Publicado em 25 de dezembro de 2015

Noite de Natal

em Porto Alegre

Publicado originalmente em uma edição especial de Natal da revista O Cruzeiro, em dezembro de 1939, conto passeia pelos bairros de uma Porto Alegre de cadeiras na calçada e bares alemães

texto

Erico Verissimo

Escritor

ILUSTRAÇÕES

Gilmar Fraga

Design

Fernando Gonda

EDIÇÃO

Carlos André Moreira

Em dezembro de 1939, uma edição especial de Natal da revista O Cruzeiro trazia, nas páginas 34, 35 e 36, um misto de conto/crônica de Natal assinado por Erico Verissimo (1905 – 1975). Erico já era, na época, um escritor de amplo sucesso, graças à publicação, no ano anterior, do muito popular Olhai os Lírios do Campo. Coordenava também o departamento editorial da Globo, em companhia de Henrique Bertaso e Maurício Rosenblatt. A narrativa passeia por vários bairros da Porto Alegre de 1939, flagrando diferenças sociais e étnicas da cidade ao retratar como tipos característicos de cada vizinhança encaram a noite de Natal. É o retrato de uma Porto Alegre ainda muito germânica, algo que a II Guerra, que naquele ano já havia eclodido na Europa, mudaria muito.

 

O texto foi redescoberto este ano pelo jornalista e pesquisador Vilmar Ledesma, gaúcho radicado em São Paulo. Frequentador assíduo de acervos e bibliotecas, Ledesma encontrou o texto e o enviou à jornalista Alice Urbim, que o reencaminhou à equipe do PrOA. Luis Fernando Verissimo, que tinha três anos na época da publicação do texto, não se lembra de o ter lido antes. O mesmo ocorre com a coordenadora do Acervo Literário Erico Verissimo, Maria da Glória Bordini.

 

No mês em que se completam 110 anos do nascimento de Erico, e com autorização do espólio do escritor, republicamos agora esta noite de 76 anos.

 

As estrelas caíram no Guaíba. Piscam luzes nas ilhas escuras. O motor duma lancha bate surdo e alto como um enorme coração medroso. Junto do cais há uma floresta desgalhada de mastros. A água marulha, mole, bate no costado dos barcos adormecidos. Na proa de um navio alemão que veio de Hamburgo recorta-se o vulto dum homem. Dou uma estrela pelos seus pensamentos: talvez ganhe, em troca, um lindo poema. Dou duas estrelas... três estrelas... todo o céu... Olhe que vou bater... Todo o céu, meu romântico marinheiro, inclusive a lua, as nuvens e os querubins... O homem continua imóvel. Nada feito. Sigo adiante, passo pelos guindastes que não têm Natal. Paro para contemplar um veleiro, vejo luzes lá dentro, ouço vozes, o som duma cordeona. Depois é uma barcaça de carão, uma draga, de novo um navio mercante. Um caíque se aventura rio em fora, um vulto rema sereno, a noite é tão silenciosa ali no cais que julgo ouvir a suave batida dos remos ferindo a água. Decerto aquele homem vai pescar estrelas. É preciso uma grande rede para pescar estrelas. (Quando é que a gente se livra do fantasma de Tagoro?) Jogo o meu cigarro no rio, desejo-lhe um “Feliz Natal!” e sigo para a cidade.

DIÁLOGO

 

– No Norte, o Natal é diferente.... – dizia meu amigo pernambucano.

 

– Este entusiasmo pelo Natal – expliquei – este costume de enfeitar pinheirinhos e fazer que o Papai Noel apareça na véspera de Natal, nos foram trazidos pelos imigrantes alemães. Ensinaram-nos também muitas outras coisas. Algumas boas, outras más...

 

– É curioso. A filha da dona de minha pensão dá a Papai Noel um nome esquisito.

 

– Pelznickel... Era assim que muitas das crianças de meu tempo lhe chamavam... Christkindchen é o Menino Jesus... E não eram só as crianças de sangue alemão que conheciam e usavam esses nomes...

 

Pausa. Continuamos a andar. Aproximamo-nos da rua dos Andradas. Mergulhamos no clarão dos combustores e dos letreiros luminosos. A rua está negra de gente. Dos cafés vem o clamor de vozes, risadas, música...

 

Meu companheiro para debaixo dum grande anúncio a gás neon. Por um instante seu rosto fica purpúreo, e eu penso no conto de Poe A Máscara da Morte Vermelha...

 

BAR ALEMÃO

 

Em cima do balcão de mármore, perto da máquina registradora, ergue-se uma minúscula árvore de Natal. As velas coloridas estão acesas, e os penduricalhos lampejam, refletindo as luzes da sala.

 

As mesas acham-se quase todas ocupadas. Sentamo-nos perto do aquário. Um dos peixinhos japoneses encosta o focinho no vidro, à altura de minha cabeça, e fica me olhando.

 

– São conhecidos? – indaga o meu companheiro.

 

– Ah... conhecemo-nos de cumprimento.

 

Um garçom se aproxima. Pedimos chopes.

 

Uma vitrola arremessa para o salão os compassos duma valsa de Strauss. Aceitamo-la como se aceitam as coisas inevitáveis.

 

Olha em torno. Talvez sejamos os únicos brasileiros puros (puros?) no bar. Só vejo epidermes claras, algumas caras apopléticas, cabeleiras que vão desde o castanho bronzeado e chegam, via-ruivo e cor-de-palha, até o louro de platina. Um minuto de silêncio em homenagem a Jean Harlow.

 

– Prosit! – diz meu companheiro.

 

– Prosit – respondo. E, depois do primeiro gole, ainda com um bigode de espuma, acrescento – Qual! O de que nós dois precisamos é de uma bela nacionalização...

 

As conversas crescem, sobem como ondas quentes. Faz calor. Um senhor gordo passa o lenço pela nuca vermelha, lustrosa e pregueada. Uma vasta senhora ciclópica abana-se com um leque, bate com ele nos seios fartos que decerto já amamentaram algum Siegfried.

 

As paredes do bar estão eriçadas de pontas de cervo. Viva a falta de malícia germânica!

 

Os peixes nadam por entre algas. Faz de conta que elas são as suas árvores-de-natal. Mas... nada de sentimentalismos em torno de peixes.

 

Strauss retirou-se de cena. Agora saem da vitrola os acordes duma doce melodia conhecida. Há como que um vácuo na sala: um súbito buraco de silêncio se abre. E de repente, sem o comando dum maestro, todos começam a cantar “Sttile Nacht, Heilige Nacht...” Parece que se sentem felizes. Mas duma felicidade triste. Lembram-se decerto de Vaterland. E no entanto muitos deles são apenas netos de alemães, nunca viram a Alemanha a não ser em cartões-postais.

 

– Raça... Uma grande coisa, amigo! Mas que perigo!

 

Pegamos o chope e saímos.

 

COMISSÃO JULGADORA

 

Concurso de árvores de Natal instituído por uma grande empresa. Lá vai serenamente dentro dum Lassale a comissão julgadora. Poetas, jornalistas, pintores, escultores e um senhor do comércio local. Visitam as casas que se inscreveram no concurso. São recebidos com amabilidades, doces e bebidas. Na primeira casa, tudo ótimo. Uma linda árvore. Crianças adoráveis. Um casal muito simpático. Passam para a segunda casa. A mesma cena. Mais bebidas. Já o mundo, para a comissão julgadora, passa a ser um estranho lugar cheio de alegrias fumegantes, de gente adorável e da mais absoluta e excitante alegria. Terceira casa. “Agora queremos oferecer aos senhores alguma coisinha para beber...”. Ótima ideia. E lá se vai a comissão julgadora. Quarta casa. O presidente da comissão entra na sala, olha a árvore de Natal e depois chama o secretário para um canto e, com voz arrastada e grossa, lhe pergunta:

 

– Senhor secretário... não acha... não acha... que é um esbanjamento inútil... fazerem... du... duas árvores de Natal?

 

O secretário, que já não pode com o peso das pálpebras, fixa o olhar no pinheiro enfeitado e protesta:

 

– Perdão, Senhor presidente... Duas não... Três!

 

NA FLORESTA

 

Passamos por uma casa de janelas iluminadas. Relanceio os olhos para dentro da sala. Basta aquela visão rápida para eu recompor depois mentalmente a cena. O dono da casa deve se chamar Shultz ou Schmidt. Trabalha numa firma alemã da Rua Sete. Tem três filhos: Willy, Karl e Trude. Estão esperando o Pelznickel... A árvore de Natal vem exercendo suas funções regularmente há seis anos, desde que Willy nasceu. Frau Shultz ou Schmidt fez uma linda cuca. Há dois barris de chope na área. Os rapazes da firma vão aparecer. “Que farra!” – antegoza o senhor Shultz ou Schmidt. Cantarão abraçados canções engraçadas. Pelznickel vai trazer uma boneca para Trude, soldadinhos nazistas para Karl e um avião de bombardeio para Willy.

NA RUA DUQUE

 

É uma casa alta e antiga, com azulejos. Família tradicional. Grande árvore de Natal na varanda.

 

O dono da casa é médico. Tem quatro filhos. Os dois primeiros acreditam em Papai Noel, os outros dois não.

 

O rádio enche a casa de música. Vozes alegres se escapam pelas janelas escancaradas.

 

Dona Maria vai buscar os gelados no refrigerador. Na grande mesa alinham-se pratos com sanduíches, nozes, avelãs, castanhas e passas. Ouve-se o estouro de uma garrafa de champanhe que se abre.

 

Não há canções tradicionais.

 

O senhor nacionalista conversa com um tenente do exército:

 

– Pois é. Precisamos acabar com esses estrangeirismos. Nada de Papá Noel ou de Pelznickel. Vovô Índio... É... Vovô Índio. Que diabo! Temos neve? Temos pinheiro? Isso é coisa para a Europa.

 

– A América para os americanos – obtemperou o oficial.

 

O senhor nacionalista fica um instante pensativo e depois continua:

 

– E porque não promovemos o nosso Negrinho do Pastoreio a Papai Noel? Ficava admirável. Em vez de pinheiro, um umbu... ou outra árvore menor... Bastava acender uma vela para o Negrinho e ficar a pedir um presente...

 

Ficou sorrindo não para o tenente mas para a própria ideia.

 

CIDADE BAIXA

 

Aqui nessa zona de casas melancólicas, pequenas e velhas começou a cidade. Olho indiscretamente para dentro de uma casa de porta e janela e vejo uma árvore de Natal solitária no centro da pequena sala. Luz amarelada a alumiar meia dúzia de caras tristes. Casa decerto de um modesto funcionário público que não foi contemplado no reajustamento. Ele, a mulher, a filha solteirona, a filha noiva ao lado do eterno noivo (que decerto também não foi contemplado em coisa nenhuma nesta vida). Estão tristes e graves, parece que a árvore de Natal é uma criança morta e eles estão ali em silêncio, velando o anjinho...

 

NOS NAVEGANTES

 

Para as famílias que moram nas velhas barcaças encalhadas na praia dos Navegantes não há Natal.

 

NOS MOINHOS DE VENTOS

 

Palacete dum industrialista alemão que ficou rico com a guerra (a primeira). Grande parque com palmeiras, pinheiros e outras árvores que a escuridão e a falta de conhecimento de botânica me impedem de classificar.

 

Janelas fechadas. A fraulein que cuida da casa saiu com o namorado, um mecânico ruivo e atlético. Decerto a esta hora estão bebendo num bar qualquer.

 

Os donos da casa foram passar o Natal na Alemanha.

 

NO BONFIM

 

O Bonfim é o “ghetto”. Lojas, cafés, dois cinemas, judeus velhos sentados nas frentes das casas, barrete negro na cabeça, longas barbas grisalhas ou completamente brancas. Mocinhos e mocinhas a passear nas calçadas. O Centro Social Israelita. Salões de bilhar. Aqui e ali uma casa de família brasileira.

 

Para esta gente Cristo ainda não nasceu.

 

Mas aquela meninazinha que ali está na calçada, de dedo na boca, e que se chama Lea, deita olhares compridos de inveja para a árvore de Natal que cintila na casinha da família brasileira.

 

COLÔNIA AFRICANA*

 

Uma zona em que as fronteiras do “ghetto” e da Colônia Africana se misturam. Começamos a ver negros e negras endomingados para festejar o Natal. Alguns deles foram ao “cabelizador” alisar a carapinha, muitos botaram na cabeça, no lenço, na lapela uma loção que tem um cheiro que lembra o de doce de batatas.

 

A rua é de terra batida cor de rosa. A casa, de tábua. A família é grande e há muitos convidados. A maioria deles se acha no terreiro, debaixo das árvores. Um mulato cabelizado toca um violão. Um preto começa a tocar um samba. O refresco corre a roda (framboesa, naturalmente). Na sala de visitas há um presépio encardido. E também um pequeníssimo e esmirrado pinheirinho cheio de curiosos enfeites: vidros de iodo vazios, lâmpadas elétricas queimadas, colares de contas coloridas, vidrilhos e flores de papel de seda.

 

Tudo indica que a festa vai acabar em macumba.

 

DÚVIDA

 

Nas ruas alguns homens se abraçam e quase todos parecem alegres. Desejam-se bom Natal e muitos aproveitam o pretexto para tomar tremendas bebedeiras.

 

– Eu só queria saber uma coisa...

 

– Que é? – indagou o companheiro.

 

– É se essa gente realmente se lembra que hoje se festeja o nascimento de Jesus...

 

O amigo parou, franziu a testa numa careta de estranheza e exclama:

 

– Mas é mesmo, rapaz! E eu que nem me lembrava disso!?

 

NOTA SENTIMENTAL

 

O Natal do poeta solitário que não tem família nem esperança e que anda pelas ruas como cachorro sem dono a olhar para as estrelas?

 

Oh! Não... Mil vezes não!

 

* A região em que se localizava a Colônia Africana é o hoje bairro Rio Branco (nota do editor)

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