Publicado em 21 de agosto de 2015

Contrariando previsões médicas e depois de sofrer dois abortos, Daiani Melisa da Silva Dias, 35 anos, encarou uma gravidez de risco elevado – estava diabética e hipertensa. Uma ultrassonografia deu uma preocupação a mais: havia alta probabilidade de o bebê ter síndrome de Down

REPORTAGEM

Larissa Roso

larissa.roso@zerohora.com.br

EDIçÃO

Ticiano Osório

Greyce Vargas

 

Design

Diogo Perin

 

IMAGENS

Félix Zucco

Júlio Cordeiro

 

EDIçÃO DE VÍDEO

Luan Ott

 

Oanúncio veio às 19h20min daquela segunda-feira, oito minutos depois da primeira incisão na pele da paciente. Testemunha próxima da aflição de Daiani Melisa da Silva Dias ao longo das 39 semanas de incertezas da gravidez de alto risco, o obstetra Gustavo Capovilla da Silva sabia ser o portador da mais aguardada das notícias, a boa-nova que por grande parte dos 35 anos de vida da assessora parlamentar não passara de um sonho com tons de impossível. No bloco cirúrgico do Hospital Unimed, em Novo Hamburgo, o médico, que decidira antecipar a cesariana ao constatar, horas antes, o princípio do trabalho de parto, exultou:

— Vamos conhecer então a dona Luiza!

Mesmo imune à dor do umbigo para baixo pelo efeito da anestesia raquidiana, Daiani, com a visão limitada por um lençol verde que se erguia à frente do rosto, inquietava-se com o cheiro de queimado provocado pelo contato do bisturi elétrico que rompia sucessivas camadas em direção ao útero. Surpreendeu-se com o impacto no corpo dormente: sentiu quando o bebê foi retirado do ventre. Luiza Dias Gonçalves estava ali, era real, não mais apenas uma chance remota. A filha tão desejada representava, a um só tempo, uma proeza admirável e uma contestação — Daiani era incapaz de enumerar quantas vezes fora desencorajada com a sentença de que não poderia gerar uma criança devido à série de complicações de saúde diagnosticadas desde a infância. Na noite do último 15 de junho, cercada pela equipe que auxiliava Gustavo, a parturiente não encontrou tradução mais precisa para o que experimentava. A palavra era esta: realidade. Após sofrer dois abortos e, na terceira tentativa de manter a gestação, descobrir que o feto apresentava os indícios de uma alteração cromossômica cuja gravidade determinaria a morte ou a sobrevivência, Daiani, diabética e hipertensa, estava a segundos de conhecer a filha. Desejada com ardor, Luiza deixava a condição de bebê idealizado. Nascia.

— Tá aí a pequenininha! — seguiu o obstetra na narração emocionada.

Depois de erguer o bebê à altura do olhar da mãe, Gustavo o entregou nas mãos do pediatra, que deu início aos primeiros exames em uma mesa lateral. Em breve, Daiani saberia se a filha encarnava, de fato, a suspeição mais forte: síndrome de Down. O risco elevado apontado por uma ultrassonografia, seis meses antes, jamais abalara o amor desmedido, sem pré-requisitos, que ela nutria pela filha.

Desde abril, Zero Hora acompanha o cotidiano da família de São Leopoldo para retratar a expectativa pela chegada da criança que, em um cenário de tantas dificuldades, passou a ser chamada de milagre. Esta é a história de Daiani e Luiza.

O desejo e o choque

Um histórico de problemas no aparelho reprodutor, que exigiu cirurgias e um tratamento quimioterápico para combater um tumor no útero, levou diversos médicos procurados por Daiani a concluir que a maternidade era um projeto inviável para ela.

— Você não vai poder ser mãe.

— Acredito que você não vai ter a possibilidade de ter um filho.

— Seria uma irresponsabilidade. Nem tenta.

O desejo voltou a se fortalecer quando um obstetra a acolheu com uma frase diferente:

— Enquanto houver a vontade, há possibilidade.

Daiani descobriu a primeira gestação no mesmo instante em que sofreu um aborto. Acabara de retornar da lua de mel, em 2012, e contava seis ou sete semanas. Um ano mais tarde, veio a segunda gravidez, que avançou até a 16ª semana. A nova perda fez com que a assessora parlamentar e o marido, o comerciário Everton Luis Gonçalves, desistissem da ideia de um filho biológico. Pouco depois de se dirigir ao fórum para iniciar um processo de adoção, no ano passado, Daiani engravidou pela terceira vez. A suspeita foi levantada pela mãe dela, Rosângela, que achou a filha diferente.

— Você está grávida — palpitou.

— Ah, e eu não ia saber se estivesse grávida? — desdenhou Daiani.

— Você está enorme de gorda! — falou a dona de casa, sem pudores.

— Eu emagreci oito quilos! — indignou-se a filha, concentrada em uma dieta antes de embarcar de férias para uma praia do Nordeste.

Em novembro, dois testes de farmácia e um de sangue transformaram a desconfiança em "positivo". Na primeira ecografia, a gestante ouviu o batimento cardíaco do feto de oito semanas. Paulo, pai de Daiani, fez uma promessa: para que o neto enfim vingasse, ele se comprometeria a assistir à missa de cura da Igreja Santa Catarina, toda primeira segunda-feira do mês, até o parto, e durante um ano a partir daí, com a criança nos braços.

Começou então o acompanhamento obstétrico regular. O exame que marcaria em definitivo o futuro da gestação, e principalmente o da família que receberia aquele bebê, foi agendado para 22 de dezembro. Quando Daiani compareceu à clínica para retirar o resultado, soube, na recepção, que o médico gostaria de conversar com ela.

— Apareceram alterações — revelou ele.

Daiani e o marido, Everton, no pátio de casa, em São Leopoldo, com o cachorro Malandro

Aferida na região da nuca do feto, a medida da translucência nucal ajuda a estimar o risco para síndromes cromossômicas. Se a espessura for igual ou superior a 2,5 milímetros, considera-se que o risco é elevado. Trata-se de uma probabilidade, a ser confirmada com outros procedimentos. No caso do filho de Daiani, a medição apontou 4,8 milímetros. "Alto risco para trissomias", lia-se na conclusão no laudo. A trissomia mais comum cogitada ali era a do cromossomo 21, conhecida como síndrome de Down. As células do corpo humano têm 23 pares de cromossomos — são 23 cromossomos do pai e outros 23 da mãe, totalizando 46. No Down, em vez de dois cromossomos no par 21, existem três, o que dá um total de 47. Menos frequentes e muito mais graves, as trissomias do 13, a chamada síndrome de Patau, e a do 18, a síndrome de Edwards, também despontavam como ameaças.

O jorro de informações excessivamente técnicas atordoou a gestante. O médico mostrou dados e gráficos no computador, e uma pressão forte no peito acompanhava o único pensamento que Daiani conseguiu articular: "O que eu fiz? Por que comigo? Estou preparada? Vou ter condições de ter uma criança especial?" À paciente em prantos, ele fez uma recomendação:

— Não procura nada no Google.

 

Detalhes da ultrassonografia que apontou alto risco para síndrome de Down

Daiani ligou para o marido, que se distraía na residência do bairro Vicentina, em São Leopoldo, lavando o carro e a moto. Everton imaginou amenidades do dia a dia ao atender ao telefonema da mulher — talvez ela estivesse no supermercado, querendo saber se ele desejava algo —, não um estado de choque que quase impedia as palavras.

— Te acalma. Não adianta sofrer por antecedência. Ficar nervosa não vai mudar nada. Só se for para pior — aconselhou o comerciário.

A ligação seguinte foi para a irmã. Chorando muito no trajeto, Daiani caminhou até a prefeitura, onde trabalha a assistente social Taís. Procuraram a privacidade de uma sala vazia. Abalada, Taís não entendeu os pareceres médicos. No auge do nervosismo, Daiani pensou que o bebê teria as três síndromes simultaneamente, o que não é possível. Na tentativa de confortar e encorajar a irmã, Taís sentenciou:

— Se é para ser nosso, é nosso. Vamos encarar.

O casal (ao centro) com a família

Aceitação

Ao entrar em casa, ignorando o conselho recebido na clínica, Daiani fez uma busca na internet. Precisava tentar decifrar o que a aguardava. Chocou-se com o que viu: as imagens associadas à síndrome de Patau expunham crianças com sérias malformações, como fendas nos lábios e no palato e ausência de um olho. Na pesquisa sobre a trissomia do 18, a síndrome de Edwards, destacaram-se danos cerebrais, cardíacos e respiratórios. Ambas as trissomias são descritas como incompatíveis com a vida — o recém-nascido não resiste por muito tempo. Em grande parte dos casos, a morte ocorre ainda no primeiro mês.

— Gerar e depois não ter — assombrou-se a mãe, que se exilou no quarto naquele dia.

O período de consternação coincidiu com as festas de final de ano. Entusiasta da época, Daiani não aproveitou o preparo da ceia e da decoração na casa que costuma se encher de parentes para o Natal. A expectativa pela chegada do nenê que representava tantas estreias na família — o primeiro neto, o primeiro sobrinho — cedeu lugar a previsões sombrias.

A virada para 2015 trouxe também a aceitação. Daiani calcula que o abatimento perdurou por 10 a 15 dias. Com medo de mais um aborto, ela recusou se submeter a uma amniocentese, punção no abdômen para coleta de líquido amniótico que confirmaria ou não uma anormalidade genética no feto. Outra possibilidade, o teste NIPT, capaz de dar o diagnóstico a partir de uma amostra do DNA fetal, ao custo de R$ 4 mil, também foi desprezada. A exatidão oferecida pela medicina não ditaria o rumo da gravidez. Daiani jamais considerou interromper a gestação, opção ilegal a que recorrem gestantes, em sigilo, ao descobrir que levam um filho que escapa à dita normalidade. Para a assessora, não faria qualquer diferença.

— Você vai ser amada com saúde, sem saúde, como vier. Vai ser amada normalmente. Você já era amada antes até de estar aí dentro — garantiu a mãe, conversando com a barriga.

Temendo um aborto, a gestante recusou se submeter ao exame que comprovaria ou não a existência de alterações cromossômicas no bebê

Promessa para o bebê

Exames posteriores descartaram alterações cardíacas e deformidades mais sérias, o que reduziu as probabilidades de as síndromes de Patau ou Edwards serem detectadas ao nascimento. A ultrassonografia morfológica mostrou um pezinho com quatro centímetros que emocionou a mãe. Também comprovou a presença de genitais femininos. O nome: Luiza.

Afastada do emprego para evitar o desgaste do deslocamento diário entre o Vale do Sinos e a Assembleia Legislativa, em Porto Alegre, e com atenção redobrada para controlar o diabetes e a hipertensão, condições que classificavam a gestação como de alto risco, Daiani teve tempo para se concentrar nos aspectos positivos da espera. Curtiu a montagem do quarto, a escolha do papel de parede, os presentes recebidos de amigos e familiares, a confecção das lembrancinhas do chá de fraldas, os paparicos.

— Bebê do paaai! — saudava Everton ao chegar do trabalho, querendo ver a movimentação da criança, certo de que ela se ouriçava com a voz dele.

Mesmo sem a ratificação da aminiocentese, Daiani sentia que gestava uma filha com síndrome de Down. De acordo com o cruzamento de informações feito na clínica em dezembro, o risco fetal para a trissomia do 21 era de um para quatro, ou 25%. Nem por um único dia ela pensou que Luiza não teria Down. Passou a se informar sobre o assunto em sites e comunidades no Facebook e visitou a Associação dos Familiares e Amigos do Down 21, na vizinha Novo Hamburgo. O instinto concedeu à mãe uma vantagem: permitir que se preparasse com antecedência para os desafios que viriam após o parto. Mulheres que recebem a notícia de súbito, na maternidade, precisam digerir o choque ao mesmo tempo em que precisam dar conta de todas as exigências do recém-nascido.

No Brasil, registram-se um ou dois casos de síndrome de Down a cada mil nascimentos. O risco aumenta conforme avança a idade da mãe. Uma mulher com 35 anos no momento do parto, como Daiani, tem uma chance em 375 de ter um bebê com a síndrome. Aos 40 anos, trata-se de uma em cem e, quando a grávida completa 49 anos, há uma chance em 10. Quase metade das crianças apresenta cardiopatias congênitas. Uma das características mais marcantes desses bebês é a hipotonia, o baixo tônus muscular. Mais molinhos, eles podem levar mais tempo para sugar o seio, firmar a cabeça, sentar e caminhar. A estimulação precoce é determinante para o desenvolvimento motor e cognitivo, uma vez que as crianças com Down costumam apresentar deficiência intelectual em maior ou menor grau. Infecções, hipotireoidismo, doença celíaca e complicações na visão e na coluna aparecem com mais frequência.

De acordo com Lavínia Schüler-Faccini, geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, trata-se de uma das síndromes genéticas para as quais o prognóstico melhorou muito nos últimos anos. Contribuiu para isso, de maneira decisiva, o esclarecimento da população. Com o amparo de profissionais de múltiplas especialidades e o fim da clausura — antes chamadas de mongoloides, as crianças viviam trancafiadas em casa —, as pessoas com Down hoje podem frequentar a escola regular, integrar-se à vida em sociedade, trabalhar. O ideal, diz Lavínia, é oferecer oportunidades. O cérebro humano vai se maturando com o tempo — de um indivíduo com Down, espera-se um atraso nesse processo, mas não se pode determinar até que ponto ele será capaz de avançar.

Preparativos: decoração do quarto e adereços para o chá de fraldas

Consulta com o ginecologista e obstetra Gustavo Capovilla da Silva

Paulo, pai de Daiani, reforçou a promessa ao saber que a neta poderia enfrentar problemas de saúde: Daiani e Everton, além de Luiza, teriam de acompanhá-lo nas missas da Igreja Santa Catarina ao longo de um ano.

— Minha filha, tudo que vem de Deus a gente recebe. Acredita, que não vem. Ou você tem uma grande coisa para passar com essa criança ou ela vai vir normal. Ele é quem vai decidir, não os médicos — asseverou Paulo.

Declarando-se conformado com o destino, o aposentado acreditava que o mais prudente, em vez de se perder em elucubrações, era esperar pelos fatos.

— Quantos nascem e sobrevivem? — ponderou. — Se Ele nos der do jeito que estão dizendo, vou fazer o quê? Não vou abandonar, não vou rejeitar. Queira ou não queira, é a nossa neta.

Expectativas

Ainda que extremamente benéfica, a preparação antecipada para a assimilação do diagnóstico não blindou Daiani e os demais membros da família contra manifestações explícitas de preconceito e desinformação. Em meados de março, a gestante encontrou uma amiga de infância na padaria. Concluídos os cumprimentos, a amiga manifestou uma preocupação:

— Aconteceu alguma coisa? Você perdeu o nenê?

Tocando a barriga, Daiani respondeu que estava tudo bem e indagou o porquê da desconfiança.

— Você postava todo dia uma coisinha no Facebook e simplesmente parou de postar. Achei estranho — justificou a interlocutora.

— Não, está tudo bem — garantiu Daiani.

Não convencida, a interlocutora seguiu:

— É verdade que a sua nenê vai ser Down?

Daiani assentiu.

— Ai, Daia... Você queria tanto um nenê e agora vai vir um retardadinho.

A gestante não foi capaz de conter a brusca mudança na fisionomia diante da ofensa à filha. Impactou-a o termo tão pejorativo lançado por alguém bem instruído. Sentiu-se mal com a comiseração inequívoca, mas não revidou a agressão.

— Deus me escolheu — justificou, decidindo excluir a mulher da lista de convidadas do chá de fraldas ao encerrar a conversa.

Por mais que Daiani se mantivesse tranquila quanto às peculiaridades da gestação, tinha de lidar também com a expectativa de quem a cercava. Em uma tarde de maio, no salão de beleza, ela relatava um sonho recente com a filha: por volta dos quatro ou cinco anos, a menina corria pelo quintal, brincando com os cachorros, mexendo em tudo. A assessora sorria ao recordar o enredo imaginário, aliviada com a representação de uma criança ativa e saudável. Retirando o excesso de esmalte dos dedos da cliente, a manicure Luiza Sichelero opinou, quase num sussurro:

— Eu acho que não vai ser Down.

Ergueu a cabeça e falou mais alto, resoluta, mal disfarçando a iminência das lágrimas:

— Não vai ser Down. Eu tenho tanta fé, tanta fé... não vai ser.

Surpresa com a intervenção, Daiani retomou a história que sonhara, desviando do temor manifestado pela amiga.

— Eu lembro que ela estava com um vestidinho creme e com os cabelos soltos, mas não vi o rosto. Lembro do vestido e dos cabelos soltos. Não tinha pensado no rosto...

— Não vai ser — repetiu Luiza.

Daiani começou a chorar.

— É que ela tem um espírito muito bom, sabe? Ela é muito boa de coração, ela é muito boa de tudo — afiançou a manicure, agora chorando também. — Por isso acho que Deus não preparou isso para ela.

A cliente engoliu pesado, limpou o rosto e tentou desanuviar o diálogo com delicadeza:

— Mas talvez não seja questão de preparar. Não é um castigo. É uma coisa boa, é uma forma de crescimento da gente.

— Mas eu ainda acho que não vai ser — insistiu Luiza.

 

"Não vai ser Down. Eu tenho tanta fé, tanta fé... não vai ser", acreditava a manicure

Chega o dia

Com fortes dores, Daiani despertou às 5h12min da segunda-feira 15 de junho. Assistiu a oito episódios da série Criminal Minds, tentando se distrair do tormento das contrações de 40 em 40 minutos. Tomou um medicamento em gotas por orientação do médico. Ansiosa, decidiu seguir para o hospital, onde deparou com uma manifestação de funcionários em greve.

— Só me aparece aqui se estiver sangrando ou correndo água perna abaixo — disparou uma médica.

Ao avaliar a paciente às 14h, no consultório, o obstetra Gustavo constatou dois centímetros de dilatação e contabilizou duas contrações em um intervalo de apenas cinco minutos. Daiani estava entrando em trabalho de parto. Como a gestante passara por uma cirurgia prévia no útero, a opção mais segura era a cesárea.

— Vamos fazer hoje — avisou ele.

Ainda deitada na sala de exames, ela começou a distribuir a novidade, no ritmo veloz que marcaria aquela tarde.

— Vem que a Luiza vai nascer hoje — informou, pelo telefone, ao marido, que estava a trabalho na Capital.

— Ô bisca, a Luiza vai nascer hoje! — contou à irmã, Taís.

Com contrações, Daiani se prepara para partir rumo ao hospital

No bairro Vicentina, a turma ruidosa de parentes acelerou os preparativos para a partida rumo à maternidade. Entrava e saía gente, um conferindo as bagagens, outro pedindo que não se esquecessem das lembrancinhas para os visitantes, o quase vovô Paulo zombando outra vez do exagero de roupas que abarrotava as malas. Malandro, um dos cães de estimação, circulava agitado entre os pares de pernas a lotar a sala. Sentada no sofá, Daiani se contorcia a cada puxão da dor, testa franzida, olhos fechados.

— Calma, filha — pediu ao bebê.

Taís entoou um "tá chegando a hora".

— Assopra, assopra. O médico não ensinou a assoprar? — questionou a irmã, sugerindo um paliativo para a dor.

Faceira, Rosângela lembrou o sonho da noite anterior: enxergara a neta moreninha, comprida, de cabelo crespo e farto. Daiani seguiu comprimindo o ventre, gemendo.

— Olha, já tive pedra nos rins, mas é mais forte do que pedra nos rins. Já vai chegar dando trabalho, né? — perguntou a Luiza, olhando para baixo.

Devido à paralisação de servidores do Hospital Centenário, em São Leopoldo, a cesárea teve de ser transferida para o Hospital Unimed, em Novo Hamburgo. Perto das 17h, temendo engarrafamentos, Paulo convocou o comboio para a viagem. Completadas 39 semanas de gestação, dois dias antes da data prevista, faltava pouco mais de duas horas para que vissem Luiza.

Os pais no bloco cirúrgico, minutos antes de conhecerem a filha

Luiza nasce

No bloco cirúrgico, Everton estava sentado ao lado de Daiani, ambas as mãos acariciando o rosto da mulher. O casal conversava baixinho. Eram 19h20min de 15 de junho quando o obstetra anunciou:

— Vamos conhecer então a dona Luiza! Tá aí a pequenininha!

Ouviu-se na sala o chorinho fino da menina. O anestesista baixou o pano suspenso diante da parturiente e levantou a cabeça dela com a mão. Gustavo cortou o cordão umbilical da criança e a elevou até o campo de visão da mãe. Era o primeiro contato, ansiado por meses. Mais forte, o pranto da recém-nascida preencheu então o ambiente, sobrepondo-se ao tilintar dos instrumentos cirúrgicos e ao bipe do monitor de frequência cardíaca e pressão conectado à paciente.

— Parabéns, gente! — cumprimentou o obstetra de 28 anos, pai de gêmeas de três meses. — Te acostuma com essa trilha sonora agora — disse ele a Daiani.

Pediatra com três décadas de experiência e participação em mais de 10 mil partos, Alexandre Justo fez a avaliação inicial do bebê. Uma enfermeira chamou Everton para conhecer a filha de perto. O comerciário observou a higienização.

— Como você é braba — emocionou-se o pai.

A cor arroxeada começou a ceder, diluindo-se numa tonalidade clara de rosa. Enrolada em uma coberta, Luiza ganhou uma touca. Everton atravessou a sala de cirurgia com a nenê nos braços e a colocou ao lado da mulher. Daiani beijou a testa da menina:

— Oi, meu amor.

Everton seguiu o pediatra a caminho do berçário, onde Luiza foi exibida aos familiares. A parede de vidro impedia a passagem do som, e quem estava do lado de dentro podia apenas observar a coreografia muda de parentes e amigos sorrindo, chorando e fotografando os recém-nascidos. Depois de pesar e medir a criança — 45 centímetros e 2,635 quilos —, Justo começou uma nova série de testes. As síndromes de Edwards e Patau foram descartadas. O pediatra mediu os perímetros encefálico e torácico. Observou os pés, as palmas das mãos, o reflexo da marcha — suspensa na posição vertical, a menina tocou os pezinhos na mesa, sendo levada a simular uma breve caminhada.

Everton acaricia o rosto da mulher enquanto o obstetra Gustavo e sua equipe trabalham

O diagnóstico da síndrome de Down pode ser dado, em grande parte dos casos, logo após o nascimento. Entre os principais indícios estão a diminuição do tônus muscular, o excesso de pele na nuca, o perfil facial achatado, a prega simiesca (uma única linha, e não três, na palma da mão), as fendas palpebrais oblíquas (olhos puxados). Particularidades na implantação das orelhas e na disposição dos dedos dos pés também podem sinalizar a síndrome. Justo achou que o rosto da menina tinha os traços típicos de Down, mas ainda ficou com dúvidas. Ao sair da barriga, o bebê está muito inchado, o que dificulta uma apreciação mais certeira. O médico decidiu aguardar até o outro dia e requisitar também um exame de cariótipo, estudo dos cromossomos realizado a partir do sangue.

Justo se dirigiu até Everton, que estava próximo à abertura onde os familiares seguiam a postos, rentes ao vidro, ávidos por espiadelas.

— As características não me deixam com 100% de certeza de que seja Down. Lembra olhando, parece pela face, mas não vou apostar 100% — explanou. — Não muda nada. O carinho, o amor são iguais. Parabéns — completou.

Embevecido diante do berço aquecido, Everton conferiu os fios claros na cabeça da filha. Celebrando a vitória em uma aposta doméstica, falou sozinho, como se ela pudesse compreendê-lo:

— Vai ter o cabelo vermelho. Haha! Ganhei.

Daiani toca a menina pela primeira vez. Everton conversa com o pediatra e apresenta Luiza na janela do berçário

O futuro

Transferida ao quarto, Daiani comprovou naquela mesma noite a intuição que alimentara durante meio ano.

— Viu que ela tem o rostinho da síndrome? — indagou ela ao marido.

Na visita da manhã seguinte, quase não restaram dúvidas ao pediatra Alexandre Justo, mas a confirmação oficial viria apenas em 13 de agosto, quando Daiani enfim recebeu o resultado do cariótipo. Uma ilustração lembrando os conteúdos dos livros escolares de biologia evidenciava três cromossomos, em vez de dois, no par 21: Luiza, como já estava evidente em dois meses de vida, tem síndrome de Down.

A menina foi homenageada em duas festas de "mesversário" — a cada dia 15, com bolo, velinha, doces, balões e letreiro na parede, a família celebrou a pequena fração do primeiro ano como se fosse data cheia. Os arquivos da mãe somam mais de mil fotografias. Exibido, Everton conta que todos asseguram que a guriazinha de topete é a cara do pai. Daiani resiste.

As celebrações coexistem com uma agenda repleta de compromissos médicos. Em uma consulta de rotina, a ausculta do coração revelou um ruído anormal. Depois da avaliação clínica e de um ecocardiograma, o cardiologista pediátrico Marcelo Brandão da Silva se certificou do diagnóstico: Tetralogia de Fallot. "Tetra" se refere a quatro peculiaridades encontradas na comparação com a anatomia de um órgão normal. Nessa malformação, há uma obstrução ao fluxo de sangue que se dirige aos pulmões, dificultando a oxigenação. Com o tempo, o problema se intensifica e provoca cianose, coloração azulada da pele.

— Vamos ter que operar — comunicou Marcelo.

Sem nunca ter pegado o seio de Daiani, Luiza engordou 800 gramas desde que nasceu, medida um pouco abaixo do que seria ideal. Grande parte das calorias que a criança ingere são gastas no esforço extra do coração para se manter em funcionamento. O leite materno tirado com a máquina de sucção teve de ser trocado por uma fórmula industrializada com custo de cerca de R$ 100 a lata. Para se submeter à cirurgia, considerada de grande porte e com potencial ameaça de morte, o ideal é que o bebê alcance seis quilos em três meses.

Sempre atenta à respiração ofegante da filha, Daiani tem dificuldade em elaborar projeções para além do imediato. Concentra-se em acomodar o preço do leite especial ao orçamento, teme o estado de saúde da neném para a comemoração do próximo “mesversário”.

— É um turbilhão de sentimentos. Medo, choro, desespero, "não vai dar nada", susto — enumerou a assessora parlamentar na segunda-feira passada, quando a família posou para fotos desta reportagem.

Mas é otimista a sensação que prevalece:

— Vejo ela boa, passando por isso, correndo no pátio, enlouquecendo todo mundo. Sei que a medicina evoluiu um monte. Vai passar. Vai ser difícil? Vai. Vai ser complicado? Vai. É uma cirurgia de risco? É. Mas daqui a pouco passa. Saí desesperada do cardiologista, hoje estou mais tranquila. É o que Deus quer? Vambora.

De resguardo, a pequena absorve a torrente de afeto e cuidados dos avós e dos dindos. O avô Paulo está cumprindo a promessa de frequentar as missas, mas ainda sem a neta no colo. Dias atrás, Daiani se ausentou para comparecer a uma festa de aniversário. Com dois álbuns de fotos, viu-se cercada pelos convidados.

— Que linda! — repetiam amigos e colegas de trabalho admirando as poses de Luiza com adereços de flores, fantasia de joaninha, asas de anjo.

O sorriso permanente da mãe, orgulhosa, traduzia um pensamento: "É a minha filha".

Luiza no quarto do hospital

A suspeita se confirmou: Luiza tem síndrome de Down. Diagnosticada com uma malformação cardíaca, a criança deverá passar por uma cirurgia nos próximos meses

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