BUENOS AIRES,

QUINTA-FEIRA

19 DE SETEMBRO DE 1974

Oito da manhã. O espaçoso e potente Ford Falcon cinza seguia pela Avenida Libertador, principal acesso a Buenos Aires na zona norte. Ao volante, Juan Carlos Pérez, 34 anos, 12 como motorista. Ao lado dele, Alberto Bosch, o gerente do Moinho Rio da Prata, subsidiária do conglomerado Bunge & Born. No banco traseiro, Juan Born, 39 anos, e seu irmão, Jorge Born, 40, futuro presidente da empresa

Cena do crime: a falsa caminhonete de manutenção de gás tripulada pelos sequestradores abalroou o automóvel Ford no qual viajavam os irmãos Born

Liam os jornais do dia, com notícias sobre o assassinato do ex-vice-governador de Córdoba Atílio López. O crime foi atribuído à Aliança Anticomunista Argentina, a Triple A – grupo de extermínio de extrema direita. Com apoio militar, a Triple A era comandada por José López Rega, ministro do Bem-Estar Social, guru espiritual da presidente Isabelita Perón. El Brujo, como era conhecido, deixaria o governo no ano seguinte, acusado de desvios de recursos, e seria preso uma década depois.

Naquela época, o peronismo estava rachado, e os radicais de esquerda, como os montoneros, haviam voltado as costas para a presidente, indignados com a perda das rédeas do país – mergulhado em arrocho salarial, inflação de 300% ao ano e desabastecimento.

Quinze metros atrás do carro dos irmãos Born, dois seguranças com formação policial-militar em outro Ford Falcon escoltavam os empresários. Os Born só saíam de casa para trabalhar. A Argentina sofria uma onda avassaladora de sequestros (foram 150 em 1973). Entre os reféns, executivos de Coca-Cola, Swissair, Kodak e Peugeot. Seis em cada 10 dirigentes estrangeiros tinham abandonado o país.

Pelo gigantismo, a Bunge & Born também estava na mira. Os alvos iniciais eram o presidente, Jorge Born pai, 74 anos, e o vice, Mário Hirsch, 63. Mas foram descartados por causa da idade. Não resistiriam aos rigores do cárcere. O foco, então, se fixou nos filhos. Sem saber, Juan e Jorge já haviam escapado de duas tentativas de sequestro porque saíram de casa fora do horário habitual. A terceira não falharia.

Chamado de Operação Mellizas (palavra em espanhol para gêmeos bivitelinos), o sequestro estava sob a responsabilidade da Coluna Norte, cujo secretário-militar era Rodolfo Galimberti. A execução coube a Roberto Quieto, oficial do alto escalão montonero, antigo combatente das Forças Armadas Peronistas (FAP). A rotina dos Born foi estudada pelo serviço de inteligência montonero, do qual fazia parte o jornalista e escritor Rodolfo Walsh.

Convocaram 30 combatentes que não se conheciam e os dividiram em cinco equipes com tarefas distintas. O grupo recebeu instruções cinco dias antes, em um único encontro, num camping. No dia do sequestro, parte dos guerrilheiros foi levada ao local com olhos vendados para não reconhecer o percurso.

Os carros dos Born estavam a um quilômetro da Quinta de Olivos, residência oficial da presidência, quando se avistou no cruzamento da Avenida Libertador com a Rua San Lorenzo um cavalete com semáforo portátil, indicando uma escavação na tubulação de gás. Três "operários" acenavam bandeiras, obrigando os Ford Falcon a desviar à direita. No meio da quadra, na contramão, surgiram dois veículos. Um Dodge se atravessou na frente do carro da escolta. O veículo dos Born seguiu, mas foi abalroado por uma caminhonete Chevrolet. Disfarçados de policiais e armados com metralhadoras, 10 guerrilheiros simularam ação contra subversivos e gritavam:

 

– Comunistas filhos da puta!

 

Os seguranças não tiveram tempo de dar explicações. Foram rendidos e desarmados. O motorista Pérez e o gerente Bosch procuraram o botão de pânico, mas rajadas de tiros atravessaram o para-brisas. Os dois tombaram mortos. Juan e Jorge desceram do carro. Juan tentou correr, mas foi dominado. Os falsos policiais cobriram os rostos dos Born com capuzes e os jogaram dentro de um outro automóvel que arrancou em alta velocidade. Tudo havia ocorrido em um minuto e 45 segundos.

Os irmãos Born foram levados para os fundos de uma carpintaria, na periferia de Buenos Aires. Durante três meses o lugar havia sido preparado, com dois buracos de seis metros quadrados para esconder os reféns. Trancafiados nos cubículos, Juan e Jorge desconheciam o destino um do outro – não sabiam que estavam separados apenas por uma parede.

O lugar era escuro, abafado, forrado com chapas de poliestireno, e isolado para impedir qualquer contato. Cada cativeiro tinha só uma cama, uma cadeira e um pequeno bico de luz que permanecia quase o tempo todo desligado. Os irmãos vestiam camiseta e cueca. Com os rostos encobertos, os carcereiros abriam a porta apenas para entregar as refeições e um balde com água. A água servia para beber e para o banho.

E o balde, de penico. Os irmãos ouviram que a empresa era inimiga do povo, por isso, seriam submetidos a um julgamento popular. A sentença: pena de morte ou multa milionária. Prevaleceu a segunda opção. Além de ato político, o sequestro tinha o objetivo de bancar dívidas e engordar o caixa montonero. A organização precisava de dinheiro para montar bases, comprar armas, imprimir jornais e panfletos e pagar 1,2 mil combatentes.

VEJA O MAPA DA EMBOSCADA
O ORIGINAL FOI PUBLICADO NA REVISTA EVITA MONTONERA, EM 1975