Fé traz a terra natal para perto

Do lado de fora de um prédio de alvenaria verde, nos arredores da Parada 16 da Lomba do Pinheiro, ouvia-se uma cantoria ritmada por batidas de palmas, pés e alguma outra coisa difícil de identificar, mas que lembrava instrumentos de percussão. Quem passava pela estreita rua na manhã do último domingo, lançava o olhar para o lado de dentro, buscando entender o que acontecia. A curiosidade era ainda mais aguçada porque a altivez da cantoria revelava um idioma estranho, desconhecido dos brasileiros.

Cruzando a entrada, com aquelas portas de correr para cima, facilmente se decifrava o mistério. Um grupo de 30 haitianos, todos moradores da Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre, transbordava devoção em um culto evangélico. O recinto estava lotado.

O enraizamento dos imigrantes caribenhos no bairro avançou de tal forma que eles improvisaram a criação de uma igreja para atender suas necessidades. Antes, reuniam-se nas manhãs de domingo na casa de Adius Deissier, conhecido como Frankie. Mas o comparecimento de fiéis aumentou, o lugar ficou pequeno e, há dois meses, alugaram um imóvel para as celebrações.

Na parede frontal, do lado externo, a única identificação está numa faixa que diz, em letras miúdas: Núcleo de Oração Maison de Priere. Na parte interna, não há cruz, imagem ou qualquer outro adorno que lembre uma igreja. Tudo é muito simples. Há apenas um púlpito, onde Frankie se posiciona, comandando a jornada com cantos, estudos bíblicos, leituras e pregações em uma cerimônia que se estende das 9h às 12h, aos domingos. A língua mistura francês e crioulo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A religiosidade é pilar fundamental da cultura dos novos imigrantes do Brasil. Embora uma parcela dos haitianos seja praticante do vodu (religião de origem africana praticada no Haiti), é na matriz evangélica que eles se expressam abertamente. Frankie enumera os motivos que levaram os caribenhos a improvisarem sua própria igreja:

– Muitos não entendiam nada nos cultos daqui por desconhecer o português. Não conseguiam louvar a Deus. Gostamos de fazer a celebração pela manhã, mas aqui a maioria acontece à noite. Não queremos perder nossos costumes.

O jeito haitiano de orar é diferente do brasileiro, mais comedido. Trajando suas melhores roupas, alguns em vestes sociais, sapatos lustrosos, eles são enérgicos nas três horas de culto. Cantam alto, erguem as mãos ao céu, tocam o peito, fecham os olhos, viram-se de um lado ao outro, batem palmas, o pé vai de encontro ao chão ritmadamente, produzindo sons. Alguns se ajoelham em frente às cadeiras plásticas. Outros baixam a cabeça, amparam o rosto com a palma de uma mão e rezam baixinho, inaudível.

Aquele som irreconhecível para quem passava do lado de fora, mas que lembrava percussão, é fruto da batucada feita pelos fiéis na capa dura das bíblias. Os haitianos chegam a ser performáticos. Sentem-se mais confortáveis em um templo, ainda que improvisado, criado para manter os padrões da sua cultura. Aceitam a presença de brasileiros, mas, ali, prevalecem seus costumes.

Há um momento de catarse quando cada um faz sua oração em voz alta. Eram 30 haitianos rezando energicamente ao mesmo tempo, batendo palmas e pés, uma gritaria de fé. E, no final, recolhem contribuições em moedas ou notas de baixo valor em uma cesta verde para ajudar no aluguel do imóvel.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em um lugar especial, ao lado de compatriotas, desabafam. Na igreja, foram diversas as reclamações sobre racismo, xenofobia e desinformação dos brasileiros. Eles ficam ofendidos quando ouvem comentários sobre a suposta "falta de comida" no Haiti, o que negam veementemente. Explicam que não passavam fome no seu país, mas que precisaram sair para buscar trabalho e uma vida melhor.

– Uma pessoa que nasce em Porto Alegre não pode ir a Santa Catarina? – questionou um haitiano que pediu a palavra em um intervalo do culto, em resposta aos comentários que escuta rotineiramente.

Além das cerimônias religiosas, os imigrantes participam de confraternizações promovidas por associações de haitianos e senegaleses. A organização em entidades é crescente. Por meio das agremiações, reúnem-se para ouvir a música do seu país, saborear um prato típico, reviver hábitos das suas nações. Eventos como esse já ocorreram em praticamente todas as cidades-destino da nova imigração. Em Lajeado, a banda evangélica Harmony Singers se apresentou em uma praça. Formado por caribenhos que, em maioria, trabalham em frigoríficos, o conjunto toca reggae e compas, o ritmo tradicional do Haiti.

Uma pequena fração dos imigrantes ocupa o tempo livre com a organização social e a política. Renel Simon, haitiano que trabalha na prefeitura de Lajeado no acolhimento dos estrangeiros, está colaborando com a criação e a união de uma série de entidades no Vale do Taquari. O movimento inclui municípios como Estrela, Arroio do Meio, Fazenda Vila Nova e Encantado. Em agosto, Renel esteve no Palácio do Planalto, em Brasília, para apresentar uma pauta com cinco reivindicações: trabalho, habitação, documentação, livre organização e educação.

– Nem todos vão chegar perto das autoridades, mas, com organização, podemos fazer isso e representar os imigrantes – disse.

Afora a religião e os esporádicos eventos culturais de associações, haitianos e senegaleses pouco fazem com o tempo livre. Não estão entrosados com a sociedade a ponto de procurar lazer em lugares públicos. Tampouco há dinheiro sobrando para gastar em divertimento. Costumam ficar em casa, em grupos, passando o tempo em conversas ou falando com a família pela internet.

– Percebemos que eles não têm atividades de lazer. É do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Alguns chegam a pedir serviço extra no final de semana – conta Ana Paula de Zorzi Caon, gerente de recursos humanos da Saccaro, em Caxias do Sul.

Recentemente, um grupo de senegaleses empregados na empresa pediu a ajuda de Ana Paula para ter uma atividade remunerada nos finais de semana. Encontraram trabalho aos sábados e domingos em uma terceirizada que faz limpeza em indústrias.

A lembrança de que estão em um país diferente, onde nem todos aprovam a sua presença, é mais um inibidor da circulação natural pelas cidades.

– Não tenho muito dinheiro para gastar. Se você vai numa festa, gasta muito. E aqui é perigoso, temos de nos cuidar, tem muito vagabundo na rua. Meu pai e minha mãe sempre pedem cuidado, lembram que aqui não é o meu país – diz o jovem senegalês Mamadou Wakhou, morador de Caxias do Sul e funcionário da Saccaro há quase dois anos.

Frankie (ao fundo, de frente) lidera culto evangélico com dezenas de haitianos que vivem na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre