"Deram todo o apoio do mundo, respeitaram a minha decisão"

Na noite de 28 de fevereiro, uma adolescente de 17 anos, Ensino Médio completo, foi a uma festa no Vale do Sinos. Bebeu, ficou embriagada e perdeu os sentidos – ela suspeita que possam ter colocado em sua taça algo para que dormisse. Quando acordou, estava jogada em um canto. Notou que seu collant se achava aberto. Havia sido violentada.

A adolescente sentiu-se perdida. Culpava a si própria: “Por que bebi ao extremo e deixei que isso acontecesse?”. Em choque, envergonhada, decidiu silenciar. Não procurou ajuda e não contou o episódio a ninguém.

No dia esperado, a menstruação não veio. Testes mostraram que ela estava grávida. O desespero serviu de combustível para finalmente revelar o estupro à mãe, no fim de março.

Enquanto as duas buscavam alguma saída, a garota trancou-se em casa. Queria ficar isolada. Apesar das poucas semanas de gravidez, tinha os sintomas de uma gestação mais avançada: acordava vomitando, sofria enjoos, passava mal. Telefonava o tempo inteiro para o trabalho da mãe, aos prantos.

– Tem uma coisa crescendo dentro de mim! – gritava.

As duas foram a um ginecologista. O médico disse que estava impedido por lei de receitar algo para o aborto, mas explicou que, por se tratar de violência sexual, a menina tinha o direito de interromper a gravidez. A mãe fez sondagens e ouviu o mesmo de outras pessoas, mas todas afirmavam que  primeiro era preciso fazer registro em uma delegacia de polícia – o que, na realidade, não é necessário.

– Se não tiver como tirar, vou ficar nove meses trancada no quarto, para ninguém me ver. E quando vier para fora, não quero nem olhar – desabafava a adolescente.

Mãe e filha decidiram ir à delegacia. A adolescente tinha certeza de que havia sido estuprada por um rapaz que estava com ela na festa. Os policiais disseram que poderiam investigar, interrogar todos os presentes, fazer um exame de DNA. Se batesse com o do suspeito, ele seria preso imediatamente. Mas a vítima não quis que a investigação seguisse adiante.

– Aquela história já tinha me machucado demais. E acredito que Deus tarda, mas não falha. Se esse rapaz fez mal para mim, acho que talvez aconteça coisa pior para ele – afirma.

No dia em que fizeram o boletim de ocorrência, a escrivã encaminhou a garota a um centro municipal de atendimento à mulher. Lá, a assistente social explicou sobre o aborto legal.

– A assistente social falou assim: “Não importa se tu estás embriagada ou não. Ninguém pode se aproveitar da situação. Ninguém tem o direito de ir lá e mexer em ti”. Vi que, independentemente de religião, eu tinha direito. O corpo é meu. Não queria passar nove meses com uma criança na barriga e depois olhar para ela e lembrar de tudo o que aconteceu. Quis tirar.

Com a anuência da mãe e da filha, o centro de atendimento municipal fez contato com o Hospital Presidente Vargas, em Porto Alegre. Ficou combinado que a adolescente iria ao local em uma segunda-feira do começo de abril. No início da manhã, um carro da prefeitura fez o transporte. A mãe e a assistente social foram junto.

 

 

 

 

No hospital, a garota foi ouvida por ginecologista, psicóloga, enfermeiras e mais uma assistente social. Compareceu três dias seguidos. Contou sua história e ouviu que tinha outras opções.

– Tu não queres ter a criança e depois entregar para adoção?

– Olha, minha decisão é esta. É isto que eu quero –  respondeu.

Explicaram-lhe que teria de assinar um termo de responsabilidade e forneceram detalhes sobre como seria o procedimento.

– Até o último momento, você pode desistir – reforçaram.

– Conversei com diferentes profissionais separadamente  Tive, sim, de repetir minha história diversas vezes, mas em um ambiente seguro, limpo, em que fiquei amparada, em que me senti confortável. Deram todo o apoio do mundo, respeitaram a minha decisão, me trataram muito bem. Para eles eu consegui desabafar.

O aborto foi marcado para a manhã de uma quinta-feira. A adolescente devia chegar ao hospital às 8h, em jejum. Ingressou no serviço que atende às vítimas de violência e teve uma última conversa com a médica e a psicóloga. Mais uma vez, foi informada de que poderia desistir a qualquer momento. Ela reafirmou sua vontade.

Às 10h, a jovem foi encaminhada por uma enfermeira ao Centro Obstétrico. Fez uma nova ecografia e foi acomodada em uma sala isolada, de onde ouvia os gritos das mulheres em trabalho de parto. Recebeu uma cápsula e ficou à espera de que ela fizesse efeito: a expulsão do feto. Por volta das 14h, foi encaminhada para a sala de cirurgia. Começou a chorar.

– Como minha mãe não podia ir junto quando fizeram a raspagem, fiquei nervosa. As enfermeiras conversaram comigo, disseram para eu ficar tranquila, me deram a mão, me ampararam: “A gente vai te dar anestesia, tu nem vais sentir”. Senti que estava em boas mãos.

 Quando acordou, após a anestesia, a jovem estava na maca, entrando no elevador, a caminho da sala de recuperação. Haviam dito que ela provavelmente teria de passar a noite no hospital, mas sua recuperação foi rápida – recebeu alta às 19h. A mãe fez um telefonema, e o transporte da prefeitura veio buscá-las. Às 23h, estavam em casa.

Mas o atendimento ainda não havia terminado. Durante seis meses, até recentemente, a adolescente seguiu comparecendo ao hospital para consultar uma ginecologista e uma psicóloga. Também recebeu atendimento psicológico no Vale do Sinos.

– Eles não te largam. A coisa não é “fez, pronto, acabou”. Não te esquecem simplesmente, eles querem saber como vai ser dali para a frente, como tu estás. Isso foi muito importante. Hoje estou forte, porque muitas vezes fui lá e desabafei minha semana.

Depois do aborto, a garota completou 18 anos, começou a frequentar um curso técnico e, em lugar de se afastar, sentiu-se mais próxima da Igreja. Resolveu se crismar e tornou-se mais assídua nas missas, sua forma de agradecer a Deus por tudo ter dado certo. A ideia de jamais casar, engravidar e ter filhos, motivada pelo trauma do abuso, foi se esvanecendo. Hoje ela já sonha em formar família e ter um bebê.

– Se eu não tivesse esse direito (ao aborto), minha  vida teria retardado bastante. Eu ia ter de me virar, vendo sempre aquela criança como uma coisa indesejada. Agora eu posso retomar a minha vida. Essa foi só uma história que ficou para trás.