Caminhada na Sérvia

Refugiados marcham no caminho de chão batido, cercado por capim margeando os trilhos do trem, que em nada lembra a Europa dos cartões postais

Uma névoa encobre o céu quando o trem abre as portas. O dia começa a clarear na fronteira com a Sérvia, às 5h48min. Voluntários distribuem kits com comida a quem desembarca. Roupas espalhadas sobre mesas e caídas pelo chão estão à disposição de quem quiser pegar. É uma oferta de ajuda, mas o cenário é tão caótico que parece desolador. Refugiados vasculham entre as roupas amontoadas caídas sobre a terra à procura de peças quentes. O frio deste início de outono pegou desprevenido o grupo, que começou a viagem no calor. A mãe coloca uma das mantas que cobria os filhos nas próprias costas e começa a caminhar de mãos dadas com Mohammad. O pai vem logo atrás, com a mochila da família. Tala caminha de mãos dadas com o amigo Musa. Não importa que estejam há duas noites sem descanso. Não há parada.

O caminho de chão batido, cercado por capim margeando os trilhos do trem, em nada lembra a Europa dos cartões postais. O lixo emoldura o trajeto, com milhares de garrafas plásticas e embalagens de comida. Rastros dos que passaram antes. Com o peso das mochilas curvando os ombros, tudo que não serve mais é descartado no meio da viagem. Na fronteira da Sérvia, policiais pedem que todas as mochilas sejam submetidas a um raio-X, como nos aeroportos. Ninguém pede documentos, mas todos precisam se submeter ao procedimento, para evitar a entrada de terroristas. Logo adiante, quatro banheiros químicos com cheiro forte de dejetos estão à disposição dos peregrinos.

Ainda estamos longe do destino. Serão mais duas horas de caminhada. O pai carrega Mohammad na garupa e a mochila nas costas. No meio do trajeto, cansado, coloca o filho no chão. Mohammad chora. Quer voltar ao colo. Ghazi insiste. Depois de duas noites sem dormir, seu corpo dá sinais de exaustão.

No meio do percurso, o tio das crianças grita:

– Estamos no caminho errado!

Todos param e olham para trás, assustados.

– É brincadeira – descontrai Adham.

Todos riem. Ele só queria que o grupo o aguardasse: tinha ficado para trás na caminhada. Com piadas como essa, repetidas ao longo da viagem rumo ao Norte, todos tentam tornar mais leves os momentos difíceis.

Quando se aproximam da zona urbana da Sérvia, começam a surgir no horizonte casas – em sua maioria de dois pisos, com pintura colorida e chaminés.

– São tão bonitas – contempla a mãe.

Na metade da caminhada, passam por nós os primeiros táxis sérvios, oferecendo transporte até a estação de ônibus.

– Taxi direct! Taxi, my friend! To bus station!

O pai ignora as propostas, quer manter o grupo unido. Minutos depois, paramos para comer em uma calçada. Estão todos exaustos e famintos. O assédio dos taxistas continua:

– Ten euros per person, ten euros.

Depois de uma parada de 15 minutos, a peregrinação segue. Passamos por um bairro muçulmano, onde meninos gritam da calçada com a saudação em árabe:

– Salaam-u-aleikum (a paz esteja com você).

 

O lixo emoldura o trajeto, com milhares de garrafas plásticas e embalagens de comida

A rua fica mais estreita em uma curva, onde carros passam em alta velocidade e buzinando. De repente, Mohammad se afasta dos braços da mãe e quase é colhido por um carro. O pai se assusta, grita, recolhe o menino para junto de si.

A caminhada parece não ter fim, todos estão no limite da paciência e da força física. Pergunto para o pai quanto falta. Ele estima em um quilômetro. Minutos depois, pede informação para policiais que patrulham a região sem se importar com o fluxo de refugiados.

– Cinco quilômetros – informam.

É uma lomba. As mochilas pesam. As crianças choram, não querem mais caminhar.

Tala pede que Musa a leve nos ombros. Ele está com o braço machucado desde Kos, mas a carrega na maior parte do percurso.

Depois de quase duas horas e meia de caminhada, o motorista de uma caminhonete vermelha oferece carona para levar a família até a estação de ônibus. Ghazi aceita, com a condição de que todos sejam levados. O motorista hesita, pensando que fosse apenas o casal e os filhos. Antes que ele diga não, todos entram na traseira.

Os rapazes brincam, dizendo que o motorista está nos levando para a forca. Todos riem, mas é uma brincadeira pela metade. Um deles, Omar, tira da mochila um disparador de choque de defesa pessoal. Acossados pela guerra, estão sempre vigilantes.

Graças à carona, chegamos em 10 minutos à estação de ônibus. São 8h16min de 23 de setembro. Quatro ônibus de excursões estão enfileirados na chegada, enquanto taxistas tentam convencê-los de que seria mais vantajoso acertar uma corrida com eles até a estação de trem. O iraquiano acha que é uma boa ideia, mas Ghazi o repreende.

– Das coisas da Síria sou eu que entendo – diz.

Ghazi fecha com uma excursão de sírios que vai nos levar até a fronteira da Sérvia com a Croácia. Serão 60 euros por pessoa. No início da viagem, o pai tinha cogitado fazer a travessia pela Hungria, mas as notícias do fechamento da fronteira com a Sérvia e da truculência policial fizeram mudar os planos.

Um dos organizadores da excursão usa uma jaqueta de flores coloridas sobre uma calça com estampa militar. Ammar, o ex-soldado, é quem recolhe o dinheiro de cada um dos integrantes do grupo.

O ônibus parte uma hora depois. Exaustos pela noite maldormida no trem e pela caminhada matinal, todos dormem. Três horas depois, o ônibus para no meio da estrada, com problemas mecânicos. Passageiros tentam descer para aproveitar a parada, mas os organizadores proíbem. Não querem chamar a atenção para o ônibus lotado de refugiados, temendo que alguma fiscalização impeça a continuidade da viagem. É início da tarde e o sol está a pino, fazendo o cheiro de suor impregnar o ônibus de assentos cinzas e aparência envelhecida.

Pergunto a Ammar quanto tempo vai demorar para chegar à Alemanha.

– Uns seis dias. Ou seis meses. Ou seis anos. Você vai voltar velhinha para o Brasil – ri.

Pelo menos quatro ônibus de refugiados estão na nossa frente quando chegamos à fronteira da Sérvia com a Croácia. São 18h30min de quarta-feira, 23 de setembro. O pai acorda o filho e veste a jaqueta. Mohammad chora. Percorremos 20 minutos a pé até chegar ao ponto em que voluntários oferecem ajuda. Há diferentes tendas prestando auxílio, com roupas para as crianças e cobertores do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). São distribuídas caixas com roupas para as crianças, sardinha enlatada, garrafas de água.

– Tem muita gente esperando, vocês precisam ter paciência. Estão liberando aos poucos a entrada. Ninguém sabe quanto tempo – avisa uma das voluntárias, identificada com colete.