Um mar de insônia

Numa viagem de navio que dura uma noite, as histórias de um tio decapitado por fumar durante o Ramadã, poses para fotografias e carteado

Opôr-do-sol colore o céu com tiras alaranjadas quando a família de Ghazi e seus amigos se dirigem para o porto de Kos. É fim de tarde de segunda-feira, 21 de setembro. Carregam suas mochilas e caminham para o navio que os levará a Atenas. Agora, sim, um navio de verdade, com vários andares e luzinhas piscantes. No caminho, Mohammad abre os braços como se estivesse fazendo aviãozinho, levando nas costas a mochila azul do Homem Aranha que ganhou de voluntários. O menino é carregado na garupa por Mohamed Ali, 23 anos, maratonista e lutador de boxe, único iraquiano a se unir aos 10 sírios do grupo. Tala, de cinco anos, vai nos ombros de Musa, o amigo inseparável, com a mochila rosa da Princesa Elsa que também ganhou de presente.

Juntos, os quatro cantam e fazem corações com as mãos no meio do caminho, enquanto o pai confere a documentação dos 11 integrantes do grupo para o embarque. Antes de entrarem no porto, tiram fotos de despedida com a praia ao fundo, símbolo da primeira vitória. Os barcos e as barracas ficaram para trás, é hora de seguir adiante.

 

Ghazi, Razan, Tala e Mohammad no navio rumo a Atenas

Sigo com eles e mostro a minha passagem para o embarque, mas os agentes que conferem a documentação dizem que preciso me dirigir a outra fila. Os refugiados ficarão isolados de um lado da grade, enquanto os demais passageiros têm prioridade de embarque.

– Vem com a gente, vem com a gente! – insistem Mohammad e Tala, alcançando minhas mãos pelos quadrados do cercamento.

– Por que eles ficam separados numa grade? Isso é repugnante – comenta um turista italiano com a namorada, ao ver os refugiados aglomerados na área reservada.

Dentro do navio, porém, o trânsito é livre. Viajando na classe econômica, a maioria dos refugiados fica no salão superior, onde não há camas, mas mesas, cadeiras e sacadas para apreciar a paisagem. A família consegue um dos disputados bancos acolchoados junto à janela para acomodar os filhos. Assim que se instala, o pequeno Mohammad cola as mãos no vidro e contempla a imensidão do mar.

Pelas janelas, é possível enxergar os contornos de Bodrum, na Turquia. O mesmo mar que antes provocava pavor agora é caminho de libertação.

Assim que o barco se afasta da costa, o grupo começa a jogar cartas. A fumaça nubla o ambiente. Todos fumam o tempo todo, algo que em cidades sírias dominadas pelo Estado Islâmico não passaria impune. Um dos integrantes do grupo, Abd Airhman, 18 anos, conta que o tio teve a cabeça decepada por integrantes do Estado Islâmico. Seu crime foi fumar durante o Ramadã, mês dedicado a jejum e orações no calendário muçulmano.

– Meu tio não era religioso, então prenderam ele. Primeiro cortaram os dedos, depois a cabeça – descreve Abd.

No convés do navio que leva o grupo a Atenas, Ghazi e Razan são fotografados no celular por um amigo

Entre uma carta e outra, os moradores de Raqqa contam como é viver na capital do Califado. Se quem é flagrado fumando em público pode ter os dedos cortados, quem ousa vestir jeans ou roupas justas tem as pernas mutiladas a facão. Homens não podem fazer a barba, mulheres devem cobrir o corpo. As escolas foram fechadas, porque o Estado Islâmico não aprova o ensino de disciplinas científicas – nada de biologia ou evolucionismo, nada de história, nada de filosofia, esportes ou artes. O currículo foi refeito para garantir prioridade aos estudos muçulmanos. As imagens de cabeças cortadas em execuções são amplamente divulgadas como estratégia de intimidação aos desobedientes. No cotidiano de medo constante, a população vive ainda em sobreaviso diante da ameaça de ataques das forças em luta.

– Tanto o governo quanto o Estado Islâmico matam sírios. Ficamos no meio dos dois – resume Ghazi, que anota o placar do jogo dos mais jovens.

O carteado prossegue no meio da conversa, para eles não há novidade. Fazem questão de esclarecer que nada disso tem a ver com religião.

– O Estado Islâmico não é muçulmano. Muçulmanos gostam das pessoas, não gostam de assassinos. Nós somos muçulmamos, você tem medo de nós? – pergunta o pai, me oferecendo um copo de café.