O aborto

dentro da lei

A rotina dos médicos e a experiência das pacientes nos quatro hospitais públicos de Porto Alegre que realizam a interrupção da gravidez nos casos previstos na legislação – na maioria das vezes, estupro

REPORTAGEM

Itamar Melo

itamar.melo@zerohora.com.br

EDIçÃO

Ticiano Osório

 

IMAGENS

Mateus Bruxel

Tadeu Vilani

PRODUÇÃO

Greyce Vargas

DeSIGN

Leandro Maciel

Às 11h de uma quinta-feira, no 5º andar do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, em Porto Alegre, a ginecologista e obstetra Sandra Scalco revisa os formulários e analisa a ecografia de uma paciente grávida. Depois de discutir o caso com colegas da equipe, assina os papéis. Está tudo em ordem para a realização do procedimento.

A paciente, uma universitária que se encontra do outro lado da porta, na sala de espera, é chamada ao consultório de Sandra. As duas conversam por 30 minutos. A médica pergunta como a jovem se sente e volta a apresentar todas as opções disponíveis. A gestante reafirma sua decisão. Também coloca sua assinatura nos documentos. Dali, é encaminhada ao centro obstétrico. Vai se submeter a um aborto pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

O Presidente Vargas é um dos quatro hospitais públicos da Capital que oferecem um serviço médico pouco divulgado e cercado de tabus: a interrupção da gestação nos casos em que ela é autorizada pela legislação brasileira – estupro, anencefalia e risco de vida para a mulher.

ZH visitou esses serviços para saber como funcionam e conhecer quem são os profissionais responsáveis por mantê-los em operação. O Ministério da Saúde não repassou uma lista, mas informou que o aborto “pode ser realizado em todos os estabelecimentos do SUS que possuem serviço de obstetrícia”. No ano passado, segundo o ministério, houve 1.613 procedimentos no país.

A universitária havia procurado o Presidente Vargas uma semana antes. O relato que fez à enfermeira foi similar a muitos outros apresentados no Ambulatório de Sexologia, DSTs e Violência Sexual. Contou ter apagado durante uma festa, possivelmente porque alguém colocara uma droga em sua bebida. Ao acordar, percebeu que alguém fizera sexo com ela. Limpou-se e foi para casa, envergonhada. Nos dias seguintes, retomou sua rotina, procurando convencer-se de que nada acontecera.

Semanas depois, vieram os enjoos, a tontura, as dores de cabeça. Um teste apontou a gravidez, mas a estudante não quis acreditar. Concluiu que o exame estava errado ou havia sido trocado pelo laboratório. Quando não conseguiu mais negar a realidade, procurou o Presidente Vargas. A psicóloga do serviço, Ângela Ruschel, observa que situações assim são usuais, mesmo entre mulheres adultas e com formação superior:

– Elas usam álcool, dormem por causa do “boa noite cinderela” (quando uma droga é ministrada para que durmam), são vítimas de estupro e depois não se lembram de nada. Ficam com vergonha da situação, porque a sociedade recrimina. Elas próprias se sentem culpadas de se ter colocado nessa situação. Não buscam ajuda por vergonha, por medo do que vai acontecer e pela própria negação. Houve uma paciente que falava do seu caso como se fosse um filme que se passava com outra pessoa, porque ela não conseguia aceitar a gravidez acontecendo no corpo dela.

A universitária que ficou grávida faz parte do grupo de uma dezena de mulheres estupradas que realizaram o aborto ao longo deste ano no Presidente Vargas – no começo da década, a média era de um a dois casos por ano, contra 15 em 2014. Depois do acolhimento inicial, vítimas como ela são encaminhadas ao ambulatório de violência sexual. Ali, no 5º andar do prédio da Avenida Independência, perto do centro da cidade, são avaliadas por uma equipe multidisciplinar, formada por médica, psicóloga, enfermeira e assistente social. As conversas ocorrem separadamente, para que as profissionais possam conferir se a mesma história é repetida em todas as ocasiões.

 

A médica Sandra Scalco à frente da equipe multidisciplinar do Hospital Presidente Vargas

 

O objetivo da equipe é se certificar das informações trazidas pela paciente e confirmar que a gestação realmente é resultado de um estupro, o que a tornaria habilitada a realizar o aborto sob o abrigo da lei. A decisão final é tomada de forma compartilhada.

– Como médica, avalio a data da gestação, a data da violência, o tempo de gestação que a ecografia vai mostrar, o relato da paciente e as questões emocionais decorrentes da situação. É para termos segurança. Se a história é desconexa, se as coisas não fecham, se os sintomas não estão de acordo, se a idade gestacional não bate, não há autorização – afirma Sandra Scalco.

 O hospital não dispõe de uma estatística, mas em muitos casos o procedimento é negado. A decisão sempre é tomada em conjunto pela equipe. Os diferentes profissionais se reúnem e apresentam sua avaliação sobre o caso. Se há dúvida, as discussões podem tomar horas. É preciso que todos os participantes cheguem a um acordo.

– Se é uma história confusa, alguém pode pensar: “Ah, elas querem se aproveitar do serviço”. E nós temos de preservar isso, porque este serviço é para uma determinada circunstância. Já aconteceu de eu estar desconfortável com as informações apresentadas e depois, na conversa com a equipe, chegarmos a uma concordância sobre o procedimento – observa Sandra.

Para a realização do aborto, não há exigência de registrar a violência sexual na polícia, mas a equipe do ambulatório sempre sugere que isso seja feito. Em obediência aos protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde, são apresentadas à gestante as opções que ela tem: seguir com a gravidez e ficar com o bebê; seguir com a gravidez e entregar o bebê para adoção; abortar.

A equipe acha interessante que possa haver alguns dias de intervalo entre a primeira visita da paciente e a realização da interrupção da gravidez, para a decisão se sedimentar. Em geral, as vítimas conversam duas vezes com cada profissional. Já houve casos em que a gestante mudou de ideia durante o processo e desistiu do aborto.

– Elas chegam aqui muito confusas, muito atrapalhadas. É um trauma intenso. Com a nossa orientação, com a avaliação que a gente faz, mesmo assim a gente respeita o tempo mínimo de ela poder elaborar o que está acontecendo, porque não é uma decisão simples, por todos os valores culturais que são incutidos em nós, mulheres, desde cedo. Às vezes, trata-se de uma mulher que a vida inteira pensou que queria ser mãe, que tem o sonho de ser mãe, só que naquele momento ela foi vítima de uma violência sexual e ficou grávida. Não é assim que ela queria ser mãe. Imagina a dificuldade de tomar essa decisão – observa Ângela Ruschel.

Vários formulários são exigidos pelo Ministério da Saúde – a mulher precisa fazer uma declaração formal de que está contando a verdade, por exemplo. A universitária cumpriu esses trâmites na consulta final. Quando procurou o hospital pela primeira vez, ela estava em dúvida sobre realizar ou não o aborto. Mas agora, depois de uma semana, está convicta.

– Não tinha dúvida de que não queria essa gestação, mas precisava de um tempo para elaborar isso – ela diz para a médica.

Quando a universitária deixa o consultório, uma auxiliar de enfermagem apanha os documentos e a conduz até uma porta na parte de trás do ambulatório. Ali, seguem pelo elevador até o térreo. Atravessam saguões, alcançam o edifício anexo e sobem ao 10º andar, no centro obstétrico, onde são realizados os partos – e também os abortos.

Antes desse trajeto, a paciente é instruída sobre o procedimento e avisada de que não precisará discutir sua história ou sua opção com mais ninguém.

– Isso é para evitar que, numa situação em que ela está fragilizada, alguém da equipe queira retomar o assunto. Explicamos que, nesse caso, ela só precisa dizer que tudo está descrito na pasta. Fazemos isso porque às vezes ela já teve que passar por vários questionamentos para que o procedimento fosse autorizado.

Se outra pessoa aborda a paciente com esse tipo de discurso, é como se ela sofresse uma “reviolência” – diz Sandra.

A necessidade de que a história do estupro seja repetida várias vezes, comum aos serviços de aborto legal, pode ser incômoda para a vítima de violência, mas costuma ser considerada inevitável. Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família, observa que é fundamental assegurar-se de que a paciente cumpre os requisitos da lei.

– Entende-se que crianças vítimas de abuso sofrem uma revitimização a cada vez que relatam o episódio. Existe o argumento de que isso aconteça também com as mulheres, mas não é a mesma coisa. Até do ponto de vista psicanalítico, à medida que falam, elas podem elaborar o que aconteceu. Além disso, o relato que ela faz é para profissionais habilitados – sustenta Pereira.

No Presidente Vargas, a oposição que parte dos profissionais demonstra em relação ao aborto tem levado a equipe do ambulatório a concentrar o envio das pacientes ao centro obstétrico em determinados dias da semana ou resolver alguma dificuldade pontual apelando a colegas que aceitam fazer o procedimento. Certos médicos, invocando a objeção de consciência, eventualmente por motivos religiosos, recusam-se a executar a intervenção.

 

Acompanhamento

clínico e psicológico

 

Um dos plantões do Presidente Vargas é feito pelas obstetras Débora Espírito Santo e Ingrid Hillesheim. Quando uma paciente que vai fazer o aborto ingressa, elas podem solicitar uma ecografia para confirmar a idade gestacional – já que depende do tempo de gravidez o tipo de procedimento a ser realizado, mais simples ou mais complexo.

 

No Presidente Vargas, a obstetra Ingrid Hillesheim realiza uma ecografia em paciente que foi estuprada

Depois disso, a paciente é encaminhada para uma sala privativa, separada das parturientes. O isolamento tem um duplo motivo. Por um lado, preserva a vítima de violência dos olhares das outras mulheres. Por outro, poupa-a, em uma hora dolorosa, de testemunhar a felicidade das demais no momento de se tornarem mães. É na sala privativa que a paciente faz a preparação do colo do útero – que pode levar horas ou mesmo dias – e espera pelo momento de realizar o procedimento.

Débora e Ingrid somam no currículo milhares de partos, mas apenas um punhado de abortos. Não é uma intervenção que façam com alegria.

– Comparando com a quantidade de partos que a gente faz, interrupção de gravidez é uma situação rara. Graças a Deus, porque a gente não gosta. Fazemos porque tem de ser feito, mas não é o nosso objetivo. Se fosse no setor privado, eu me negaria. Aqui no Presidente Vargas, como aceitei trabalhar em um hospital que é referência nessa área, faz parte. A gente sabe que está fazendo a coisa certa, que é um direito garantido por lei, mas isso não quer dizer que ache bom. O bom é que não precise ser feito – afirma Débora.

Os abortos costumam ser realizados na sala C10, que também é usada para partos. Como qualquer procedimento cirúrgico, afirmam as médicas, o aborto é seguro – o que não significa que está isento de riscos. Podem ocorrer complicações.

– Não é para ser usado de forma indiscriminada. Não pode parecer que é coisa muito simples, vem aqui, faz uma curetagem, vai para casa e vida normal. Não é. Não só em termos de procedimento, mas também psicológicos. Fazer um aborto tem consequências – observa Ingrid.

Após a alta – em geral no mesmo dia ou no dia seguinte –, a paciente é orientada a retornar ao hospital para fazer um acompanhamento de seis meses, que inclui o rastreamento de doenças sexualmente transmissíveis. Ela também pode ter atendimento psicológico pelo tempo que for necessário. A universitária atendida pelo serviço está atualmente realizando esse acompanhamento. Mas muitas mulheres preferem não retornar.

– Às vezes, é muito difícil para a mulher continuar falando no assunto. Ela tem a crença de que, se nunca mais falar, vai esquecer. Mas esse trauma às vezes retorna na forma de outros diagnósticos clínicos, como uma depressão crônica, em razão de ela não ter conseguido elaborar – aponta a psicóloga Ângela.

A ginecologista e obstetra Sandra afirma que, mesmo que alguns setores da sociedade possam recriminar o serviço realizado pela equipe da qual faz parte, essa função é de grande importância social.

– Sabe-se que quem tem condições pode buscar um jeito de fazer um aborto de forma clandestina. Quem não tem fica sem recurso. Então, o serviço de aborto legal é uma coisa de igualdade. Apesar das dificuldades que enfrentamos, acredito no que eu faço e vou lutar da melhor forma possível. Uma mulher ser submetida a uma relação sexual sem que tenha consentido e ainda ter uma gestação em decorrência disso é uma violência brutal. A sociedade não pode se fechar para isso como se fosse algo que não existisse.

Os serviços

em Porto Alegre

• Hospital Conceição (Avenida Francisco Trein, 596)

A vítima de estupro passa por médico, enfermeira, assistente social e psicóloga. O procedimento ocorre na maternidade, por um dos obstetras de plantão.

• Hospital de Clínicas  (Rua Ramiro Barcelos, 2.350)

Na emergência, a mulher fala com o ginecologista do plantão. Passa ainda por profissionais da psicologia, da psiquiatria e da assistência social. Se a gestação é inicial, o aborto será no centro cirúrgico ambulatorial. Se tem mais tempo, no centro obstétrico.

• Hospital Presidente Vargas (Avenida Independência, 661)

O atendimento no Ambulatório de Sexologia, DSTs e Violência Sexual. A gestante faz o relato a profissionais que avaliam se a situação atende ao previsto na legislação. Em caso afirmativo, a mulher segue para o centro obstétrico.

• Hospital Fêmina (Rua Mostardeiro, 17)

O acesso é pela emergência, onde a mulher tem o primeiro contato com um médico. Depois, é atendida por uma equipe multidisciplinar. O procedimento ocorre em um setor especializado em lidar com gestações que não vão resultar em criança viva.

 

A Secretaria Municipal de Saúde diz que não existe um telefone para fornecimento de informações sobre o tema. A recomendação é comparecer em um hospital ou buscar orientação em qualquer unidade de saúde.

 

ONDE BUSCAR ATENDIMENTO NO INTERIOR

ZH solicitou ao Ministério da Saúde informação sobre quantos e quais locais oferecem o serviço de aborto nos casos autorizados pela lei. O órgão não forneceu um número ou uma lista, mas garantiu que "o atendimento pode ser realizado em todos os estabelecimentos do SUS que possuem serviço de obstetrícia no Brasil".

O Ministério também afirmou que, no país, existem 553 serviços voltados à Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual – capacitados a fazer o primeiro atendimento as vítimas, de forma a evitar a gravidez e uma série de doenças.

 

A Secretaria Estadual da Saúde orienta as mulheres a buscar os serviços de saúde do município, que devem encaminhar a um estabelecimento habilitado. A secretaria informa que o único serviço do Interior cadastrado é o do Hospital Geral, de                 Caxias do Sul.

 

Os três casos em que

o aborto é legal

• Quando não há outro meio de salvar a vida da mulher

Dois médicos devem assinar um laudo sobre o risco de vida para a mulher – recomendam-se um obstetra e um especialista na complicação que ela tem.

 

• Quando a gravidez resulta de estupro

Não há necessidade de registro policial, mas os profissionais de saúde devem verificar se há alguma contradição na história antes de autorizar o procedimento. Eles devem realizar uma ecografia para confirmar se a idade gestacional está de acordo com o relato da vítima. Um conjunto de documentos deve ser preenchido e assinado:

Termo de relato circunstanciado

A mulher declara que sofreu um abuso e o descreve. Dois profissionais de saúde assinam como testemunhas.

Parecer técnico

O médico afirma que, com base em exames e documentos, há compatibilidade entre a idade gestacional e a data da violência.

Termo de aprovação de procedimento
de interrupção da gravidez

Três integrantes da equipe multidisciplinar atestam que o pedido de aborto por estupro está em conformidade com a legislação, aprovando sua realização.

Termo de responsabilidade

A paciente assume a responsabilidade penal pelos crimes de falsidade ideológica e aborto, caso as informações que prestou não correspondam à verdade.

Termo de consentimento livre e esclarecido

A paciente declara ter sido esclarecida sobre o procedimento e ter decidido interromper a gestação.

 

• Nos diagnósticos de anencefalia

Em 2012, o STF considerou que não é crime a interrupção de gravidez quando o feto não desenvolve cérebro e cerebelo. Para a realização, são necessárias duas ecografias que comprovem a anencefalia.