Hospital Conceição atende na maternidade vítimas de violência sexual que querem abortar

"Quando tu não acolhes o desejo dessa mulher, significa que ela está sendo violentada novamente pela sociedade e pelo Estado"

Os médicos que trabalham nos serviços de aborto legal consideram a atividade incômoda e desagradável, mas dedicam-se a ela por entenderem que, além de ser um dever, é uma prática de relevância social.

– Não imagino que seja simples ou agradável para algum médico fazer um aborto legal. Interromper uma gravidez com um nenê vivo dentro do útero não é a mesma coisa que drenar um abcesso, que operar um tumor de ovário. É muito pesado. Cirurgião gosta de operar, tem prazer, mas ninguém sente prazer em fazer aborto. Mas tem de ser feito. Temos de garantir o direito da paciente – observa Sérgio Martins Costa, chefe do serviço de ginecologia e obstetrícia do Hospital de Clínicas.

No Clínicas, os procedimentos são realizados em dois setores. No centro obstétrico, ocorrem as intervenções em mulheres com gestação mais avançada. No centro cirúrgico ambulatorial, os casos com menos semanas. De 2013 para cá, a média é de cinco abortos por ano, a maior parte decorrente de estupro, mas também houve alguns casos de anencefalia do feto.

Costa não entra no mérito da discussão ética sobre o aborto, mas ressalta que devem ser oferecidas condições adequadas para sua realização:

– Se a mulher tem direito ou não tem direito sobre a vida do embrião, isso não é um assunto médico. Isso é um assunto da sociedade. É assunto ético, do valor que se dá ou não à vida do embrião, à vida da mulher. Mas se o abortamento precisar ser feito, tem de ser feito de modo seguro.

Esse lugar seguro, entende, é um hospital bem equipado e com uma equipe profissionalizada – e não uma clínica clandestina. Mesmo assim, Costa ressalta que não existe procedimento isento de riscos. Entre as complicações possíveis estão lesões no útero, infecções e risco de parto prematuro em gestações futuras.

Chefe do serviço de obstetrícia e emergência do Hospital Fêmina, Felipe Fagundes Bassols acredita que essas complicações seriam muito menos frequentes se o aborto fosse descriminalizado. Ele diz que, hoje, o médico não pode sequer orientar uma paciente, caso perceba que ela está decidida a abortar – ou estará cometendo um crime.

– A Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) tem pensamento pela descriminalização. É minha opinião também. Se o aborto deixasse de ser um crime, as pacientes seriam melhor acolhidas. Diminuiriam as perdas de útero, as hemorragias e as infecções dos abortos clandestinos – defende Bassols.

No Fêmina, não há um levantamento de quantos abortos são realizados. Neste ano, até setembro, ocorreram 635 curetagens – mas não se sabe que proporção delas estava relacionada com interrupções de gestação previstas na lei. O hospital mantém uma ala específica apenas para as gestantes que não terão o bebê – seja por aborto, gravidez fora do útero ou feto morto. Esse setor, com médicos, enfermeira, psicólogos e assistente social, foi criado para tirar as pacientes do ambiente com mães felizes e bebês chorando.

– Não é agradável de fazer. Mas é o velho “faz parte”. O nosso lema tem de ser o entendimento da paciente. O nosso vem depois – diz a obstetra Sandra Canali, do Fêmina.

 

Atendimento na maternidade

procura amenizar o estigma

 

– Sou católico apostólico romano. Mas aqui a religião não tem de se meter – diz Claudio Campello, responsável pelo setor do Hospital Conceição onde são feitos os abortos.

É a Campello que são encaminhadas as mulheres que se apresentam na instituição e relatam ter sofrido violência sexual. Além do obstetra, a equipe que trabalha com essas pacientes conta com uma psicóloga (Paula Mousquer), uma assistente social (Lisiane Villeroy) e uma enfermeira (Rosiê Fraga de Andrade). Criou-se esse grupo especializado para evitar que as mulheres deparem com profissionais despreparados e para que se ofereça uma conduta uniforme, ágil e humanizada. O quartel-general do time é uma pequena sala no 2º andar do Conceição.

Campello coordena o setor de abortos e a maternidade do hospital – que funcionam interligados. Na instituição, os casos de violência sexual e interrupção da gravidez saíram da emergência e convivem agora com o ambiente onde mulheres dão à luz. Para o responsável, é uma forma de amenizar o estigma.

– Somos o único serviço que atende à violência sexual na maternidade. Isso humaniza a assistência e mostra às pessoas que dar atenção a esses casos está dentro da normalidade de um hospital – afirma o médico.

Nos casos em que a violência resultou em gravidez e a mulher deseja abortar, a equipe inteira entra em ação para avaliar o quadro. Colhe-se o relato da paciente e solicita-se uma ecografia. Se todos os exames e trâmites são cumpridos, ela já é internada para fazer o aborto. O procedimento será realizado por qualquer um dos 25 obstetras que se revezam no serviço. Segundo Campello, nunca houve registro de alguém se recusar.

– Há só uma circunstância em que o médico pode se negar a fazer: se houver outro profissional que faça. Trouxemos o serviço para a maternidade justamente para que todo mundo internalize e veja que fazer o aborto pode cair para qualquer profissional.

A paciente vai chegar com um protocolo com tudo assinado, incluindo um termo de responsabilidade em que isenta o médico e dá fé de que aquilo que está dizendo é real, que ela não está mentindo. E daí qualquer médico pode fazer.

 

Claudio Campello, do Conceição: "Atender vítimas de violência sexual na maternidade humaniza a assistência e mostra que esses casos estão dentro da normalidade de um hospital"

 

Em algumas situações, se todos os profissionais da equipe estiverem de plantão e se as informações forem compatíveis, os trâmites para a autorização do procedimento podem levar apenas oito ou nove horas. Em boa parte das vezes, em 24 horas depois da chegada da mulher, o procedimento está realizado.

Em geral, as mulheres procuram o serviço no começo da gestação. Se comparecem até a 12ª semana, é possível realizar a Aspiração Manual Intra-Uterina (Amiu). Utiliza-se uma espécie de aspirador.

– É muito simples e rápido. São 10 minutos, com risco praticamente zero. O feto inteiro é aspirado. Depois de duas horas, a mulher pode ir embora – observa Campello.

Se a gestação está mais avançada, é necessário um procedimento mais complexo, com anestesia geral, porque o feto já tem ossos. Primeiro é ministrada uma medicação, para expulsá-lo. Depois realiza-se uma curetagem, para que não fique nenhum resíduo no útero. Há risco maior de sangramento e infecção. Por causa da anestesia, é necessário permanecer pelo menos 12 horas no hospital.

O Conceição já realizou abortos em pacientes vindas de variadas partes do Estado, inclusive de municípios situados a centenas de quilômetros de distância, pela falta de serviços do gênero em todas as regiões. A assistente social Lisiane Villeroy cita o caso de uma jovem que procurou um hospital de sua cidade para abortar, mas não teve o direito atendido – na instituição, trataram de dificultar o processo e convencê-la a ter o bebê.

– Ela não estava mais suportando isso e veio para cá. Quando tu não acolhes o desejo dessa mulher, significa que ela está sendo violentada novamente pela sociedade e pelo Estado – acredita Lisiane.

Para o católico Campello, oferecer o aborto às vítimas de estupro é uma questão de solidariedade:

– O cristão tem de perceber que não se trata de uma gestação que foi fruto de união consensual. Não é uma gestação acolhida com carinho, com o coração.

Saiba mais

Como é o

procedimento

• TEMPO DE GESTAÇÃO

A legislação não estabelece até que período da gestação é possível fazer o procedimento, mas em notas técnicas o Ministério da Saúde define abortamento como "a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana de gestação, e com produto da concepção pesando menos que 500g" e afirma: "Não se recomenda a interrupção da gravidez após 20 semanas de idade gestacional. A mulher deve ser informada da impossibilidade de atender a solicitação e aconselhada ao acompanhamento pré-natal especializado, facilitando-se o acesso aos procedimentos de adoção, se assim o desejar."

 

 

• IDADE DA GESTANTE

A partir dos 18 anos, a mulher é considerada capaz de consentir sozinha para a realização do aborto. Entre 16 e 18 anos, a adolescente deve ser acompanhada pelos pais ou pelo representante legal, que se manifestam com ela. Se a adolescente ou criança tem menos de 16 anos, deve ser representada pelos pais ou por seu representante legal, que se manifestam por ela.

 

 

• REGISTRO POLICIAL

Não há necessidade de fazer registro na polícia para receber atendimento e fazer um aborto na rede de saúde. Segundo nota técnica do Ministério da Saúde, deve-se orientar a mulher "a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento".