Sonhos

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Os novos rostos da imigração, apresentados há um ano em reportagem de ZH, passam por desilusão. Precisam enfrentar a disputa por trabalho e o preconceito. Poucas são as histórias de sucesso. Muitos querem retornar a seus países

REPORTAGEM

Carlos Rollsing

DeSIGN

Leonardo Azevedo

EDIçÃO

Leandro Brixius

 

FOTOGRAFIA

Diego Vara e Mateus Bruxel

Haitianos que migraram ao Rio Grande do Sul em busca do eldorado, as famílias de Diufene, Oline e Sajele têm mais em comum do que a nacionalidade: estão decididos a ir embora do Brasil, seja para tentar sucesso em outro país ou retornar à terra natal. A crise corroeu o sonho brasileiro.

Caribenhos e africanos chegaram esperançosos e conseguiram viver bons dias até o aprofundamento da instabilidade econômica e política. Agora, são atormentados por desemprego, salário baixo, dólar alto, sub-habitação e marginalização.

O último levantamento divulgado pelo Ministério da Justiça, publicado em agosto passado, indica que, desde 2011, quando houve a explosão migratória, ingressaram no Brasil 45.607 haitianos. Parcela significativa já foi embora.

– Ao mesmo tempo em que recebemos imigrantes, muitos estão saindo do Brasil. Cerca de 10 mil haitianos deixaram o país. Não necessariamente para voltar ao Haiti, mas para procurar outras nações. Muitos têm ido ao Chile. Eles saem pelas dificuldades que encontram e, principalmente, pela frustração que experimentam na vinda ao Brasil – analisa o padre Lauro Bocchi, diretor do Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (Cibai Migrações), instituição vinculada à Paróquia da Pompeia, em Porto Alegre.

Diufene Dumerjuste mora em Bento Gonçalves, na Serra, há mais de três anos. Em fevereiro de 2014, trouxe do Haiti a mulher, Beatrice, e a filha Joice. Ela jamais conseguiu emprego. Em abril deste ano, tiveram a segunda filha: Mari Claire Angelica, uma brasileira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Trabalhando em uma metalúrgica, Diufene recebe R$ 1,2 mil ao mês. Seu salário será rebaixado até o final do ano porque a empresa fez um acordo de redução de jornada, decorrência da crise. Com o que ganha, paga R$ 600 de aluguel - a metade da sua remuneração total -, sem contar gastos com água, luz, alimentação e vestuário da família de quatro pessoas.

– Não levamos uma vida boa, bastante gente quer ir embora. Pedi para ser demitido até janeiro. Com o dinheiro da rescisão, voltarei ao Haiti. Mas não me prometeram nada – lamenta Diufene, que, em uma gélida noite de setembro em Bento Gonçalves,  recebia em sua casa dois compatriotas que chegaram há meses ao país, mas seguem desempregados.

Com a alta da moeda americana, o imigrante não consegue mais mandar dinheiro e ajudar a família que ficou para trás - são necessários muitos reais para comprar poucos dólares. E esse sempre foi um dos principais objetivos da aventura no Brasil.

Em Marau, Oline Desruisseaux e Sajele Rodrigue também querem fazer as malas. Oline trabalha em uma padaria, na área de serviços gerais. Sua irmã, Nadesh, chegou ao Brasil só em novembro de 2014. Foi contratada para trabalhar em um frigorífico, em Mato Castelhano, distante poucos quilômetros de Marau. A mulher de Sajele era empregada do mesmo abatedouro de suínos.

Em agosto, a indústria fechou as portas. Segundo o Sindicato da Alimentação de Tapejara, que atende a região, problemas de higiene e de segurança do trabalho estiveram entre as motivações. Os funcionários foram mandados para casa, sem receber nenhum valor rescisório. Por questões burocráticas, sequer conseguiram encaminhar o seguro-desemprego.

Dificuldades de comunicação deixam os haitianos perdidos, não sabem a quem recorrer para cobrar o frigorífico. Essa é outra face cruel da imigração: ingênuos e alheios às labirínticas leis brasileiras, são frequentemente ludibriados.

Oline, com seu salário de R$ 1 mil, sustenta a irmã e a filha Ana e paga aluguel, luz, água e alimentação.

– Passei dois anos aqui, pensei que tudo melhoraria, mas só piorou. Não posso ficar mais. Antes, precisava de R$ 230 para mandar US$ 100 ao Haiti. Hoje, preciso de R$ 440 para os mesmos US$ 100. Decidi voltar. Agora é juntar dinheiro para a passagem, que está custando R$ 5 mil – diz Oline.

Há pouco mais de um ano, quando ZH esteve em Marau para produzir a reportagem Os Novos Imigrantes, Oline tinha a pequena Ana nos braços, recém-nascida, e depositava esperança no sonho brasileiro. Tudo mudou radicalmente em apenas uma porção de meses.

Sajele está desempregado, faz bicos de pedreiro, mas poucas oportunidades surgem com a desaceleração da construção civil. Insistentemente, aponta para um Uno cor de vinho estacionado próximo do centro de Marau e expõe o seu plano.

– Aquele auto é meu. Se me derem R$ 4 mil, vendo. Primeiro, mando minha mulher de volta ao Haiti. Depois, dou um jeito de comprar a minha passagem.

Família de Diufene vive em Bento Gonçalves, mas está decidida a voltar ao Haiti

Presidente da Associaçåo de Haitianos de Bento Gonçalves, Ronald Dorval diz que 350 compatriotas estão desempregados na cidade

Levantamentos do Cibai Migrações e da seção gaúcha de Mobilidade Humana da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) indicam que 13,7 mil imigrantes caribenhos e africanos estão vivendo no Rio Grande do Sul, a maioria na Serra, no Planalto e nos vales do Taquari e do Rio Pardo. Cerca de 9 mil são haitianos, 4 mil são senegaleses e os demais se dividem entre naturais de República Dominicana, Gâmbia, Gana e Bangladesh, além de alguns outros.

– Avaliamos que, entre os imigrantes, o desemprego está em 20% – diz o padre João Cimadon, coordenador do setor de Mobilidade Humana da CNBB no Estado.

Ainda são estimativas, mas as organizações ligadas à Igreja são as que contabilizam números mais próximos da realidade. Continua sendo com as instituições religiosas o principal vínculo dos imigrantes, seja no momento da acolhida inicial ou no pedido de ajuda rotineiro. O poder público apenas começa um trabalho de envolvimento. Os efeitos da crise também aparecem em dados do Sine no mês de setembro.

– Hoje temos 2.246 imigrantes de todas as nacionalidades cadastrados nas agências do Sine do Estado, mas sabemos que a maioria é de haitianos e senegaleses. Significa dizer que eles estão na informalidade ou desempregados – explica Juarez Santinon, presidente da Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS).

Na rotina dos municípios, a virada no boom migratório é perceptível. Em Bento Gonçalves, viviam 1,7 mil haitianos até 2014. Neste ano, o número baixou para mil, conforme a prefeitura, amparada por dados da Polícia Federal. Para a associação de imigrantes local e a Paróquia Santo Antônio, 1,3 mil ainda estariam na cidade.

Com o desemprego, centenas partiram. Segurando listas nas mãos, Ronald Dorval, presidente da Associação de Haitianos de Bento Gonçalves, diz que 350 imigrantes do seu país estão desempregados por lá. Dados da prefeitura também preocupam: cerca de cem caribenhos - o que pode significar até 10% dos que estão no município - recebem Bolsa Família. É um indicativo de miséria, já que é preciso ter renda per capita mensal de até R$ 154 para obter o benefício.

– Acredito que a redução de imigrantes passa pela frustração deles, até de exercer um serviço pesado para o qual não foram capacitados. Muitos têm formação superior, a gente vê arquitetos e advogados pintando paredes ou na base da indústria. Hoje, existe um movimento de saída da cidade. Para essas pessoas, realmente acredito que o sonho não se tornou realidade – diz Guilherme Pasin (PP), prefeito de Bento Gonçalves.

Em Erechim, no norte do Estado, o número de imigrantes senegaleses foi reduzido de uma centena para 60 entre 2014 e 2015, conforme a Associação de Apoio aos Africanos em Erechim e Região (Asafer).

–Dos que ficaram, um grupo considerável está desempregado e foi para a informalidade – diz o professor e sociólogo Dirceu Benincá, que se uniu à direção da Asafer.

A adesão dos imigrantes às vendas ambulantes é crescente. Em Caxias do Sul, nos arredores da Praça Dante Alighieri, contígua à imponente catedral, estão amontoados pelas calçadas. Em seus tabuleiros ou caixas de papelão, expõem meias, toucas, luvas, relógios, cintos, carteiras, anéis reluzentes e uma enormidade de bijuterias.

Em uma tarde fria de setembro, somente em uma quadra da Avenida Júlio de Castilhos, em frente à praça, havia 13 ambulantes senegaleses e haitianos. Eles disputam a preferência dos clientes com os brasileiros que também dependem da atividade. Por vezes, homens se aproximam, cochicham algo aos ambulantes. Depois, desaparecem.

Enquanto isso, outros imigrantes passam o tempo, mexem no celular, conversam em rodas, fitam o horizonte vazio.

Nas pacatas e organizadas cidades de descendentes europeus, um movimento de marginalização dos estrangeiros se torna cada vez mais preponderante. Quem anda pelas simpáticas ruas de Encantado, de apenas 22 mil habitantes, no Vale do Taquari, não imagina que ali tenha uma periferia. Mas há. E os haitianos e dominicanos que trabalham no frigorífico Cosuel, em maioria, moram lá. É o bairro Navegantes, uma baixada alagadiça, com casebres de madeira, sujeira e entulho nas ruas. Também há tráfico de drogas e violência. Em Bento Gonçalves, os haitianos moram massivamente nos bairros Eucaliptos e Conceição, ambos periféricos. É o caso de Mistrale Lozin:

– Moramos aos montes em uma casa. Já morei com nove. E também estão ocorrendo muitos roubos. Um amigo nosso saiu de casa para trabalhar e, quando voltou, tinham arrombado e levado notebook, documentos e mais um dinheiro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Se os imigrantes foram alcançados pelo desemprego, crise e violência, ainda há faces positivas da presença deles no Brasil. Os empresários estão satisfeitos com o comprometimento dos forasteiros. Assumem serviços pesados que, até então, estavam vagos devido ao desinteresse do brasileiro que conquistou qualificação e ascensão financeira.

– Tivemos redução de pessoal em 2015, mas os chefes da fábrica sempre procuraram preservar o emprego dos 15 senegaleses que estão conosco. Gostam do trabalho deles, são habilidosos – diz Ana Paula de Zorzi Caon, gerente de recursos humanos da Saccaro Móveis, de Caxias do Sul.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A maioria ainda está trabalhando, muitos deles empenhando parte do seu dinheiro para auxiliar com alimento e moradia os compatriotas desempregados. Os problemas econômicos do Brasil não farão cessar o fluxo migratório.

– É um processo silencioso e lento. É provável que, com a crise, haja diminuição, mas não vai terminar. Por isso, não falo em onda migratória: é um movimento contínuo, com altos e baixos. Se o Brasil quer ser líder regional na política e na economia, terá de se abrir – diz Gabriela Mezzanotti, professora da Unisinos e coordenadora de uma cátedra da ONU que estuda os refugiados.

Bairro Navegantes, região mais humilde de Encantado, é habitado por dezenas de famílias de imigrantes

Grupo de 15 senegaleses é elogiado pelo trabalho na Saccaro Móveis, em Caxias do Sul

Porto Alegre como destino