Percurso cumprido

Na fila de embarque no trem que os levará ao endereço destinado na Alemanha, os companheiros de viagem fazem planos: aprender alemão, matricular filhos na escola

Pelo menos sete policiais fazem a vigilância no portão principal de acesso ao campo naquela manhã, 28 de setembro. É mais um dia nublado no outono europeu, com temperatura de 6ºC ao amanhecer. Cerca de 1,2 mil migrantes aguardam o registro de seus nomes para poder ingressar no país.

 Às 10h, ainda sigo no périplo à procura de informações do lado de fora, quando um casal de refugiados com um bebê no colo e uma criança pequena se aproxima. Pretendem comprar roupas mais quentes na loja vizinha ao campo. Antes que consigam, são abordados nas escadas do estabelecimento.

– Vocês são ilegais aqui, temos que registrá-los – diz um policial.

– Mas não queremos ficar na Alemanha. Queremos ir para a Noruega – responde o pai da família.

– Não é sua decisão onde você vai ficar. Aqui na Alemanha é passo por passo, você tem que se registrar.

– Então só vamos passar na loja primeiro.

– Não é hora de fazer compras – reprime o policial, conduzindo-os até o campo.

O tom rígido é um dos sinais do endurecimento das regras alemãs diante do fluxo migratório. Depois de a chanceler Angela Merkel ter anunciado a expectativa de receber 800 mil refugiados até o final deste ano e comemorado o fato de a Alemanha “ter se transformado em um país que as pessoas associam à esperança”, o inchaço refreou o discurso. Em 13 de setembro, quando 13 mil pessoas chegaram num único dia a Munique, superlotando a rede de acolhimento, o país anunciou o início do controle de fronteiras. Com isso, suspendeu temporariamente sua participação no Tratado de Schengen, que estabelece livre circulação de pessoas entre a maioria dos países da União Europeia.

Agora, todos os que ingressam na Alemanha precisam ser registrados, um processo que segura os recém-chegados por até dois dias em abrigos nas fronteiras. Depois do meio-dia, uma fila começa a se formar diante do campo. Parte do grupo será transportada de ônibus diretamente para cidades da região da Bavária, enquanto outros serão conduzidos à estação de trem.

Com os pés em solo alemão, parte do grupo que partiu de Kos faz planos para o futuro. Ghazi (D) sonha em relatar tudo

O pequeno Mohammad reaparece no colo do pai com o mesmo suéter marrom que usava desde a Grécia. Tala ganhou um macacão vermelho sobre o blusão listrado que vestiu ao descer do navio em Atenas. Vestem-se com a solidariedade alheia, com as doações recebidas na viagem. A polícia não autoriza que me aproxime nem confirma oficialmente para onde eles serão levados, mas um agente se sensibiliza com a busca da reportagem e avisa que irão para a estação de trem.

Meia hora depois, consigo reencontrá-los na fila do embarque. Ghazi tem o olhar fatigado. A barba rala crescendo sobre o rosto marca o tempo que passou desde o início da jornada pela Europa. Faz exatamente uma semana que saiu de Kos com o sonho de chegar ali.

– Estou cansado, mas minha alegria é maior do que meu cansaço – diz.

Conta que no campo a polícia colheu as digitais de dois dedos de cada um, a pedido da Interpol, para conferir se alguém era terrorista. Garantido o primeiro aval para permanecer na Alemanha, seguirão agora para um destino provisório dentro do país. Eles ainda não sabem para onde vão, o lugar é mantido sob sigilo. O pai pergunta se tenho como descobrir para onde serão levados, mas a polícia não informa. Um agente havia me confessado horas antes que o segredo é para impedir que refugiados possam contestar o destino caso sejam enviados para uma cidade considerada pouco atraente.

Reportagem de ZH se despede de Tala e Mohammad

Apesar da curiosidade, Ghazi garante que estará feliz seja onde for. Já chegou aonde queria, não precisará cruzar nenhuma outra fronteira. O que realmente importa agora para ele não é mais a cidade, e sim poder ver os filhos matriculados numa escola e levar adiante seus próprios estudos com o doutorado. Uma lista de desejos tão simples e ao mesmo tempo tão complexa, que ele enumera na calçada da estação.

_ Quero ser uma boa pessoa. Quero começar passo a passo com os meus filhos, ser um homem correto. Quero que você vá me visitar um dia, quando eu tiver uma casa – convida.

Outro projeto é aprender alemão. Está disposto a fazer do país que o acolheu a sua nova pátria.

– Quero esquecer a Síria, nunca mais voltar.

No meio da fila, Tala brinca com um cachorrinho de pelúcia que ganhou de presente. Coloca o bichinho sobre a garupa, assim como os pais e os amigos a carregaram durante a jornada tantas vezes, rodopiando com ele como se ouvisse música. Mohammad usa uma touca cor de rosa, fica rodeando entre as pernas da mãe, com cara de sono. Desde que deixou a Síria, Ghazi vem tentando reter na memória cada instante da jornada. Assim que tiver um novo lar, pretende escrever sobre a viagem:

– Vou escrever para os meus filhos, para que, quando eu for um homem velho, bem velhinho, eles possam ler essa história e lembrar de mim. Que saibam que eu fiz tudo isso por causa deles.

Às 15h, embarcam num trem vermelho sem saber qual será o destino. Pelo menos desta vez, partem com a confiança de quem já chegou.