PAI DOS SEQUESTRADOS

CORTOU AS NEGOCIAÇÕES

A notícia do sequestro chegou rápido ao quartel-general da Bunge & Born, em Buenos Aires. Um sequestrador ligou para o presidente da companhia:

 

– Queremos US$ 100 milhões. Você entrega o dinheiro ou seus filhos morrem.

 

A quantia exorbitava qualquer resgate anterior – o mais alto fora de US$ 14,2 milhões, em abril daquele ano, pagos a guerrilheiros do Exército Revolucionário do Povo (ERP) pelo americano Victor Samuelson, gerente-geral da Esso na Argentina. A resposta do patriarca dos Born foi curta e grossa:

 

– Vai à merda.

 

Born pai bateu o telefone e se negou a atender outras ligações. Não aceitava ser chantageado por terroristas e se recusou a chamar a polícia.

Jorge (à esquerda) e Juan Born no cativeiro, durante seu sequestro pelos Montoneros, em 1974

Enquanto isso, no cativeiro, Juan, deprimido, passava noite e dia deitado em posição fetal. Não queria se alimentar e xingava os guardas. Jorge era submetido a longas sessões de interrogatórios do tribunal revolucionário, gravadas em áudio e vídeo. Ele não se deixava abater. Varria a cela e arrumava a cama. Quando o balde estava sujo, virava de propósito, alegando descuido, e ganhava outro com água limpa. Para não enferrujar os músculos, se exercitava pela manhã e à noite por 10 minutos. Calculava o tempo contando a pulsação.

Ainda naquele setembro, Alfonso Margueritte, executivo da Bunge & Born, foi capturado por outra facção, o ERP. A maioria dos familiares de Juan e Jorge abandonou Buenos Aires – a mãe, as mulheres e os quatro filhos de cada um dos reféns se mudaram para Punta del Este, no Uruguai. Born pai mandou dizer que aceitava pagar US$ 10 milhões pela liberdade dos filhos. Muito aquém da quantia exigida, a contraproposta só serviu para irritar os terroristas, que cortaram contato.

Enquanto se aprofundava o desespero de Juan, Jorge percebeu que uma certa harmonia com os guardas seria a maneira de sofrer menos e fazer o tempo passar mais rápido. Aceitou ler publicações esquerdistas e jogar dama com os carcereiros. Ganhava cigarros e cartelas de palavras cruzadas que os guardas deixavam incompletas.

Sem saber se era dia ou noite, os irmãos nem perceberam quando 1974 terminou. Em fevereiro de 1975, os montoneros, revoltados com a postura de Born pai, que se mantinha irredutível, mataram a tiros Antonio Muscat, 52 anos, gerente da Bunge & Born. Na mesma época, sequestraram e assassinaram o cônsul dos Estados Unidos, John Patrick Egon. Na semana seguinte, outros dois executivos da empresa foram baleados quando saíam de suas casas.

Em março de 1975, a Bunge & Born pagou US$ 5 milhões ao ERP, e Alfonso Margueritte foi libertado. Saiu do cativeiro doente e morreu meses depois. Nessa época, Born pai recebeu uma carta do filho Jorge, relatando que Juan estava doente. Dias antes, os carcereiros haviam tirado Jorge do cativeiro amarrado em uma cadeira e fingido uma viagem. Colocaram os Born frente a frente, mas Juan sequer reconheceu o irmão. Um psiquiatra havia examinado Juan e alertado que o caso era grave.

Seis meses após o sequestro, começaram as negociações, intermediadas por Jorge e um advogado da companhia. Os montoneros baixaram o pedido de resgate de US$ 100 milhões para US$ 80 milhões, mas Jorge Born pai resistia. Dias depois, dispôs-se a pagar US$ 30 milhões pela liberdade de Juan. Os montoneros aceitaram, mas exigiam o dinheiro em moeda nacional e que fossem pagos outros US$ 30 milhões pela vida de Jorge. A companhia conseguiu o equivalente à metade. Os pesos deveriam ser entregues camuflados em caixas de vinho. Um gerente da companhia foi escalado para dirigir um caminhão com a fortuna. Rodou por vários pontos de Buenos Aires até abandonar o veículo em um local indicado. Os montoneros aceitaram receber a segunda parte em dólares. Teriam ajuda do embaixador de Cuba em Buenos Aires, que trocaria os dólares por pesos sem levantar suspeitas. Após receber o dinheiro, em 23 de março de 1975, os terroristas libertaram Juan em sigilo, sem que as autoridades soubessem.

Enquanto Juan abandonava o país, Jorge era trocado duas vezes de cativeiro. Apesar dos cuidados, um militante da comissão de finanças montonera foi capturado e torturado até contar o que sabia sobre o sequestro. Policiais invadiram vários esconderijos da guerrilha e apreenderam o equivalente a US$ 3,5 milhões em pesos. O episódio levou o líder máximo dos montoneros, Mario Firmenich, a se socorrer do governo de Fidel Castro. Os guerrilheiros comungavam da mesma ideologia, inclusive receberam treinamento militar em Havana, assim como no Líbano e na Síria.

 

MOVIMENTAÇÃO DO RESGATE PASSOU PELA
EMBAIXADA CUBANA EM BUENOS AIRES

 

"Caixas de vinho" foram enviadas para a embaixada cubana em Buenos Aires. Em malas diplomáticas (que não podem ser vistoriadas nas alfândegas), dólares foram despachados para Havana. A quantia enviada nunca foi confirmada. Teriam sido US$ 25 milhões.

Na ilha caribenha, o dinheiro ficou sob supervisão de uma tropa especial, responsável pelas relações do governo com guerrilheiros em outros países e depois transferido para a Checoslováquia, um dos países-irmãos da Cortina de Ferro liderada pela União Soviética, com a promessa de que retornaria aos poucos para o Banco Nacional de Cuba.

– De forma constante, tanto URSS quanto EUA apoiaram abertamente ou de forma dissimulada movimentos guerrilheiros que lutavam contra regimes amigos/aliados do rival – analisa, hoje, em entrevista a ZH, Enrique Padrós, doutor em História, especializado em ditaduras do Cone Sul.

Nesse meio tempo, a Bunge & Born providenciava mais dinheiro para libertar Jorge. Faltavam recursos na Argentina, e a solução foi arrecadar com outras empresas do grupo no Exterior, em sigilo absoluto e sem conhecimento do fisco. Mas dois empregados foram barrados desembarcando no aeroporto de Ezeiza com US$ 4,8 milhões nas malas. Após muita conversa, Born pai conseguiu impedir que o caso se tornasse público e que as malas de dinheiro voltassem para a Suíça, onde a Bunge & Born tinha uma financeira que movimentava valores do conglomerado.

A frustrada operação de pagamento deixou Jorge furioso porque adiava a solução do caso. Àquela altura, já havia trocado de cativeiro várias vezes e desconhecia os novos carcereiros. Para não perceber o caminho percorrido a cada mudança, era obrigado a tomar ansiolíticos que o deixavam tonto. Em abril de 1975, haveria eleição na província de Misiones. Os montoneros participavam com o Partido Autêntico – criado pela esquerda peronista naquele ano. Acreditavam na vitória, mas Jorge apostou com os guardas que fariam menos de 10% dos votos. Se estivesse certo, receberia uma dose diária de uísque. O Partido Autêntico ficou com 9,4% do eleitorado, e Jorge garantiu seu uísque. Só não sabia que havia apostado contra seu próprio dinheiro: a campanha fora financiada com parte do resgate de Juan.

Para começar a pagar pela liberdade de Jorge, a Bunge & Born juntou US$ 7 milhões. Entregaria em caixas de vinho na base aérea de Morón. Mas tudo saiu errado na estratégia montonera. O local estava lotado de policiais à paisana, pois a presidente Isabel Perón teria ali uma reunião no dia seguinte com o ditador chileno Augusto Pinochet. Um dos militantes escalados para receber a "carga" ficou doente. O substituto pertencia a outra coluna montonera, não sabia do sequestro, desconhecia a região e rotas de fuga, foi preso, e o pagamento não aconteceu.

Dias depois, o bar de onde os montoneros telefonavam para a Bunge & Born foi incendiado. Os episódios mostraram que Buenos Aires se tornara ambiente hostil para "os negócios", e os montoneros aceitaram receber o segundo resgate na Suíça. Pediram ajuda ao banqueiro argentino David Graiver, alinhado à causa, e que já os socorrera em momentos de aperto. Filho de imigrantes poloneses, Graiver era um audacioso empresário que, aos 35 anos, era dono de dois bancos e mantinha negócios nos EUA, na Bélgica e em Israel. Ele propôs uma parceria, e os montoneros aceitaram: seriam sócios de um banco americano, pelo qual pagariam US$ 12 milhões.

Em 12 de junho de 1975, usando documentos falsos, um graduado montonero viajou para Genebra e recebeu um caminhão lotado de dólares, estacionado em frente a um hotel por um representante da Bunge & Born. O montonero enfiou tudo em malas e foi para uma agência do banco UBS. Abriu uma conta em nome das empresas Calatanas Associadas S. A., alugou uma caixa-forte e deixou as malas. A Catalanas era uma firma de fachada, com sede no Panamá, criada dias antes.

À medida que se aproximava o momento de libertar Jorge, os guerrilheiros o mantinham quase todo o tempo com os olhos cobertos com algodão sob óculos escuros. Não deveria reconhecer onde estava, nem os últimos carcereiros. Mas, em 20 de junho de 1975, pôde ver o rosto de um sequestrador que identificaria mais tarde como Mario Firmenich. O líder montonero surgiu dizendo que a família Born tinha atendido todas as exigências e ele seria solto. O acordo incluía a publicação de um informe de página inteira pago pela Bunge & Born em grandes jornais – Le Monde (França), Washington Post (Estados Unidos), Corriere Della Sera (Itália) e The Guardian (Inglaterra). O texto criticava a posição da companhia e exaltava a luta da guerrilha contra o imperialismo na Argentina. A Bunge & Born também estava obrigada a adornar o saguão de entrada de suas fábricas com bustos de Perón e de Evita, além de distribuir US$ 1 milhão em alimentos em áreas pobres do país.

Firmenich entregou a Jorge um saco plástico com uma camisa branca, uma calça cinza, um par de sapatos e de meias. Era a primeira vez que usaria roupas depois de seis meses descalço e seminu. Era o traje que vestia no dia do sequestro, mas nem parecia: ficou grande nele, sete quilos mais magro. Os sapatos eram diferentes, e faltava o Rolex. Jorge reclamou, mas Firmenich disse que o relógio e os saltos dos sapatos foram desmontados, por precaução contra eventuais rastreadores.

Durante o cativeiro, Jorge rabiscou um caderno, espécie de diário, e escreveu cartas para Alberto Bosch, amigo de infância e gerente do Moinhos Rio da Prata. Bosch estava com ele no dia do sequestro. Jorge não sabia que as cartas nunca chegaram ao destino, muito menos que Bosch havia sido morto no ataque, assim como o motorista Pérez. Com frieza e sem rodeios, Firmenich deu a notícia a Jorge. Triste e enraivecido, Jorge rasgou suas anotações.