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NESTA REPORTAGEM
40 anos de um time iluminado
O Inter de 1975 não foi apenas um time vencedor. Não se limita ao título brasileiro, o primeiro da história do futebol gaúcho, o mérito da equipe de Figueroa, Falcão, Carpegiani e Valdomiro. Comandado por Rubens Minelli, o time marcado pelo Gol Iluminado na final contra o Cruzeiro trouxe inovações táticas que ajudaram a mudar o futebol brasileiro. A seguir, você verá no que aquele Inter inovou e como se formou um grupo de jogadores inesquecível.
REPORTAGEM
André Baibich
andre.baibich@zerohora.com.br
Jones Lopes da Silva
jones.silva@zerohora.com.br
Leandro Behs
leandro.behs@zerohora.com.br
Leonardo Oliveira
leonardo.oliveira@zerohora.com.br
EDIçÃO
Leonardo Oliveira
Edição de vídeo
Luan Ott
Marcelo Carollo
DeSIGN
Leandro Maciel Michel Fontes
O futebol total
dos campeões
Beira-Rio, 14 de dezembro de 1975, 10 minutos do segundo tempo. Valdomiro ajeita a bola para bater a falta do lado direito, na goleira do antigo placar eletrônico. As arquibancadas abarrotadas do Beira-Rio parecem sentir a chance e rugem aos gritos de "Colorado! Colorado!".
Pouco antes, o árbitro Dulcídio Wanderley Boschillia apitara a infração após ouvir o grito do camisa 7 ao sentir a carga de Piazza.
- Nos tiraram um campeonato no grito - reclama até hoje o ex-volante do Cruzeiro que cometeu a falta, cada vez que encontra Valdomiro.
Figueroa sobe para marcar o Gol Iluminado. Chileno tinha convicção de que marcaria no momento em que a falta foi assinalada
Confiante, o capitão Figueroa correu para a área com Hermínio.
- Lembro que eu disse para o Hermínio: "Vou fazer este gol". Não sei o que houve, senti que ia acontecer - lembra.
Uma equipe inovadora, que trouxe ao futebol nacional conceitos até hoje tomados como modernos, estava a instantes da consagração.
A arrancada para o título começara no início de 1974, com a chegada de Rubens Minelli para comandar uma equipe de base já consolidada. A virtuosa geração forjada no clube, com Falcão, Escurinho, Paulo César Carpegiani e Jair, entre outros, fora reforçada por contratações pontuais, como a do líder e capitão Figueroa, trazido em 1971. Um Inter forte, sob o comando de Dino Sani, recuperou a hegemonia estadual com títulos em sequência sobre o Grêmio, mas faltava dar o passo seguinte. O clube se armava para conquistar o Brasil.
Desde o início do trabalho, o novo treinador mostrava convicção de que seus comandados precisavam marcar lá na frente, apertando o adversário. Era o que hoje se chama de "marcação alta". Zagueiros e volantes rivais não podiam ter vida fácil. Retomar a bola no campo de ataque era uma obsessão.
Antes de consolidar a estratégia, porém, havia um compromisso dos mais espinhosos pela frente. O calendário atrasado do Brasileirão de 1973 reservava confrontos da fase final da competição no início do ano seguinte. O Inter era um dos integrantes do quadrangular que decidiria o campeonato.
Uma das feridas mais doloridas de um grupo vencedor estava prestes a se formar. Em fevereiro de 1974, o Inter perdia de virada para o Palmeiras, no Morumbi, por 2 a 1. No primeiro gol dos paulistas, reclamou de uma falta na origem do lance que o árbitro Arnaldo Cezar Coelho deixa passar.
Técnico Rubens Minelli conquistou os jogadores com suas ideias inovadoras
- A gente sentia que já estava maduro para ganhar. Foi uma derrota muito sofrida - conta o ex-lateral Cláudio Duarte.
Ao longo de 1974, Minelli trabalhou para recuperar a confiança de um grupo um tanto abalado pela decepção no Morumbi. E o mais importante: incutiu no time alguns de seus conceitos inovadores. Foi ajudado por duas contratações: o experiente goleiro Manga, 38 anos, figura histórica do Botafogo de Didi, Garrincha e Nilton Santos, além de ídolo no Nacional, do Uruguai, e o habilidoso e genioso ponta-esquerda Lula, do Fluminense.
O arquiteto do Inter campeão até hoje nega que sua inspiração tenha sido a célebre seleção holandesa batizada de Laranja Mecânica, que naquele mesmo ano assombraria a todos na Copa do Mundo. Sua ideia de "abafar" a saída de bola do adversário era anterior:
- Eu já tinha essa convicção quando trabalhava na base do Palmeiras e na seleção paulista de juvenis.
Para que o time entendesse rapidamente o que queria, Minelli contou com o auxílio de um grupo de inteligência acima da média. Dos titulares campeões brasileiros, sete se tornariam técnicos após o fim da carreira (Cláudio, Figueroa, Vacaria, Caçapava, Falcão, Carpegiani e Lula).
- Isso foi extremamente importante. Apertar a saída do adversário exige muito trabalho e a consciência de como se deve ocupar os espaços - avalia Carpegiani.
Grupo com jogadores de inteligência acima da média ajudou Minelli
O posicionamento era ajustado a partir de imagens capturadas por um fotógrafo profissional contratado pelo clube. Minelli apresentava slides aos jogadores e mostrava acertos e erros. Aos poucos, a blitz colorada se aperfeiçoava.
- Foi um diferencial porque não se tinha muito o costume de fazer isso no Brasil. Era algo que surpreendia - lembra Figueroa.
Superar os questionamentos naturais da implantação de algo novo tornou-se fácil por conta dos resultados. Minelli convenceu torcida e imprensa a partir de uma campanha avassaladora no Campeonato Gaúcho. Enquanto ainda ajustava a marcação na frente em treinos e jogos, o Inter patrolava adversários.
Escurinho foi o artilheiro do Inter no título gaúcho de 1974
As boas trajetórias no Estadual e no Brasileiro deram reconhecimento nacional. Valdomiro e Carpegiani foram chamados por Zagallo para a Copa. Lá, o meia foi convertido em volante _ só assim teria espaço em um time com Rivellino. E sofreu na pele os efeitos do "abafa" holandês, que Minelli aos poucos buscava implementar no Beira-Rio. Na semifinal da Copa de 1974, o Brasil foi sufocado e derrotado pelo time de Cruyff e Neeskens.
- Eu via aquilo admirado, mas ainda não entendia muito bem como funcionava - lembra Carpegiani.
Além da pressão lá na frente, o Inter ajustava movimentos para trocar passes e envolver os adversários em triangulações. Escurinho, um dos meias, se beneficiava das jogadas fortes pelos lados. Com ímpeto para entrar na área e posicionamento preciso, empilhou gols de cabeça a caminho da artilharia do Gauchão, que o Inter venceu com 100% de aproveitamento.
Ainda assim, o Brasileiro de 1974 escapou das mãos mais uma vez no quadrangular final. O Vasco de Roberto Dinamite levou a taça.
Beira-Rio, 14 de dezembro de 1975, segundo tempo. O placar marca 1 a 0 para o Inter diante do Cruzeiro, e o time mineiro não se amedronta. Ao contrário, ameaça.
Joãozinho vai para cima de Valdir, que substitui o lesionado Cláudio. Minelli planejara todo o jogo para que o rápido e golador atacante Palhinha não fosse alimentado. Por isso, parar o ponta-esquerda era um dos pontos chave para a vitória.
- Eu me destacava mais na marcação mesmo. Naquele jogo consegui anular bem o Joãozinho, não o deixei passar - recorda-se Valdir, hoje um senhor de 66 anos que ainda corre como zagueiro em jogos entre amigos.
Decisão diante do Cruzeiro foi truncada e difícil
Até o gol de Figueroa, o jogo é truncado, fechado, com poucas chances. No primeiro tempo, o Inter chega com chutes de fora da área de Chico Fraga e Falcão, ambos defendidos com tranquilidade por Raul.
Depois de aberto o placar, o Cruzeiro busca o empate e dá o contra-ataque. Lula perde duas boas oportunidades. Do outro lado do campo, era preciso tomar cuidado com a bola parada. A bomba de Nelinho era um perigo. Foram duas faltas cobradas pelo lateral, com chutes em curva defendidos espetacularmente por Manga, que tiraram o fôlego dos colorados enquanto contavam no relógio os minutos para o apito final.
- Joguei com o Didi, que tinha a "folha seca", mas o Nelinho batia melhor na bola. Ele chutava com perigo de perto e de longe - lembra o ex-goleiro.
Euforia toma conta dos colorados após o apito final
O alívio, acompanhado de euforia, só veio após cinco minutos de acréscimos angustiantes.
Antes da chegada de Minelli, no fim dos anos 1960, já se iniciara outra revolução: a da preparação física. Os extenuantes trabalhos de Gilberto Tim garantiam o fôlego privilegiado, e mais um componente já estava inserido no cardápio: a força.
Os primeiros aparelhos de musculação usados pelo Inter foram fabricados nas oficinas do próprio clube. Havia a ideia, inaugurada pelo grupo de dirigentes apelidado de "Mandarins", de que só a técnica não seria suficiente. Era preciso aliá-la a outras valências, entre elas, a força física. À mudança é atribuída a quebra da hegemonia gremista no Estado nos anos 1960.
O talentoso grupo da década seguinte seguia "puxando ferro", e ainda enfrentava trabalhos físicos com requintes de crueldade comandados por Tim. Entre eles, longas corridas sob as árvores do Parque Saint-Hilaire, em Viamão.
Corridas no Parque Saint-Hilaire deixavam jogadores extenuados
- Nós tínhamos fôlego para correr por 200 horas, não 90 minutos - lembra Jair.
O preparo irrepreensível propiciava a Minelli incentivar as trocas de posição entre os jogadores. Ficar parado era proibido quando o time tinha a bola.
A experiência de Carpegiani como volante na Copa permitia que se revezasse com Falcão na proteção à zaga. Enquanto um se preocupava com a saída de bola, o outro era meia ao lado de Escurinho. Na frente, Lula ajudava na articulação e saía da esquerda para o meio. Quando a jogada terminava, era difícil saber qual a posição original de cada um.
Cláudio Duarte não se conforma quando ouve que aquele grupo jogava "por amor à camisa":
- Essa é a maior mentira. Nós éramos totalmente profissionais. O salário era mais curto, e, quando a gente perdia, significava ficar sem o "bicho". Era quando a gente fechava a porta do vestiário e quebrava o pau mesmo. A cobrança era forte até acertar.
Não havia relação próxima de amizade entre todos do elenco, e sim afinidade um pouco maior entre alguns pequenos grupos. Eventuais desentendimentos, porém, nunca passavam para dentro do campo. E o clima era bom.
Jogadores se abraçam no vestiário após a conquista.
Relação entre os atletas era boa
Quando o jogo era domingo, a concentração começava já na quinta-feira nos alojamentos do Beira-Rio. O grupo ajudava os funcionários com vaquinhas e recebia mimos como troco. Como a figura da nutricionista inexistia, o cardápio era negociado direto entre os jogadores e as cozinheiras. Que cuidavam dos ídolos como filhos.
- A gente chevaga na cozinha e pedia: "Hoje queremos o "ali na mesa'" - conta Claudião se referindo ao bife à milanesa, sucesso entre os jogadores. - A comida no dia do jogo era controlada, mas antes era "boia" mesmo - completa o ex-lateral.
Quando o assunto era negociar prêmios e outros temas com a direção, o capitão Figueroa tomava a frente. A posição que o chileno levava à diretoria saía sempre de uma discussão entre os líderes. Havia, também, um canal aberto de diálogo com Minelli.
- Ele ouvia tudo. Estava sempre disposto a saber o que a gente pensava sobre o trabalho e como planejar os jogos - elogia Figueroa.
O bom ambiente foi testado em uma excursão extenuante pela Europa no início de 1975. No fim de fevereiro, a delegação embarcou para 14 jogos em 37 dias. Passou por Bélgica, Inglaterra, Itália, Alemanha e Turquia.
Inter empilhou jogos e gols na intensa excursão pela Europa
Carpegiani e Escurinho negociavam a renovação de contrato e ficaram em Porto Alegre. A diretoria chegou a usar a proximidade da excursão como instrumento de pressão, para que assinassem pelos valores propostos.
- Estava muito tranquilo da minha decisão porque era profissional. Tinha muito claro na cabeça o que queria nas negociações - diz Carpegiani.
De contratos finalmente renovados, os dois se reintegraram à equipe que seguiu em toada firme no Gauchão e no Brasileirão após a viagem. No meio do ano, chegava a grande contratação: Flávio Minuano. Centroavante formado no clube, ele voltava depois de passagem de sucesso no Porto-POR. Na estreia, em julho, fez o gol da vitória em um Gre-Nal. Um mês depois, em outro clássico, dessa vez o decisivo do Gauchão, voltou a ser herói ao marcar na prorrogação do triunfo por 1 a 0. O Inter era heptacampeão estadual. Igualava o recorde gremista (1962 a 1968). Mas queria mais.
No Brasileirão, a campanha era sólida: o time passou pela primeira e segunda fases na primeira posição de seu grupo. Na terceira, que classificava à semifinal, ficou atrás do surpreendente Santa Cruz. Ainda assim, a vaga entre os quatro melhores do país estava garantida.
Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 1975. No hotel que servia de concentração do Inter, Rubens Minelli chamou os jogadores para mostrar provas de que o Fluminense, adversário da semifinal no dia seguinte, calçou o salto alto.
O grupo ouviu gravações de entrevistas do presidente do clube, Francisco Horta, e do técnico Didi, o Folha Seca, ex-meia lendário do Botafogo e da Seleção. Os dois já projetavam a final com o Cruzeiro.
As declarações casavam com o clima festivo que cercava os cariocas. O Fuminense era chamado de "A Máquina". Com razão. Tinha Rivellino, Paulo César Caju, Carlos Alberto Torres, entre outros. Vinha de atropelar o Palmeiras sem piedade.
Caçapava entrou no time para ajudar a parar Rivellino
Minelli preocupava-se em parar dois dos destaques do Flu. Sabia que Rivellino não poderia ter liberdade para armar. E temia a movimentação em diagonal do ponta-direita Gil, pela potência rebatizado como "Búfalo Gil". Para cuidar de Rivellino, colocou Caçapava no lugar de Escurinho. Reforçou a marcação no meio-campo e deu maior liberdade para Falcão e Carpegiani. Gil ficaria a cargo do zagueiro Hermínio quando saísse do lado, onde era vigiado pelo lateral Chico Fraga, para o meio.
Comunicados da mudança na formação por Minelli e dos cuidados que deveriam tomar, os jogadores mantiveram a praxe e pediram alguns minutos para discutir o tema. Sem o chefe. Mas foram surpreendidos pela ira de Escurinho com a decisão do treinador:
- Não venham pedir para eu entrar e resolver o jogo quando estiver 3 a 0 pra eles.
O reserva de luxo foi repreendido pelos companheiros enfurecidos. Passados alguns minutos após o início do jogo, viu-se que a previsão apressada de Escuro não se confirmaria.
Logo no primeiro lance, o maior temor de Minelli quase se concretizou: Rivellino lançou Gil na direita, e o ponta entrou em diagonal com liberdade para finalizar para fora. O susto parece ter acordado o Inter. O que aconteceu dali em diante provou que o time agora dominava todos os inovadores conceitos de seu comandante.
- O Fluminense não conseguia passar do meio-campo. A gente avançava e os pegava lá na frente _ lembra Carpegiani.
Carpegiani finaliza para marcar o belo segundo gol no Maracanã
Ao "abafa" se somava a troca de posições, responsável pelo primeiro gol. Carpegiani recebeu como um ponta-esquerda, rente à linha lateral, enquanto Lula estava pelo meio. Ao perceber que Lula havia disparado em direção à área, o meia colorado o acionou com passe precioso, usando o lado externo do pé. Lula acertou um chute cruzado de primeira.
Se o primeiro gol veio da movimentação coletiva e coordenada de um time bem treinado, o segundo é uma ode ao talento. Carpegiani recebeu na área e deu dois toques na bola para marcar: o primeiro serviu para livrar-se do marcador com uma meia-lua. O segundo foi por cobertura, para vencer o goleiro Félix, que saía. O Inter estava na final, e decidiria no Beira-Rio, junto ao seu torcedor.
Beira-Rio, 14 de dezembro de 1975, 11 minutos do segundo tempo. Enquanto se prepara para a cobrança, Valdomiro lembra da combinação dos treinos. A primeira bola cruzada vai no primeiro poste, a segunda, no segundo poste. Era a primeira, então tinha de ir no primeiro. Figueroa e Hermínio, a dupla de zaga convertida em artilharia aérea, também sabia o destino da bola.
Ela sai na medida dos pés do camisa 7, o símbolo da redenção colorada, contestado na chegada ao clube, no final dos anos 60, e depois convertido em ídolo. O cruzamento não saiu tão forte para ficar longe de onde queria mandar, mas também nem tão fraco que facilitasse o corte dos zagueiros adversários.
Figueroa, o mesmo que tinha convicção de que faria o gol antes do cruzamento, sobe absoluto. Sua cabeça é iluminada por um feixe de luz improvável que se imiscuiu por entre as frestas da marquise. O testaço saiu firme para dar ao Inter e ao Rio Grande do Sul o primeiro título brasileiro.
Loucura no Beira-Rio: Figueroa marca o Gol Iluminado
A história do futebol, afinal, sempre terá espaço para pitadas sobrenaturais, mesmo na consagração de um time que venceu por qualidades tão "terrenas" quanto estratégia, planejamento, disciplina e inovação.