As cenas literárias gaúcha e brasileira passaram por reconfigurações em 2016: a crise econômica causou retração no mercado nacional, o que se fez sentir com o fechamento de livrarias na Capital – e, em compensação, com a consolidação de novos espaços para a compra de livros na cidade. O ano que está terminando teve polêmicas e grandes personagens. O maior deles, o mestre da canção e agora Nobel de Literatura Bob Dylan

RETROSPECTIVA

2016

LITERATURA

O NOBEL MAIS POLÊMICO

Há muito tempo a principal polêmica do anúncio do Nobel de Literatura vinha sendo a ausência de norte-americanos, principalmente a do tantas vezes esnobado Philip Roth. Em 2016, no entanto, o premiado foi um americano – e a polêmica que se instalou após o anúncio de seu nome foi a maior em décadas. No dia 13 de outubro, Robert Allen Zimmermann, planetariamente conhecido pelo pseudônimo de Bob Dylan, tornou-se o primeiro artista a ganhar o Nobel de Literatura por uma obra calcada em canções. Dylan tem um livro de poemas e um de memórias publicados, mas a justificativa da Academia Sueca deixa claro que foram suas letras as grandes responsáveis pela premiação: por ele haver "criado uma nova expressão poética dentro da grande tradição norte-americana da canção". Aos elogios de uns, que viram na premiação um reconhecimento à canção popular como formato literário, seguiu a desaprovação de outros, para quem a medida cedia a um populismo midiático. Dylan, ele próprio, teve pouco a dizer. Literalmente. Primeiro, não atendeu os suecos nem ao telefone. Depois, mandou uma breve mensagem de agradecimento, em um discurso escrito – o premiado não compareceu à entrega da láurea.

REEDIÇÕES IMPORTANTES

Não foram apenas os inéditos que movimentaram o mercado editorial em 2017. Um dos maiores fenômenos do ano foi a coletânea "Todos os contos", de Clarice Lispector, com organização do biógrafo Benjamin Moser. Apesar de todos os textos contidos no volume já terem sido lançados no país, jamais haviam sido reunidos em um único livro. Além disso, a edição chegou às livrarias brasileiras depois de ter conquistado a crítica norte-americana – "Todos os contos" foi lançado primeiro nos EUA, em 2015, sendo eleito um dos livros do ano pelo New York Times. Entre os relançamentos de destaque ao longo do ano, figuraram uma edição crítica de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, organizada por Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro; "Viagem pitoresca e histórica ao Brasil", de Jean-Baptiste Debret, há 30 anos fora de catálogo; e os aguardados "Morte em Veneza", "Tonio Kröger" e "A montanha mágica", de Thomas Mann. Outro retorno aos catálogos também causou repercussão no início do ano, mas não exatamente por sua qualidade literária: "Minha luta", de Adolf Hitler, entrou em domínio público em janeiro, suscitando reedições em todo o mundo e discussões sobra a validade de publicar um livro capaz de disseminar discursos de ódio.

INÉDITOS PÓSTUMOS

No mesmo ano em que se completaram quatro séculos da morte de William Shakespeare (1564 – 1616), foi encontrado na Escócia um pote de ouro literário: um novo exemplar do Primeiro folio, uma edição organizada em 1623, sete anos após a morte de Shakespeare, contendo 36 de suas peças – entre estas "Macbeth", "Ricardo III", "Romeu e Julieta", "Sonho de uma noite de verão", "Otelo", "Rei Lear" e "Hamlet" –, agrupadas em uma edição "in-folio". Com a descoberta, subiu para 234 o número de exemplares do Primeiro folio com localização conhecida – dos 750 originalmente impressos. O chileno Roberto Bolaño (1953 – 2003) e o paraibano Ariano Suassuna (1927 – 2014) também tiveram escritos inéditos descobertos durante o ano – "O espírito da ficção científica", de Bolaño, e "Romance de Dom Pantero no palco

dos pecadores", de Suassuna, devem sair nos próximos meses no Brasil.

O MERCADO EM CRISE

Em 2016, a recessão econômica golpeou com força o mercado editorial brasileiro. Em junho, dados de uma pesquisa feita pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) por encomenda da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional de Editores de Livros (Snel) apontava este como o pior ano da indústria do livro desde 2002. Considerada a inflação, o faturamento das editoras havia decrescido 12,6%, e o número de exemplares vendidos caíra 10,65%. O quadro foi agravado pela ausência de um fenômeno de vendas como o dos livros de colorir em 2015. Embora 2016 tenha sido o ano da consolidação dos "livros de YouTubers", lançados por vloggers com apelo junto ao público jovem, esse fenômeno sozinho não impactou os números. Os dados do Painel das Vendas de Livros do Snel relativos a novembro mostram também redução de faturamento (de 4,78%) e volume de vendas (13,21%) na comparação com o ano passado.

A LITERATURA É MUITO BRANCA?

A Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2016 teve Ana Cristina César como homenageada e participação recorde de mulheres. Mas ignorou os autores negros. Na semana de sua realização, recebeu uma carta aberta assinada por professoras da UFRJ e que se referia ao já tradicional evento literário como um "arraiá da branquidade", pela ausência de negros em sua programação. O curador Paulo Werneck justificou-se alegando que tratativas haviam sido feitas para levar à festa Elza Soares e Mano Brown, o que só fez aumentar as críticas, dado que os dois artistas são ligados à música, e não à literatura. Pensando em 2017, a Flip parece ter ouvido as reclamações: a nova curadora, Josélia Aguiar, anunciou que no ano que vem o escritor homenageado será Lima Barreto. Já a Feira do Livro de Porto Alegre viveu situação semelhante, quando os autores Ronald Augusto e Jeferson Tenório publicaram, em agosto, dois meses antes do início do evento, contundentes artigos perguntando que autores negros estariam na Feira em 2016. Embora a organização afirme que não há vinculação direta com os textos, foi realizado o Encontro de Escritores Negros como parte da programação, com a presença do mineiro Ricardo Aleixo, da cubana Teresa Cárdenas e da sul-africana Futhi Ntshingila.

ELES FARÃO FALTA

O tamanho do estrago provocado por 2016 no panorama cultural pode ser medido por uma morte em particular – a de Umberto Eco, em 19 de fevereiro. Ensaísta, romancista, semioticista, pesquisador que transitava com desenvoltura de iluminuras medievais a histórias em quadrinhos, Eco morreu de complicações de um câncer no pâncreas, um ano depois de publicar seu último livro, o romance "O número zero". No mesmo dia, morreu também Harper Lee, autora de "O sol é para todos" e do best-seller improvável de 2015 com a continuação, "Vá, coloque um vigia". Três vencedores do Nobel, o húngaro Imre Kertesz, autor de "Liquidação", o romeno-americano Elie Wiesel, que narrou sua experiência nos campos nazistas em "Noite", e o dramaturgo italiano Dario Fo, também morreram em 2016, assim como o húngaro Péter Esterházy e o dramaturgo americano Edward Albee. No Brasil, a principal ausência foi a do poeta Ferreira Gullar, que morreu no início de dezembro. Entre os autores nascidos no Rio Grande do Sul, duas perdas precoces: a do crítico e poeta Paulo Bentancur, morto aos 59 anos em agosto, e a do roteirista de TV e romancista Max Mallmann, que morreu em novembro, aos 48 anos.

VERISSIMO, 80 ANOS

O mais tímido dos autores gaúchos precisou preparar o espírito ao longo de 2016 para uma série de homenagens. Luis Fernando Verissimo, cronista, roteirista de TV, cartunista, humorista e músico nas horas vagas, completou 80 anos. Para marcar a data, foram realizados encontros, seminários, saraus (como o Sarau Elétrico) e alguns lançamentos, como "Ver!ssimas", organizado por Marcelo Dunlop coletando frases e tiradas do autor ao longo de meio século de carreira. Foi publicado em outubro pela Objetiva, editora que atualmente concentra a maior parte da obra do autor.

No mesmo mês, chegou às livrarias a nova obra de Verissimo, "As gêmeas de Moscou", um livro infantil editado pela Companhia das Letras, com ilustrações de Rogério Coelho.

SAI A PALAVRARIA, ENTRA A TAVERNA

Duas das livrarias mais queridas de Porto Alegre anunciaram seu fim em 2016.

A Palavraria, que há 13 anos atendia no Bom Fim, e a Sapere Aude!, há

nove anos recebendo leitores na Cidade Baixa, decidiram fechar as portas diante

da retração econômica atual – a Sapere seguirá apenas com vendas online.

Ambas as lojas, além de oferecerem acervo qualificado, funcionavam como centros culturais informais, com ampla agenda de lançamentos, oficinas e bate-papos –

um festival literário foi organizado neste mês de dezembro para homenagear a atuação da Palavraria. Mas até mesmo as grandes redes livreiras sentiram o impacto dos tempos bicudos: a Cultura atrasou pagamentos a diferentes editores por meses ao longo do ano em todo o Brasil. No entanto, a temporada não foi só de notícias ruins para os leitores de Porto Alegre. A livraria Baleia, no centro cultural Aldeia, consolidou-se no roteiro de atrações literárias da Capital em seu segundo ano de vida, com extensa programação de cursos e debates.  Da mesma forma, a pequena Taverna, que abriu suas portas no segundo semestre, no Centro Histórico, também tem promovido lançamentos de livros e outras atividades.

RADUAN LÁ FORA

Famoso tanto pelo que já escreveu quanto pelo fato de não escrever mais, Raduan Nassar foi alvo de uma nova onda de interesse ao longo de 2016. Além de ser recebida com resenhas entusiásticas na imprensa britânica, a tradução inglesa para "Um copo de cólera" ("A cup of rage", traduzido por Stefan Tobler) foi incluída em março na "lista longa" de semifinalistas para a edição internacional do Man Booker Prize, mais prestigiado prêmio literário do Reino Unido, ao lado de obras de autores como os vencedores do Nobel Kenzaburo Oe e Orhan Pamuk. Em maio, Nassar foi anunciado como o vencedor do Prêmio Camões, concedido uma vez por ano a um autor significativo da língua portuguesa – já foram contemplados nomes como Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Saramago e Lobo Antunes. No Brasil, a Companhia das Letras reuniu em um único volume a obra completa do autor, incluindo "Lavoura arcaica" (1975), "Um copo de cólera" (1978), a coletânea de contos "Menina a caminho", dois contos inéditos e um ensaio.

PERSPECTIVA 2017

Passado o Biênio Simoniano, que comemorou os 150 anos de nascimento (em 2015) e os cem da morte (em 2016) de Simões Lopes Neto, 2017 marcará os 50 anos da morte da poeta Lila Ripoll (1905 – 1967). O grande acontecimento da temporada literária no Rio Grande do Sul deve ser a volta da Jornada de Passo Fundo, que fora cancelada em 2015 e que terá, em outubro próximo, a sua 16ª edição, com novo formato, mas sem a presença de Tania Rösing na curadoria. E a Feira do Livro da Capital, que diminuiu de tamanho em 2016, terá a mesma estrutura no ano que vem? Da mesma forma, a retração do mercado e a reconfiguração do mapa das livrarias de Porto Alegre deixam questões em aberto sobre o futuro do comércio de livros, na cidade e em todo o país.

JOVENS PREMIADOS

A julgar pelo desempenho de novos autores gaúchos nos principais prêmios literários do país, há uma geração promissora no Estado. No Prêmio São Paulo, "Ruína y leveza", de Julia Dantas, esteve entre os finalistas de melhor romance de autor estreante com menos de 40 anos; e "Longe das aldeias", de Robertson Frizero, concorreu na categoria com mais de 40 anos. A grande surpresa ficou por conta de "Amora", terceiro livro de Natalia Borges Polesso, que venceu o Jabuti na categoria contos, levando a melhor na mesma categoria do Açorianos. O grande vencedor do tradicional prêmio literário do Estado foi o livro-álbum de artes gráficas "A modernidade impressa", organizado por Paula Ramos. Já o destaque nacional foi o romance "A Resistência", do paulista Julián Fuks, eleito o livro do ano no Jabuti e segundo entre os melhores do Oceanos, antigo Portugal Telecom, sendo superado apenas por "Galveias", do português José Luís Peixoto.

MELHORES DO ANO

10

"ENCLAUSURADO", de Ian McEwan

 

"SIMPATIA PELO DEMÔNIO", de Bernardo Carvalho

 

"O REINO", de Emmanuel Carrère

 

"VOZES DE TCHERNÓBIL", de Svetlana Aleksiévitch

 

"HISTÓRIA DE QUEM FOGE E DE QUEM FICA", de Elena Ferrante

 

"O TRIBUNAL DA QUINTA-FEIRA", de Michel Laub

 

"TODOS OS CONTOS", de Clarice Lispector

 

"A RESISTÊNCIA", de Julián Fuks

 

"ATLAS DAS NUVENS", de David Mitchell

 

"FOE", de J.M. Coetzee

Atualizado em 28 de dezembro de 2016

textos

Alexandre Lucchese

Carlos André Moreira

DESIGN

Thais Longaray