As novas vítimas

da Kiss

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Dois anos depois da maior tragédia do Rio Grande do Sul, surgem problemas graves de saúde em sobreviventes que não tinham manifestado sintomas. A cada mês, de três a cinco novos casos são registrados

 

reportagem

edição

JULIANA BUBLITZ

HUMBERTO TREZZI

FÊCRIS VASCONCELLOS

SABRINA PASSOS

fotografia

vídeo

design

ANDRÉA GRAIZ

DIOGO PERIN

MARCELO CARÔLLO

PARTE 1: Novas Vítimas

 

Volnei Dassoler

psicanalista e coordenador do Acolhe Saúde, serviço de atendimento público das vítimas da Kiss

CHAMAS DA BOATE KISS continuam a espalhar sofrimento e a fazer vítimas, mesmo após a destruição da danceteria, há dois anos. O fogo causador daquela que se tornou a maior tragédia gaúcha matou 242 pessoas — 235 no dia 27 de janeiro de 2013 e sete nos meses seguintes. A maioria por intoxicações decorrentes da fumaça que tomou conta do ambiente da casa noturna em Santa Maria.

Outras 680 vítimas receberam atendimento médico imediato. A maior parte por problemas respiratórios, que foram diminuindo no decorrer de dois longos anos de tratamento contínuo. Outros, por abalos emocionais, que se manifestaram de pronto e foram amenizados mediante atendimento psicológico ou psiquiátrico.

Um terceiro grupo de vítimas só agora começa a aparecer. São homens e mulheres que saíram do caldeirão da Kiss sem maiores problemas físicos ou psicológicos e, de tempos para cá, ficaram doentes.

"Muitas das vítimas tentam levar a vida e assimilar o que aconteceu, mas não conseguem. A manifestação de sintomas tardios significa o reconhecimento do limite pessoal para lidar com a tragédia."

 

Rosa Maria Wolff

médica do Centro de Referência de Saúde do Trabalhador (Cerest)

ZERO HORA PROCUROU 160 PESSOAS que sobreviveram ao incêndio. Algumas se negaram a falar, mas pelo menos 12 que se dispuseram a relembrar o episódio revelam: estavam bem nos primeiros meses pós-tragédia e recentemente adoeceram.

Alguns manifestaram sintomas tardios de depressão e também de transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), tipo de ansiedade que costuma atingir vítimas ou testemunhas de tragédias e gerador de diversos distúrbios. Esses pacientes costumam reviver a calamidade com a mesma sensação de dor e sofrimento que ela gerou, sob a forma de alterações fisiológicas e emocionais, como enxaquecas, insônia e pesadelos.

Outros foram atingidos fisicamente. Apresentaram sinais de envenenamento pela fumaça química liberada no incêndio. Alguns, meses após a tragédia. Outros, mais de um ano depois. Na forma branda, sofrem com rinites e sinusites. Nos casos graves, enfisemas e falta de ar constante.

Conheça quatro vítimas tardias da Kiss

PARTE 2: O bombeiro e o enfisema

Dilmar Lopes

bombeiro

 

ASSAVAM POUCOS MINUTOS das 2h30min de 27 de janeiro de 2013 quando o telefone tocou no quartel dos bombeiros de Santa Maria. Incêndio em boate — e dos grandes, avisou um PM. O sargento Dilmar Lopes, 47 anos, entrou no primeiro caminhão. Bombeiro há três décadas, estranhou porque não viu fogo para fora da Kiss, só fumaça. Dezenas de pessoas já estavam deitadas na calçada em frente à danceteria, algumas mortas. Outras caíam sobre os bombeiros, literalmente. Balbúrdia geral.

Dilmar diz que nos primeiros minutos ficou na porta da boate, puxando pessoas, ajudando voluntários que estavam lá dentro. Quando viu que o grande problema era a fumaça, o sargento teve ideia de abrir um buraco. O local escolhido foi o teto, por onde poderiam "fabricar" uma chaminé improvisada. Ele e colegas subiram no telhado e, com instrumentos, rasgaram o zinco e quebraram cimento, tijolos e gesso a picaretadas. Logo um rolo de nuvem preta e tóxica os engolfou. Era a fumaceira sendo liberada, repleta de gases venenosos.

Dilmar Lopes

bombeiro

 

socorristas

Os socorristas representam importante contingente nos que atuaram no resgate às vítimas — mais de 300 PMs, integrantes do Exército e da Aeronáutica, trabalharam na madrugada de 27 de janeiro. Desses, 139 foram atendidos por médicos nos primeiros dias, alguns com lesões pulmonares agudas. Para esses foram ministrados antídotos e, em casos graves, oxigênio em hospitais. Meses depois começaram a aparecer casos crônicos no Hospital da BM de Santa Maria: 17 buscaram tratamento de pulmão (a maioria não tinha sintomas logo após o incêndio) e 22 por problemas emocionais surgidos com o tempo.

Dilmar fez exames e nem precisou internação. Meses depois, ao fazer teste no espirômetro (aparelho que mede esforço para respirar), desmaiou. Aí o médico diagnosticou enfisema (inflamação pulmonar e perda da capacidade respiratória). O sargento se assustou. Começou a tomar medicamentos, antibióticos.

Em paralelo, a tristeza veio à tona. Deitava e via vultos de jovens desesperados, clamando por ajuda na Kiss. Teve de tomar antidepressivos — algo que sempre achou ser "medicamento para louco".

Hoje, Dilmar está melhor. Os pulmões estão mais limpos e ele voltou a atuar em incêndios. Mas as imagens dos mortos continuam a assombrá-lo. Teimam em não sair da retina, assim como a preocupação de uma nova recaída.

“Tonteei e pedi para descer. Fui ajudado por colegas. Caminhei até uma ambulância, fui medicado, respirei oxigênio, e o doutor me aconselhou que fosse a um hospital. Recusei. Repousei um pouco e depois continuei no ginásio, triando vítimas, até as 20h daquele dia.”

“Chegamos à boate em dois ou três minutos, e eu fui um dos primeiros a entrar. Não tinha labareda. Era praticamente só fumaça.”

PARTE 3: O efeito das dioxinas

 

Rosa Maria Wolff

médica do Centro de Referência de Saúde do Trabalhador (Cerest)

“O cianeto tem uma ação aguda, mas também provoca reações que vão aparecer ao longo do tempo, em seis, sete meses, porque causa micro lesões no organismo, principalmente no cérebro e nos pulmões."

OSA MARIA WOLFF, médica do Centro de Referência de Saúde do Trabalhador (Cerest), que auxiliou no atendimento a vítimas do incêndio, relata que uma análise detalhada da fuligem acumulada na danceteria apontou mais de uma centena de substâncias tóxicas — 17 delas comprovadamente cancerígenas.

Desde então, o que mais preocupa a equipe de Rosa é a identificação de grandes quantidades de dioxinas na poeira preta e espessa que cobria o piso do estabelecimento. Dependendo do organismo e do nível de exposição, esses compostos químicos podem causar uma série infindável de problemas, por vezes, 15 a 20 anos depois.

Outro motivo de preocupação é o contato com o cianeto, o mesmo gás usado nos campos de concentração nazistas. Na Kiss, ele foi liberado com a queima da espuma instalada no teto e nas paredes da casa noturna. E foi a causa da maioria das mortes.

PARTE 4: Asma, 22 meses depois

Patrícia Bandeira da Silva

enfermeira

 

MA DAS VÍTIMAS TARDIAS do cianeto é a enfermeira Patrícia Bandeira da Silva, 30 anos. Ela estava perto do palco, por volta das 2h30min, quando viu uma multidão se empurrando em direção à saída.

Patrícia foi logo atendida numa ambulância. A noite de festa, ao lado de amigos, se transformava em pesadelo. Ela estava em choque, com dificuldade de respirar. Ficou uma semana hospitalizada, usando oxigênio engarrafado para normalizar os pulmões. Tomou anti-inflamatórios e foi liberada do hospital. Voltou à vida normal e aos bailes.

 

Patrícia Bandeira da Silva

enfermeira

“Lembro de caminhar lá fora, não lembro como saí. Parecia um filme, com aquele monte de gente caída. Um horror.”

Agora Patrícia teme novas recaídas e anda com bombinhas contra asma a tiracolo. Conhece as sequelas, até porque trabalhou em hospitais. Apesar disso, não perde o sorriso nem exibe sintomas de depressão. Voltou à normalidade e continua a sair com amigas. Juntou uma meta aos planos que já tinha como enfermeira: cuidar de si e dos demais sobreviventes da Kiss.

PARTE 5: O isolamento do segurança

André de Lima, o Baby

segurança

 

UITOS, AO CONTRÁRIO DE PATRÍCIA, não tiveram sintomas físicos. O principal problema, nesses casos, foi psicológico. Entre eles, está a história do segurança André de Lima, o Baby, 39 anos. Desde a fatídica madrugada de 27 de janeiro de 2013, ele guarda com angústia a imagem da multidão saindo da boate em desespero. Baby cuidava da portaria. Passados dois anos, ele vive abaixo de remédios.

 

André de Lima, o Baby

segurança

Na época, com hematomas pelo corpo, se arrastou em direção à rua. Não conseguiu prestar socorro às vítimas. Atordoado, decidiu ir para casa, no bairro Chácara das Flores, em Santa Maria. Só procurou atendimento médico no dia seguinte, em um posto de saúde. Ficou em observação por 10 horas e foi liberado.

A reviravolta ocorreu cerca de meio ano depois da tragédia. O segurança conta que passou a se isolar em casa. Diz que até tentou voltar a trabalhar em outra boate, mas não conseguiu ficar. Certa noite, um apagão deixou o estabelecimento às escuras. O segurança ouviu as pessoas dizerem que a sua presença "dava azar". Não voltou mais.

A situação piorou porque Baby deu depoimentos que incriminaram os donos da boate. Delatou más condições, superlotação e falta de dispositivos de segurança. Por conta disso, ele se sente perseguido. Teme represálias.

Preocupados com a situação dele, que só piorava, familiares procuraram ajuda no Acolhe Saúde, o serviço de atendimento público criado para dar suporte às vítimas da Kiss. Na época, uma equipe de profissionais foi até a casa dele. Desde então, o porteiro faz tratamento contra depressão.

 

“Tomo mais remédios do que a minha mãe, que tem 68 anos. Faço isso todo santo dia, de manhã, de tarde e de noite, e não posso falhar, porque se não sou capaz de pirar.”

PARTE 6: Sequelas de uma sobrevivente

UTRA VÍTIMA DA BOATE que perdeu as contas de quantos remédios é obrigada a tomar todos os dias é a técnica em enfermagem Aline Jacobsen, 27 anos. Os problemas começaram seis meses depois do incêndio. E ainda não pararam de aparecer.

Naquela noite, a técnica em enfermagem estava na boate para se divertir com uma amiga. As duas chegaram juntas. Escolheram um local em frente ao palco, na área vip, onde encontraram um conhecido que estava de aniversário. Decidiram ficar ali para dançar. O clima era de festa.

Pouco antes das 2h30min, a amiga de Aline disse que ia ao banheiro fazer uma ligação. A companheira de balada preferiu esperar. Elas sempre andavam juntas. Foi a única e última vez que se separaram. Em cinco minutos, o fogo teve início.

Na época, apesar do trauma, a técnica em enfermagem não precisou ser internada. Sofreu apenas escoriações nas pernas e, nos dias subsequentes, teve de fazer sessões preventivas de nebulização. Não teve maiores problemas físicos, apenas psicológicos.

 

Aline Jacobsen

técnica em enfermagem

 

Aline Jacobsen

técnica em enfermagem

A falta de ar fez com que a sobrevivente procurasse atendimento no Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidentes (Ciava) do Hospital Universitário de Santa Maria. Desde então, ela recebe acompanhamento permanente e toma vários tipos de medicamento.

Além dos problemas respiratórios, passou a sofrer crises diárias de enxaqueca em agosto de 2014. Fora isso, não pôde mais abrir mão dos antidepressivos.

“De tanto remédio, tive de tomar mais medicações por causa dos efeitos colaterais. Uma coisa puxa a outra. Agora vou ter de fazer uma endoscopia para ver como está meu estômago, porque os exames detectaram deficiência de vitaminas e isso pode ter relação com uma úlcera ou gastrite”.

MAS O QUE MAIS ATORMENTA Aline não são as doenças físicas, que alteraram abruptamente a sua vida. A principal fonte de angústia tem relação com os altos e baixos decorrentes do trauma psicológico. Tudo o que ela queria era ter a amiga de volta. Como isso não é possível, tenta retomar a vida. Busca forças para recomeçar.

“Minha vida mudou completamente desde a tragédia. Tive de me acostumar com uma rotina da medicação, de manhã, de tarde e de noite. Para onde vou, tenho de carregar tudo comigo.”

PARTE 7: Busque ajuda

ARA OS MÉDICOS que atuaram na tragédia e que seguem prestando atendimento às vítimas, o desafio é outro. Eles precisam convencer os sobreviventes de que não podem descuidar da saúde, principalmente por conta das substâncias tóxicas presentes na fuligem que muitos inalaram. Entre elas, 17 compostos químicos comprovadamente cancerígenos, que ainda podem causar danos pelas próximas duas décadas. Se não houver prevenção, novas vítimas da boate Kiss podem continuar surgindo, ano a ano.

 

Rosa Maria Wolff

médica do Centro de Referência de Saúde do Trabalhador (Cerest)

Serviço

onde procurar ajuda

O Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) mantém o Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidentes (Ciava), que oferece atendimento prioritário às vítimas da Kiss, via SUS, com profissionais especializados.

 

Como buscar atendimento

Existem três caminhos para acessar os serviços do Ciava: por meio da Secretaria de Saúde do município onde o paciente reside, por meio da 4ª Coordenadoria Regional de Saúde (na Rua André Marques, 675, em Santa Maria) ou diretamente no Hospital Universitário, nos dias e horários informados a seguir.

Onde fica

O Ciava fica na ala 1 do setor ambulatorial no Hospital Universitário de Santa Maria (Av. Roraima, prédio 22 do campus da UFSM, no bairro Camobi). É no térreo, ao lado da portaria principal.

 

Horário de atendimento

Para consultas de acolhimento (primeira vez), o Ciava funciona segunda e terça-feira, a partir das 16h. Para quem já é paciente, as consultas são diárias, conforme o agendamento feito pelas diferentes especialidades.

 

Telefone de contato do Ciava

(55) 3220-8540

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