cicatriz começa no pescoço e desenha o corpo de Pablo por mais 14 centímetros, tórax abaixo. Não são todos que podem vê-la. Reserva a surpresa para os pacientes que, aflitos, remanescem na lista de espera por um novo coração. O médico, residente em cirurgia cardíaca, é, ele próprio, um transplantado. Hoje, como uma prova viva da esperança, ajuda aqueles que estão enfrentando o mesmo problema pelo qual passou, 11 anos atrás.

Uma ressonância definiu tudo. No hospital para investigar uma pneumonia, aos 18 anos, acabou por descobrir uma doença cardíaca congênita: a displasia arritmogênica de ventrículo direito, responsável por 20% das mortes súbitas cardíacas em pessoas com menos de 35 anos. O tecido muscular do órgão se transforma em gordura, alterando sua forma e tornando irregular e insuficiente a frequência dos batimentos.

O diagnóstico, decretado no último ano da escola, interrompeu seus planos de fazer vestibular para Medicina, um desejo de criança. Sempre quis ser médico. Entre os cinco anos em que permaneceu no aguardo por um coração que pudesse substituir o seu, tornou-se um fiapo humano: media 1m81cm e pesava 58 quilos. A ligação que salvou sua vida veio em dezembro de 2003.

— Era muito delicado ter de esperar a morte de alguém para eu poder viver. Achava aquilo uma baita sacanagem. Até que passei a ver a situação de outra forma: eu emprestaria meu corpo para que alguém pudesse continuar vivo, dentro de mim — diz ele, com gratidão ao doador, de quem só sabe sexo e idade: um homem de 27 anos.

Quando ganhou alta, Pablo anunciou à equipe do Instituto de Cardiologia (IC) que recuperaria o tempo perdido de estudos até ser aprovado em Medicina. Conseguiu, dois anos depois. No fim da faculdade, foi estagiar no mesmo hospital que o acolheu durante a fase difícil, onde participou de vários casos cirúrgicos, mas sem a sorte de presenciar um transplante do porte do seu. Até o último dia de treinamento.

O telefone tocou às 23h30min. Era um dos cirurgiões da equipe, fazendo a pergunta que tanto esperou ouvir:

— Queres nos ajudar em um transplante?

A resposta era óbvia. Pablo participou da captação do coração do doador e da implementação do órgão no peito de quem precisava, um aposentado de Rio Pardo chamado Erni Sebastião Barros, que lutava contra uma doença cardíaca há 15 anos e estava havia sete na lista de espera.

— Aquilo mexeu muito comigo. Poder passar boas energias para o paciente tocando literalmente no seu coração é uma coisa muito emocionante.

 

Três semanas depois, Erni teve alta. Pablo, que já estagiava em outro hospital, voltou ao Instituto de Cardiologia para lhe apertar a mão. Cúmplices da mesma história, firmou-se uma relação de pai e filho. O aposentado foi até à formatura do médico, no fim daquele mesmo ano, 2012. Mantêm contato até hoje.

Aliás, atualmente, o médico está de volta ao quadro de cirurgiões do IC. Cursa o terceiro dos cinco anos da residência em cirurgia cardíaca e, ao revelar sua cicatriz, tranquiliza os pacientes angustiados. Sua marca tornou-se útil.

— Com 11 anos de transplante, fica mais fácil vender a ideia — brinca.

Pablo sabe como é se sentir inseguro. Mesmo com a alegria de um coração novo, fica a apreensão de deixar o hospital para encarar o mundo lá fora sem auxílio médico permanente. Conheceu um paciente que, já em casa, tinha medo de dormir e, em um movimento inconsciente, "amassar" o órgão recém-transplantado. Queria voltar para o hospital. O médico lhe demoveu da ideia.

— Tenta dormir de barriga para baixo. A gente acha que vai quebrar, que é frágil, mas isso não acontece, não. Não precisa ter medo — aconselhou, com propriedade.

O jovem residente, aos 33 anos, hoje é também um ativista da doação de órgãos. Recomenda que todos deixem dito aos familiares sobre o desejo, no caso das mortes cerebrais, de ceder um pedaço de si. Para quem ainda está no aguardo de um gesto dessa grandeza, um conselho:

— Seja qual for sua religião, mentalize o que significa a palavra fé: acreditar que vai dar certo.

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