Se o abrigo fosse uma prisão, Paula seria uma detenta reincidente. Mas não pelo mesmo crime. Ao contrário da primeira vez em que buscou a Casa atrás de socorro, não estava com edemas pelo corpo — embora a sequela no olho permanecesse ali, para lembrá-la das agressões passadas. Da última vez, recorreu ao abrigo para interromper a tortura psicológica.

Formado em Direito e servidor público federal, o então companheiro de Paula havia optado por uma nova estratégia de violência - que não deixa marcas na pele, mas que dificilmente serão esquecidas.

— Me xingava de negra, desgraçada, vagabunda, pobre. Fazia questão de dizer que eu precisava dele para tudo — lembra ela, que abandonou o emprego e a cidade natal para acompanhar o marido, transferido para Porto Alegre.

Paula só pôde voltar ao abrigo porque assegurou às funcionárias do Viva Maria que havia mantido em sigilo o endereço da casa. Chegou lá pela mesma porta de entrada da primeira vez, a Delegacia da Mulher. Mas preencheu requisitos diferentes na ficha cadastral: estava sem usar cocaína, com um filho a mais nos braços e um diploma universitário em Serviço Social.

Fora as tarefas diárias compartilhadas, como limpeza da casa e cuidado das crianças, Paula quase não convive com as outras moradoras do abrigo, sequer divide a sua história. Reclama do tratamento igualitário oferecido pelas funcionárias, que, segundo ela, é balizado pelas mulheres que apanharam a vida inteira e que repetem a violência com os próprios filhos.

— É como se eu fosse parecida com elas, então falam igual comigo e com meus filhos. Falam alto, são grosseiras.

Por isso, prefere se isolar e passar o máximo de tempo com as crianças. Entre um choro e outro, confessa que tem medo de titubear e voltar para o ex-companheiro.

— O que não sai da minha cabeça é o início. Porque era bom. Precisei de um chacoalhão para entender que ele fingiu por um tempo, mas nunca foi o príncipe que eu achei que era.

O choque de realidade veio da terapeuta do abrigo Lúcia Fasolo, a quem chama de "anjo". Foi a ela que confidenciou pela primeira vez o momento em que começou a deixar de gostar de si mesma: aos nove anos, quando fora estuprada por um tio, pego em flagrante durante um jantar de família. A partir desse dia, os irmãos deixaram de respeitá-la, e a mãe não deu o acolhimento de que ela precisava.

Depois das conversas com a terapeuta, Paula começou a recuperar, aos poucos, a autoestima. Voltou a pentear os cabelos e a tomar banho diariamente - algo que teve de ser imposto de início pelas funcionárias. Contrariada com regras como essa, lamenta:

— Ele ficou em casa, e eu tô presa aqui.

Após sete anos de violência, vê como única saída fugir para longe.

— Tô vivendo ainda o luto de um homem vivo. Quero que ele morra pra mim. Para ver se isso vai embora.

Após 11 dias no abrigo, Paula foi viver em outro Estado com os dois filhos.