantes antes, o grito havia sido o de sua única filha, Michelle, 25 anos: um alto e longo “mãe” que veio do banheiro. Marisa estava na cozinha. Parou o que fazia e esperou que a filha continuasse – poderia ser que se esquecera da toalha, poderia ser que o chuveiro tivesse queimado.

Michelle estava caída dentro do box. O chuveiro ainda jorrava a água do banho interrompido. A mãe colocou-se junto ao chão. Tinha a cabeça da filha sobre as pernas quando suspeitou ter visto a pele de Michelle escurecer. A jovem vinha se queixando de falta de ar – embora consultas médicas não apontassem nada de estranho. Pôs-se a soprar todo o ar que guardava nos pulmões para dentro da boca da filha. Michelle tossiu como se estivesse engasgada.

– Estou bem, mãe – sussurrou.

Marisa sabia que não. Buscou o celular pela casa, tentou ligar para alguém – em pânico, não conseguiu pensar em quem. Foi então que se jogou escadaria abaixo em busca de socorro. Os gritos foram ouvidos por vizinhos. Entre eles, uma técnica em enfermagem que ingressou no apartamento, enquanto a mãe continuava a pedir ajuda em frente ao prédio. Com massagem cardíaca, a mulher reanimou Michelle pela segunda vez, quando teria novamente parado de respirar.

Mais ou menos nesse momento, o Samu recebia o chamado da ocorrência – a família não sabe até hoje quem acionou o 192. O trânsito estava liberado, e em poucos minutos a técnica em enfermagem Janaína Streck, 29 anos, e o condutor Paulo Borges, 50, chegavam à Tronca em uma unidade básica. No apartamento, Michelle seguia no chão do banheiro – haviam levado seu corpo para a frente da pia, com os pés voltados para o corredor. Estava grogue. Ainda molhada, trajava um vestido florido, enfeitado na altura do peito por um pingente – detalhe que Janaína, que geralmente não se lembra dos pormenores, não viria a esquecer.

 

Em Caxias do Sul, Michelle Unfer sofreu sucessivas paradas cardiorrespiratórias. No Facebook, louvou seus “anjos” – os enfermeiros e socorristas

Michelle foi conduzida até a ambulância em uma maca. Seguiria para a avaliação de um médico, que já a esperava no Pronto Atendimento 24 horas, a dois quilômetros dali. Na parte de trás do veículo, Janaína aplicava soro na jovem, na tentativa de estabilizá-la – tinha a pressão “baixíssima”. Na dianteira, o condutor Paulo dividia-se entre a direção e a tentativa de aplacar a aflição de Marisa, no banco ao lado – não é o foco, mas também faz parte da rotina dos socorristas prestar apoio emocional aos familiares dos pacientes.

A ambulância parou em frente ao posto de saúde, e Michelle teve uma parada cardiorrespiratória (PCR) – a primeira das cinco que seriam assistidas por profissionais da saúde. Acredita-se que os dois apagões de Michelle ainda em casa também tenham sido PCRs, mas não há como ter certeza. Era como se Michelle sentisse um sono profundo. E dormisse. Mais um sono profundo. E apagava de novo.

Paulo saltou do banco da frente e juntou-se a Janaína na parte de trás da ambulância. A unidade 01, a única de suporte avançado que atende Caxias do Sul e Vacaria, por sorte encostava no local. A equipe era então reforçada com o apoio da médica Bibiana Maggi, 28 anos, que de pronto iniciou as massagens cardíacas – não sem antes Janaína arrancar o pingente do vestido, que machucaria o peito da jovem durante o procedimento.

Michelle foi ressuscitada e entubada. A par do que acontecia no interior da ambulância, o setor de regulação do Samu já providenciava a entrada na UTI do Hospital Pompeia – o quadro havia se agravado rapidamente. Não deu nem tempo de chegar até lá. Em menos de cinco minutos, Michelle teve mais uma parada. Possivelmente a quarta. Era como um pêndulo que, já sem força, não avançava muito longe para o lado de lá. Suas reversões eram rápidas, com massagens e adrenalina aplicada na veia. Mas também custava a se manter no plano de cá, o da vida.

Foram mais três paradas cardiorrespiratórias no hospital. Morreu mais três vezes, segundo ela. Em cada um desses momentos, foi como se sua existência fosse resumida a uma quantidade já não suficiente de estímulos elétricos – que só não chegaram a zero porque uma equipe de socorristas não deixou. Foram eles que assumiram a função do coração de Michelle toda vez que o órgão foi incapaz de cumprir seu papel sozinho. Impediram que ela partisse.

Sete dias na UTI, outros sete no quarto do hospital. Exames indicaram que a paciente desenvolvera uma trombose na perna, possivelmente devido ao uso de anticoncepcional (o efeito colateral está descrito na bula dos contraceptivos). O coágulo, que causou cãibras no fim do ano passado, teria se deslocado e obstruído parte do sistema vascular que irriga o pulmão, provocando as sucessivas paradas.

Michelle não tem lembranças próprias daquela tarde de verão. Marisa, como que se defendendo do trauma, apagou parte das suas. O que Michelle tem hoje, então, é um mosaico de memórias em que nem todas as peças se encaixam.

Ainda assim, do jeito que pode, ela faz questão de contar sua história. Várias são as linhas dedicadas em agradecimento ao Samu. Algumas delas foram escritas em seu perfil no Facebook, em 19 de janeiro, dias após ter saído do hospital:

“Quando alguém relembra o que aconteceu comigo e diz que meus anjos são fortíssimos e persistentes, quero dizer que eles são mesmo. (...) Enfermeiros e socorristas, vocês sim são anjos! Morri sete vezes. E sei que posso falar com certeza que não foi sorte. Foi o trabalho duro. Foi o amor pela profissão. Foi o amor à vida que vocês, anjos, possuem que não me deixou partir. Se eu estou aqui hoje, é a vocês, em grande parte, que eu devo a minha vida. Muito obrigada por não desistirem de mim!”.

Coágulo originado em uma trombose na perna provocou as sucessivas paradas cardíacas que fizeram Michelle passar sete dias internada em uma UTI