Ofogo teve início por volta das 8h, quando Tainá se preparava para fritar um ovo para o café. Cortado por relâmpagos, o céu vertia uma chuva forte. Um estouro no banheiro e a fumaça escapando pelas frestas do forro obrigaram a adolescente a correr para o pátio.

– Mãe! Vem aqui! A casa, mãe! Vem cá – gritou Tainá em desespero para os pais.

Alheios devido ao ruído do trator, os agricultores João Batista Lemes e Elisete de Souza Barcelos lidavam na plantação de salsa na chácara do Morro da Borússia, em Osório, e levaram alguns instantes até perceber o infortúnio que consumia a moradia.

– Pai, a casa! Pai, vem aqui! A casa tá pegando fogo! – insistiu a menina.

Elisete correu e agarrou uma mangueira, mais gente acudiu quando as chamas engrossaram, mas a nuvem branca que logo engolfou tudo e o risco iminente de explosão de quatro botijões de gás impediram que a família salvasse qualquer coisa: móveis, o freezer recém-quitado, a geladeira, o fogão também novo, o colchão de molas ainda pendurado em três prestações no crediário. Nem os periquitos de estimação resistiram. Conformaram-se com as roupas que vestiam.

Do lar incinerado naquele 11 de novembro de 2013, entre todos os bens e papéis que compõem uma existência, um item seria para sempre irrecuperável: a única fotografia de Joracilia Rodrigues dos Santos e Leovino Lemes, pais de João Batista, trajados com esmero para a celebração de um casamento. A imagem da mãe estava embaçada na memória do filho – falecera ainda muito moça, de infarto, quando ele tinha nove anos, deixando apenas fiapos de lembranças. De Leovino, um tipo miúdo de cabelo ruivo, sem estudo formal mas hábil na matemática, àquela altura o lavrador não tinha vestígio.

Ele e o pai haviam se perdido mais de duas décadas antes, quando João Batista escapou das privações na cidade de Segredo, região Centro-Serra, para tentar algum dinheiro em Farroupilha. Nunca mais tiveram qualquer contato.

Um ano após o incêndio, combalido pela evolução de um tumor no estômago com metástase intestinal, João Batista recorreu ao Facebook para tentar reatar, 23 anos depois, os laços desfeitos. Pagava uns poucos reais por mês para ter acesso à internet no celular. Com alguns cliques, localizou um antigo conhecido.

– Lembra de mim? – apresentou-se o agricultor na área privada para bate-papo.

Começava a se delinear ali o mais importante dos desafios de João Batista na curta sobrevida que o câncer lhe reservava. A progressão da doença que o debilitava cada vez mais não aplacaria a ânsia pela realização de um último desejo.

– Sabe do pai? Nunca mais tive notícia – acrescentou.

O interlocutor prometeu resposta para breve:

– Eu vou procurar saber. Vou ver se ele está vivo.

TextoS

Larissa Roso

larissa.roso@zerohora.com.br

IMAGENS

Júlio Cordeiro

julio.cordeiro@zerohora.com.br

Publicado em 05 de julho de 2015

João Batista vivenciou extremos no período de pouco mais de dois anos em que enfrentou o câncer. Diagnosticado em 2012, o tumor se mostrava tão avançado que não havia mais possibilidade de intervenção cirúrgica. Ao prognóstico sombrio, de apenas 30 dias de vida, seguiu-se um tratamento experimental exitoso, que permitiu ao paciente se considerar curado. Então sobreveio o incêndio, aniquilando todas as posses, incluindo a foto, único resquício capaz de atestar que existira um pai deixado para trás.

A recidiva do tumor maligno, em outubro de 2014, coincidiu com o período em que o agricultor natural de Sobradinho decidiu desvendar o paradeiro de Leovino. Depois de duas sessões de quimioterapia, o quadro se deteriorou rapidamente. João Batista temeu a proximidade do fim e decidiu acelerar trâmites burocráticos, garantindo que as poucas posses restariam nas mãos da companheira por quem se apaixonou em 1995, colhendo morangos: um hectare de terra, um automóvel Siena, uma residência ainda em obras.

Com dores excruciantes e enjoo constante, ele não conseguiu se locomover até o cartório. Sob o torpor da morfina, assinou os papéis da união civil em casa, em 26 de dezembro. Em silêncio, esforçando-se para conter o mal-estar, torcia para que o juiz logo se despedisse. Vomitou assim que o visitante saiu.

Internado em Osório, João Batista foi levado ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre em 30 de dezembro. Depois de cinco dias na Emergência, aguardando uma vaga, foi transferido ao Núcleo de Cuidados Paliativos, unidade com apenas sete leitos vinculados ao Sistema Único de Saúde, no final do corredor do setor sul do nono andar.

A definição é de custoso entendimento para boa parte dos pacientes e familiares: um doente passa a receber somente medidas paliativas quando não há mais possibilidade de cura. A prioridade é aliviar sintomas como dor, falta de ar, náusea e prisão de ventre, em um ambiente com regramento mais tolerante do que nas demais dependências da instituição. Visitas são liberadas, inclusive para crianças, e o paciente pode estar em contato permanente com a família. Os quartos têm frigobar, ar-condicionado e um mural para fotos, desenhos e imagens de santos.

Evitam-se intervenções que representem pouco ou nenhum benefício. Ao contrário do que ocorre em uma unidade de terapia intensiva, onde todos os esforços convergem para a manutenção da vida, no Núcleo de Cuidados Paliativos se permite que a doença siga o seu curso – na admissão, fica claro para todos que o paciente não será reanimado em caso de uma parada cardiorrespiratória.

O importante é que ele esteja confortável e, com os sintomas controlados, possa ter alta, mesmo que em breve seja internado novamente.

Após entrar no hospital na antevéspera da virada do ano, João Batista não retornou mais à residência alugada que dividia com a mulher e a filha caçula em Osório. No quarto 967 do Núcleo de Cuidados Paliativos, sem nenhuma chance de se restabelecer, o agricultor de 40 anos passaria a nutrir a esperança de enxergar e tocar o pai uma última vez.

O casamento e a internação

Reportagem esteve ao lado do agricultor João Batista, 40 anos, vítima de câncer no estômago, na fase terminal. Na foto, a enfermeira Gislene atende o paciente no Núcleo de Cuidados Paliativos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Os sonhos e a negação

O agricultor é atendido no quarto 967. Reações do paciente a medicamentos como morfina são verificadas pela equipe de médicos e enfermeiros.

Durante um ano, com o aval do Serviço de Bioética do Clínicas, Zero Hora acompanhou o cotidiano do Núcleo de Cuidados Paliativos, tendo acesso livre a pacientes, familiares e equipe assistencial. O objetivo era identificar as vontades e os sonhos, por mais singelos que fossem, de quem não dispõe de muito tempo pela frente.

São imprevisíveis as reações de cada um a remédios e procedimentos, mas médicos costumam trabalhar com a estimativa de dias, semanas, meses ou anos até a morte, de acordo com a evolução da doença. Ainda que se evite estipular um prazo diante do paciente, o ideal é que todos sejam informados sobre a gravidade do cenário com que se defrontam. Na medicina paliativa, os profissionais de saúde devem descobrir o que o doente sabe e o que quer saber sobre a enfermidade. Ele tem o direito de recusar detalhes a respeito do próprio quadro, repassando essa responsabilidade para alguém próximo.

Entrevistas e conversas informais com a reportagem, à beira do leito, revelaram pessoas cientes da piora gradual, doentes terminais ambicionando uma cura mágica e tecendo planos para a retomada da rotina como a conheciam antes do diagnóstico, pacientes negando as más notícias dos médicos, garantindo que Deus era o verdadeiro responsável pela decisão entre viver e morrer, ou se alternando entre o conformismo com o desfecho e a crença na melhora. Em menor número, despontaram também os convictos do fim próximo, encorajados para o enfrentamento com o desconhecido.

– Só estou esperando a minha hora – disse uma senhora que já tomara todas as providências junto à funerária.

Nos relatos, o desejo mais comum era o de ficar bom e voltar para casa, dormir na própria cama, estar de novo entre os seus pertences. Outros anseios, revelados com força ou sutileza, incluíram afagar os gatos e os cachorros, botar uma cadeirinha no pátio para um chimarrão com a vizinha, rever irmãos, organizar uma festa de aniversário para a avó, dar banho e pentear o cabelo da filha, preparar uma massa à carbonara, comer bolo frito com café, assar um galeto, cuidar das folhagens, passear pelo corredor do hospital de cadeira de rodas. Faltou, a grande parte desses doentes, a sensação de urgência. Para muitos, não houve tempo. Apesar de todas as evidências em contrário no próprio corpo – caquético, inchado, dolorido, disfuncional –, alguns continuavam acreditando no prosseguimento da vida. Ou, sem saber que estavam na fase final, não pensaram no que gostariam de realizar, nas pendências a resolver: transferir bens, desvelar um segredo, dar um telefonema.

– Gosto de me enfeitar. Não tô moribunda, não tô morrendo – gracejou uma mulher ao desvencilhar o brinco da cânula de oxigênio que entrava pelo nariz, seis dias antes do óbito.

Outros sonhos perderam o caráter de prioridade, desbancados por necessidades mais prementes.

– O meu desejo é não sentir dor – explicou um homem de 40 anos.

O amigo e o irmão

João Batista dependia de uma sonda nasogástrica, responsável por trazer de volta do estômago o conteúdo ingerido que o intestino obstruído não era mais capaz de processar.

Após a conversa pela internet, o amigo encarregado de localizar o pai de João Batista cruzou um vale de 10 quilômetros para alcançar a propriedade onde o aposentado Leovino, 74 anos, morava com um dos filhos, o agricultor Vanderlei Alves dos Santos, 34 anos, a nora e dois netos, na localidade de Campo Sobradinho, interior do município de Passa Sete, cidade a cerca de 230 quilômetros de Porto Alegre.

– O que me traz aqui não é uma boa notícia – declarou o mensageiro.

Vanderlei pensou de imediato no irmão sumido, de quem guardava traços pouco nítidos em recordações da infância.

– O João está passando por uma situação crítica. Está lutando contra um câncer – completou o visitante.

Pela falta de comunicação na imensidão de anos, Leovino acreditava que João Batista havia muito estivesse morto. Pouco afeito a palavras, chorou.

A João Batista, a resposta foi dada cerca de 15 dias depois do apelo via Facebook: sim, o pai continuava vivo. Sem poder adivinhar a voracidade da doença no estágio derradeiro, mas de alguma forma intuindo que deveria se apressar, o filho dava início a um resgate de afetos com tempo escasso, contado, sem brecha para demoras. Precisava rever o pai.

– Vou para lá – decidiu.

Programada para dezembro último, a viagem surpresa teve de ser cancelada. João Batista não tinha condições de dirigir. Dependentes de uma rede de sinal precário, pai e filho tentaram falar por celular. A ligação caiu mais de uma vez. O filho ouviu retalhos da fala truncada do pai, entrecortada por ruídos. No primeiro diálogo em 23 anos, não conseguiu decifrar o que o idoso disse.

O personagem determinante para a realização do último desejo do ocupante do leito 967 foi um médico residente, que se surpreendeu ao saber dos tantos anos de distância. O relato aportou em uma das reuniões da equipe multiprofissional que discute os casos do Núcleo de Cuidados Paliativos. Comovido, o grupo decidiu agir.

– Por enquanto ele está lúcido, mas não sei até quando – alertou a assistente social do Clínicas Renata Ferrugem, por telefone, a uma funcionária da prefeitura de Passa Sete.

– Desde ontem, teve uma piora importante.

A funcionária saiu atrás de Leovino em Campo Sobradinho. Diante da família de agricultores, recomendou:

– Vocês têm que ir, mas é de hoje para amanhã.

Mesmo no auge da safra, com 60 mil pés de fumo em 14 hectares de terra demandando colheita e secagem, Vanderlei não hesitou. Pediria que um vizinho cuidasse da plantação. Resolveu que partiriam no dia seguinte.

O sol e o mar

Na manhã de 9 de janeiro, João Batista não tinha queixas. Respondeu com repetidas negativas ao questionário do médico: não sentia náuseas, nem dor, nem incômodo com a sonda inserida no nariz, responsável por trazer de volta do estômago o conteúdo ingerido que o intestino obstruído não era mais capaz de processar. Dormira bem.

– Nota 10 – garantiu o paciente.

A estagiária em Psicologia Marcela Vaz entrou no quarto em seguida.

– Como é que estamos no dia de hoje?

– Faceiro. Vou ver o meu velho – contou

ele, sorrindo, na expectativa também pela chegada da mulher e das filhas.

Eram 9h55min, e o ônibus que partira de Passa Sete às 5h40min já deveria ter estacionado na rodoviária de Porto Alegre. Inquieto com a aparência, João Batista pediu ajuda para cobrir o corpo emagrecido com uma camisola listrada do hospital.

– E esse dia lindo aí fora... – comentou Marcela.

Inspirador, o céu limpo transportou João Batista em pensamento para as praias do Litoral Norte. O agricultor completou as reticências da estudante com o que o sol e o calor desenhavam na sua mente:

– Dar uma mergulhada no mar. Esse ano eu não vou conseguir, mas ano que vem, se Deus quiser, eu vou.

Os minutos se sucediam sem sinal dos visitantes. João Batista dormitava ao efeito dos medicamentos, despertando a cada movimento do trinco da porta.

– Suspense! – brincou o cunhado Pedro de Souza Barcelos ao entrar. – Tem um alemão feio ali fora. Será que é ele? Fiquei com vergonha de perguntar.

No corredor, a enfermeira Gislene Pontalti atendeu a um telefonema da portaria do hospital. A recepcionista avisava que a mulher e as filhas de João Batista estavam no balcão, mas uma das meninas esquecera o documento de identidade, o que impedia a liberação para subir.

– A gente vai ter que abrir uma exceção. O pai dela está morrendo – ponderou a enfermeira.

Angustiado com o atraso dos visitantes de Passa Sete, o paciente sai do quarto e caminha até a Sala dos Familiares amparado pelo cunhado Pedro.

 

 

Elisete e as filhas, Tainá (à esquerda) e Elaine, chegam de Osório para acompanhar o reencontro de João Batista com o pai.

Elisete, 44 anos, Tainá, 16, e Elaine, 13, haviam sido convidadas na noite da véspera para testemunhar o reencontro tão ansiado – a agricultora finalmente conheceria o sogro, e as adolescentes seriam apresentadas ao avô. Depois de mais de um mês sem ver o pai, ausente pelas internações, Elaine hesitou na porta do quarto.

– Está com medo? – perguntou Gislene.

– Sim.

– Quer que eu entre junto?

Elaine aceitou. Tainá tomou a frente. As duas já estavam chorando quando pararam à cabeceira da cama para cumprimentar o pai. Na tentativa de diluir a tristeza das gurias, o tio Pedro atalhou para o assunto principal daquela sexta-feira:

– Dois vôs agora, hein?

Uma funcionária entrou trazendo o almoço, e João Batista mal tocou os potes com dois dedos de caldo de feijão e sopa de moranga. As meninas comeram pastéis comprados na rodoviária. Impressionada com a magreza do pai, Elaine se sentiu mal com o lanche e se apressou para vomitar no banheiro. A inquietação do grupo no aguardo da comitiva interiorana que nunca aparecia contaminou o andar. Gislene foi para o computador, atrás de um mapa no Google para descobrir a distância que seria percorrida na viagem, buscando justificativa para a demora. Renata, a assistente social, telefonou para a colega do Interior que intermediou as tratativas com os parentes:

– Estou te ligando para saber se eles conseguiram pegar o ônibus. Ainda não chegaram.

No quarto, Pedro listava hipóteses para o mistério: algum imprevisto teria causado um atraso no meio do trajeto? Um problema mecânico interrompera a viagem? Talvez uma parada mais longa à beira da estrada para uma refeição?

– Será que erraram o hospital? Agora a dimensão dos pensamentos vai longe – falou Pedro.

– Ou desistiram hoje de manhã. Ficaram com medo – arriscou João Batista, com o semblante que nada lembrava a excitação de poucas horas antes.

Às 16h30min, as filhas e o cunhado Pedro desistiram de esperar. Não podiam perder uma carona para retornar a Osório. Despediram-se.

– A gente te ama – disse Tainá ao pai.

Sobraram João Batista e a mulher no quarto, em silêncio, digerindo a frustração. Antes que se completassem cinco minutos da partida das garotas com o tio, alguém abriu a porta com afobação:

– Eles estão aí!

Lúcia, Vanessa, Mônica, Catia e Reni falam sobre o atendimento aos doentes que necessitam de cuidados paliativos.

A médica e o medo

Hoje chefe do Serviço de Dor e Medicina Paliativa do Clínicas (ao qual está vinculado o Núcleo de Cuidados Paliativos), Lúcia Miranda Monteiro dos Santos, aos 15 anos, perdeu a mãe, vítima de um câncer de mama, após cinco anos de uma convalescença em lenta progressão. Prematura, a morte trouxe a primeira lição para a carreira médica que se iniciaria pouco depois.

– Isso me acendeu a luz. A faculdade ensina o médico a ser o salvador da pátria, mas a gente já vai vendo que não é bem assim. Fui ser anestesista, pragmática e organizada. Um pragmático sabe que não vai salvar todo mundo, e sabe inclusive que não vão salvá-lo em alguma ocasião da vida – conta Lúcia.

O treinamento intenso e o rigor da graduação não impedem que muitos médicos, novatos e experientes, enfrentem grande dificuldade na hora de dar más notícias. Na área de cuidados paliativos, o profissional tem de encarar e assumir suas limitações de forma constante. Existirá sempre o esforço em nome do conforto, do controle da dor e de outros terríveis sintomas, mas o paciente não será livrado da morte.

– Os médicos fogem muito do fracasso. Não é fácil. São poucos os que conseguem falar claramente para o paciente qual é o limite – comenta a anestesiologista.

Lidar com a agonia e a morte todos os dias – já são três décadas de experiência em cuidados paliativos – leva Lúcia a refletir também sobre a própria terminalidade.

– Medo de morrer eu nunca tive, desde muito nova. No momento em que você trabalha isso na sua cabeça e sabe que é inexorável, que vai acontecer, mas que isso não atrapalha os seus planos, os seus sonhos, você vai aproveitar a vida o máximo que puder. Se chegar o momento em que não dá mais, então vamos para outra etapa. Imagino que essa seja a melhor maneira de encarar: não dói, você não é infeliz, a morte não o persegue, mas ela existe. Vai acontecer? Vai, e lá vamos nós nos preparar para isso. É triste a partida, mas vamos ter que ir.

O pai e o filho

Num passo curto, trêmulo, Leovino teve de ser amparado pela psicóloga Mônica Echeverria de Oliveira, que o conduziu pelo braço, cruzando a porta do quarto. Chorando, o aposentado cobriu os olhos com a mão esquerda, deixando-se guiar. Vanderlei entrou primeiro. Quando divisou o irmão, virou para trás e comentou com a mulher:

– Tá igual ao meu sonho.

Ao lado do leito, Leovino estendeu a mão para o filho.

– Ô meu pai – saudou João Batista.

O idoso não conseguiu articular nenhuma frase. Vanderlei se aproximou e colocou a mão sobre a cabeça do irmão. Fechou os olhos e mentalizou uma oração. Formou-se uma plateia ao redor da cama – funcionários do setor que testemunharam a aflição da espera se emocionaram com a cena.

– Puxei os olhos do pai, ó – destacou João Batista, procurando a concordância da repórter.

Era o filho adoentado o único a falar:

– Eu tinha uma foto do senhor com a falecida mãe.

Os viajantes se acomodaram à direita do enfermo. Elisete e Pedro, do outro lado. Todos se perscrutavam buscando semelhanças, diferenças, a história dos anos extraviados. Leovino e Vanderlei tentavam relacionar a figura esquálida exaurida sobre o colchão com o rapaz sadio do início dos anos 1990. Ambos tinham dificuldade em desviar a visão da sonda que saía do nariz de João Batista e desaguava o conteúdo do estômago em uma garrafa pet que se enchia com rapidez. Devido à sensação incessante de boca seca, João ingeria até três litros de água em uma hora. Conversava segurando um copo, no intervalo dos goles no canudo:

– Eu tô aí, lutando contra um câncer.

Vanderlei justificou o atraso de mais de sete horas. Ele, a mulher, Venize, o filho menor, Ricardo, e Leovino haviam despertado na escuridão. Passaram uma água no rosto e saíram de casa às 5h10min, sem café, para percorrer de carro os 15 quilômetros de estrada de chão até a parada de ônibus. Com bilhetes fornecidos pela administração municipal, tinham sido orientados que o coletivo passaria naquele ponto às 5h40min. Imaginavam estar 10 minutos adiantados em relação ao horário previsto. Aguardaram. Quando o atraso já parecia demasiado, pediram informação em um posto de gasolina.

– Olha, o ônibus já foi – avisou o frentista.

Tiveram de voltar ao automóvel para ir até a vizinha Sobradinho, onde trocaram as passagens para embarcar às 11h. Chegaram às 15h em Porto Alegre, varados de fome. Comeram cachorros-quentes antes de pegar um táxi até o Clínicas. Leovino pisava na Capital pela primeira vez. Achou bonito o pouco que viu pela janela do carro. Vanderlei, que conhecia poucas quadras além dos limites da rodoviária, classificou a cidade como “apavorante”.

– A gente lamenta, né? Um tempo tão grande e a gente não conseguiu se ver com saúde – afirmou Vanderlei ao concluir o relato.

Convocadas de volta às pressas, antes que rumassem ao Litoral Norte, as filhas de João Batista, Tainá e Elaine, entraram no quarto e foram apresentadas aos recém-chegados. Vanderlei começou a descrever a família que o pai formara, um total de três filhos adotados, nenhum de sangue.

– O João também foi adotado – assinalou ele.

Tão almejado, o encontro planejado para restabelecer vínculos e afeições era de súbito golpeado por um imprevisto. Sob o peso da revelação, a plateia emudeceu. Um embaraço foi se encorpando no recinto. Estavam evidentes o desnorteio, a angústia por algo que cobrisse aquele abismo, anulando o assombro que acabara de ser proferido. Elisete cortou o silêncio:

– Disso eu não sabia.

Vanderlei levantou da cadeira e apelou a uma breve encenação para dar ênfase ao discurso. Deu um passo para a frente e flexionou os joelhos. Estendeu os braços, simulando aparar algo prestes a cair no chão:

– O pai pegou ele praticamente quando ele saiu da barriga da mãe.

João Batista não se manifestou. Sem explicações adicionais, num consenso mudo entre os presentes, a notícia indigesta foi relegada a um canto. Não havia minuto a ser desperdiçado, os visitantes deveriam retornar no ônibus das 20h. Vanderlei estava ouriçado com a precisão do sonho da noite anterior:

– Vi ele do jeitinho que ele está. Até esse caroço na testa ele tinha. Eu orava e expulsava o inimigo. Foi um sonho de vitória.

Sabiam pouquíssimo, quase nada, uns dos outros. Falaram sobre o cultivo da terra, os lugares onde moravam. Esclareceram trechos do passado, preenchendo lacunas. Concentraram-se em figuras antigas, tentando encontrar personagens comuns a todas as biografias.

– Conhece o Vergílio, né? O Nilson, o Neco... – enumerou Vanderlei.

– E o Valdemar? – perguntou João Batista.

– Aquele rola mais que pedra em lomba.

– Conheceu o Hélio? – quis saber Leovino, em uma rara intervenção.

Destacando que pouco pôde ser feito, João Batista deu um breve histórico do diagnóstico e do tratamento. Vanderlei lembrou que estava com a vida arrasada até pouco tempo. Ressuscitou para o bom caminho graças à igreja – costuma percorrer mais de 50 quilômetros, toda semana, para assistir ao culto. Salientou as maravilhas gestadas pela fé e a certeza de que o poder divino reergueria o convalescente.

– Os médicos foram constituídos por Deus, mas Ele impõe um limite. O João, aos nossos olhos humanos, é um caso perdido – explicou, apontando para o acamado. –  Qualquer um que tem dois olhos vê. Vou orar por ele, interceder por ele.

Passava das 19h quando Vanderlei foi alertado sobre o perigo de possíveis engarrafamentos. Não deveria se arriscar a perder a segunda condução no dia. Leovino se ergueu com dificuldade da cadeira.

– Até logo, meu filho.

– Tchau, pai. Até breve. Continue forte assim – disse o paciente.

O aposentado começou a chorar de novo.

– Tu vai melhorar – balbuciou.

Despreocupado com o relógio, Vanderlei se aproximou e botou a mão na cabeça do doente mais uma vez:

– Meu mano, aceita minha oração? Aceita Jesus no seu coração? Promete, depois que sair desse leito, buscar a Deus com todo o seu coração?

Fitando a parede, João Batista não respondeu. O devoto prosseguiu:

– Neste momento, eu uso a minha boca para amaldiçoar esse câncer. Em nome do pai, do filho e do espírito santo. Amém.

Pela primeira vez na Capital, Leovino prepara-se para entrar no núcleo, depois de mais de sete horas de atraso.Pai e filho se tocam pela primeira vez depois de 23 anos sem qualquer contato.

Na hora da despedida, o devoto Vanderlei amaldiçoa o câncer e pede que o irmão aceite Jesus no coração.

O champanha e o caviar

Desgostoso com a aposentadoria compulsória, depois de uma carreira dedicada à pneumologia pediátrica no mesmo hospital e em outros países, Fernando Antônio de Abreu e Silva se apresentou como voluntário no Núcleo de Cuidados Paliativos no início deste ano. Não pretendia se debruçar sobre complexos esquemas de analgesia, sedação e atenuação de intercorrências, mas sim responder a aflições de pacientes e familiares, além de dar conta do próprio desassossego. Abreu não teve o menor interesse em lidar com a morte durante a formação acadêmica. Ao longo da trajetória profissional, aproximou-se cada vez mais do tema, abastecendo-se também com leituras, e agora quer entender como as pessoas se sentem nos estertores da existência.

– O que posso lhe oferecer de bom hoje? – questiona o médico na ronda matinal. – No que você está pensando agora?

O médico carrega há anos a lembrança de um de seus pacientes. Ao desistir do tratamento, o jovem manifestou a intenção de fazer tudo de que havia sido privado até então. Acalentava a vontade de provar champanha e caviar. No hospital, Abreu anunciou que burlaria a proibição para a entrada de bebida alcoólica. Trouxe uma garrafa gelada de casa, com duas taças, e serviu com um caviar legítimo, encomendado em São Paulo – colegas contribuíram com recursos para a compra da iguaria. Feito o brinde, o garoto estalou a língua após o primeiro gole:

– É bom como a vida.

Emocionado com a recordação, Abreu afirma que a realização dos desejos dá sentido aos últimos instantes, permitindo que as pessoas se sintam ainda vivas, alentando a sensação de força e domínio sobre o destino. Sempre haverá algo por fazer, e essa sensação de incompletude tende a se intensificar quando a morte se acerca. Abreu testemunhou o reencontro recente de um paciente terminal com a mulher que considerava seu grande amor – ele confessou que gostaria de ficar bom para se casar com ela. Em meio às reminiscências, num exercício de empatia, o médico contempla o passado, pesando conquistas e fracassos.

– Não estou pronto para morrer agora, e tenho 70 anos. A maioria dos pacientes que estão morrendo aqui é mais nova do que eu. Tenho uma porção de coisas para fazer ainda, as memórias da família para botar no papel – exemplifica o pneumologista. – A aceitação final e permanente, acho muito difícil haver. Alguns parecem se encaminhar com uma convicção enorme, corajosamente, “se não tem solução, solucionado está”. Mas o que tenho visto nos olhos das pessoas, mesmo no final, é uma certa esperança. Ou um olhar que quer dizer: “Por que comigo? Por que agora? Por quê?” Abrir mão da vida, da identidade, da capacidade de dizer “eu” é muito sofrido, muito doloroso.

O espírito e a porta

Na véspera da morte, no mesmo quarto do Hospital de Clínicas, João Batista contou a Elisete que enxergava, atrás dela, um espírito diante de uma porta muito grande.

– O espírito é ruim? – indagou a mulher.

O marido não soube responder.

– Tem que ter muita coragem para atravessar essa porta – aconselhou ela. – Vai sem medo.

João Batista não falou mais.

Chamado ao nono andar na manhã seguinte, o médico residente examinou o corpo já sem sinais vitais: as artérias carótida e femoral não pulsavam. Uma semana após reencontrar o pai, o paciente não reagiu ao teste do estímulo doloroso, em que se aplica uma forte pressão sobre o peito com a mão cerrada. Não havia movimentos respiratórios. “Atesto óbito às 10h de 16/1/15. Preencho documentos. Informo familiares”, reportou o médico no prontuário.

– Morreu como um passarinho – descreveu a enfermeira Gislene. – Tranquilo, sem dor, sem falta de ar, dormindo.

Funcionários do Núcleo de Cuidados Paliativos fizeram uma oração com Elisete. Velado naquela tarde, o corpo do agricultor foi sepultado na manhã de sábado, às 9h30min, no Cemitério da Borússia, em Osório. Avisados, o pai e o irmão, alegando a impossibilidade de chegar a tempo, não compareceram.

Todas as imagens utilizadas nesta reportagem foram autorizadas pelos pacientes, familiares e equipe assistencial.

Agradecimentos:

Serviço de Bioética e Núcleo de Cuidados Paliativos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre

TextoS

Larissa Roso

larissa.roso@zerohora.com.br

EDIçÃO

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