Quase metade das denúncias de abuso sexual envolve funcionários

"Eu sei o que teu avô fez contigo, sei que tu gosta."

Vítima de abuso sexual cometido pelo companheiro da avó aos quatro anos, José* teria sido vítima do mesmo crime dentro de um abrigo de Porto Alegre. Aos 15 anos, o adolescente disse ter ouvido a frase acima com frequência de um educador, que costumava apalpá-lo, o convidar para fazer sexo e lhe mostrar vídeos pornográficos.

Quase metade das denúncias de abuso sexual que estão em investigação pelo MP envolve funcionários dos abrigos, entre elas a que José é vítima. São oito denúncias, sendo três delas com empregados suspeitos. Encaminhado à internação psiquiátrica por apresentar depressão, automutilação e ingestão de substâncias não alimentares, José relatou o abuso no hospital:

— Ficava dizendo piadinha, eu dizia para parar, ele continuava, dizendo: “E aí, na bundinha não vai nada?” — contou o adolescente durante a internação.

 

Houve situações, segundo José, em que o educador abaixava as calças e pedia que ele beijasse seu pênis. O funcionário também teria levado ele e outro acolhido para casa:

— Colocou um filme de zumbi para a gente ver. Daí me chamou, meu amigo ficou na sala assistindo, e eu fui. Ele tava pelado e disse para secar as costas dele. Perguntou se eu “queria brincar”.

O educador ainda teria abusado do adolescente no hospital, antes de ele ter revelado o fato à equipe médica:

— Ele passou a mão na minha bunda e disse que ia me dar o que eu queria, que sabia o que meu vô fez comigo, que era de família e sabia que eu gostava.

O profissional foi afastado do abrigo e indiciado pela Polícia Civil por estupro de vulnerável e lesão corporal, cujas penas podem chegar a 16 anos de prisão.

Além da denúncia de José, o MP tem outros dois processos que investigam funcionários suspeitos de abuso sexual. Em um dos casos, uma menina de três anos relatou à mãe adotiva que, no abrigo, uma “tia” teria a machucado durante o banho, “enfiando o dedo na frente e atrás”.

A mantenedora do abrigo transferiu a servidora de lotação e instaurou uma sindicância para investigá-la. No outro caso, o MP apura uma denúncia de que uma técnica passaria a mão “nas partes íntimas” de quatro acolhidas adolescentes e ofereceria “presentes em troca”.

Coordenador do Projeto Proteger da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), que atende vítimas de abuso sexual, o professor Renato Zamora Flores explica que, após serem estupradas, as vítimas ficam mais expostas para novos abusos.

Responsáveis pelos abrigos podem responder por omissão

Uma investigação iniciada em novembro de 2014 foi levada à Justiça pelo MP, por envolver suspeita de omissão da diretora da casa. A vítima, de 16 anos, disse aos promotores que começou a ser assediada por um educador casado, que costumava lhe dar tapas no bumbum “em tom de brincadeira” e dizer que ela era “mais gostosa” que sua mulher. Além disso, a adolescente disse ter tido relação sexual com o educador.

A narrativa motivou o MP a mover uma ação judicial pedindo o afastamento do profissional e da diretora da casa, determinado pela Justiça em abril. O educador é investigado pela Polícia Civil e pode responder por estupro. Além disso, abusador, diretores das casas e mantenedoras estão sujeitos a pagar indenização por danos morais às vítimas. Em casos de omissão, diretores podem ser demitidos e responder criminalmente.

Nos outros cinco processos que apuram suposto abuso sexual, o crime teria sido cometido por outro acolhido. Em um dos casos, um adolescente de 15 anos, explorado sexualmente na rua, é suspeito de abusar de seis abrigados. Ele já respondeu a dois processos por estupro, e foi condenado em um deles.

Se confirmadas, as denúncias demonstram a ineficiência do poder público na vigilância das crianças e adolescentes que abriga. Conforme as orientações técnicas do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), é preciso que os abrigos tenham "uma equipe noturna acordada e atenta à movimentação". O problema é que, em alguns processos, há relatos de que funcionários noturnos estariam dormindo no momento em que os abusos teriam acontecido. Por isso, segundo o MP, diretores e mantenedoras das casas estão sujeitos a demissão e indenização às vítimas.

 

* Os nomes das crianças e adolescentes foram trocados na reportagem, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nomes de mantenedores, abrigos e funcionários foram omitidos a pedido do MP, para não atrapalhar as investigações.

O que diz a Fundação de Proteção Especial (FPE) do governo do Estado, por meio da Lei de Acesso à Informação:

"(Quando há denúncias, a FPE) instaura o devido processo administrativo, tomando como medida imediata o afastamento do servidor envolvido.”

O que diz Marcelo Soares, presidente da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) da prefeitura de Porto Alegre:

"Em qualquer tipo de denúncia, solicitamos o afastamento do funcionário para que possamos verificar o que aconteceu e apuramos o fato em um sindicância, mesmo que envolva funcionários das entidades de assistência social. Muitos foram demitidos.”

MAIS

NESTA REPORTAGEM