A assustadora rotina de agressões nos abrigos

Agressões são relatadas por acolhidos em 10 procedimentos que investigam maus-tratos na Promotoria da Infância. Uma criança disse que um educador “arrastou sua cara no chão” e duas adolescentes afirmaram terem sido imobilizadas “com o pé no pescoço”. Essas garotas ainda narraram ter tido as veias pressionadas até perderem as forças — técnica que, segundo a investigação, é usada em artes marciais para provocar desmaios nos adversários.

João*, 11 anos, disse que foi jogado contra a parede por um educador e que o irmão, de apenas 4 anos, levou um "tapa na boca" de uma funcionária, "saindo sangue".

— A educadora (...) também maltrata os acolhidos, sentando eles no chão, abrindo as suas pernas, esticando os braços para cima e colocando o joelho em suas costas — relatou João.

Em outros depoimentos, abrigados dizem ter presenciado uma menina de nove anos sendo “contida” pelo pescoço e um menino deixado “no chão com as mãos para trás”. Há relatos também de um educador que castigaria uma criança com deficiência e um menino de quatro anos, os deixando em cima de um armário, e de uma funcionária que privaria acolhidos do almoço.

— É comum, no turno da noite, as agentes educadoras (...) e (...) deixarem os acolhidos menores em pé na cozinha por 5 horas contínuas, sendo que eles estudam de manhã — contou Joana*, 15 anos, ao MP, referindo-se a crianças de 10 e 11 anos.

Conforme a professora de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Samantha Dubugras Sá, a revitimização dessas crianças dentro dos abrigos pode comprometer ainda mais a estruturação de sua personalidade, já abalada pela violência praticada pela família.

Nos processos que apuram maus-tratos, 35 suspeitos são citados, sendo 30 educadores, três coordenadores, um gerente e um diretor dos abrigos. Pelo menos 11 deles já sofreram algum tipo de punição, sendo quatro demitidos ou exonerados, um afastado, um suspenso e cinco advertidos por escrito. Um dos demitidos ainda teve de responder a Termo Circunstanciado por lesão corporal na Polícia Civil. Além disso, outros sete educadores estão em observação e uma entidade de assistência social foi desconveniada. Os suspeitos de maus-tratos representam 3,8% do total de funcionários dos abrigos, e um educador ouvido pela reportagem alerta que há denúncias inverídicas.

— Tivemos um caso em que a criança relatou que foi jogada na parede, mas o educador provou que, na verdade, a segurou junto à parede, para que não agredisse outro acolhido. Se seguramos, passamos por agressores, mas se não seguramos, passamos por negligentes, por não evitar que um batesse no outro — afirma o profissional, que preferiu não ter o nome divulgado.

Os suspeitos podem responder pelo crime de maus-tratos, cuja pena é de até quatro anos de prisão quando há lesão corporal grave, fora agravantes. Agressores, diretores das casas e mantenedoras também estão sujeitos a pagar indenização às vítimas.

Educador teve de responder na Justiça por maus-tratos

Um dos processos que investigava maus-tratos, concluída este ano, virou ação criminal. A conduta de um educador, que teria usado a força para alimentar uma menina com dificuldade de ingestão de alimentos, foi flagrada em vídeo por uma colega, que o denunciou.

A conclusão da investigação foi de que a atitude do funcionário foi “agressiva e violenta” e que, após o fato, a “acolhida regrediu à etapa de brincar com a comida, negando-se à ingestão de alimentos”. O empregado teve de responder a Termo Circunstanciado por maus-tratos e pagar multa de R$ 3 mil. Ele também foi advertido por escrito e encaminhado a programa de acompanhamento.

Acolhidos devem ser "tratados como bichos", teria dito educador

Processos que apuram maus-tratos também envolvem casos de assédio moral. Acolhidos relatam que são "tratados de maneira desrespeitosa e grosseira, mediante gritos e ameaças". Algumas vezes, também são alvo de deboche e humilhação. Um educador teria dito aos acolhidos que todos "deveriam ser tratados como bichos", outro chamado meninos de "boiolas" e outros cometido bullying com uma adolescente com sobrepeso, dizendo a ela que ela irá "explodir".

— Guri, só fala comigo quando parar de babar — teria dito um funcionário a um acolhido com deficiência.

A professora de Psicologia da PUC-RS Samantha Dubugras Sá afirma que a violência psicológica afeta gravemente a autoestima, e as vítimas podem reproduzir esse comportamento com os mais novos.

— Esse tipo de assédio funciona como se fosse um bloqueador de afeto. A pessoa sofre psicologicamente e vai endurecendo até que o resquício de afeto que poderia haver acaba sumindo — explica.z

A punição para os responsáveis pelos danos morais, caso confirmados, vai do afastamento à responsabilização criminal. Nesses casos, o MP informa que os educadores investigados estão sujeitos a responderem pelo crime de "submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento", previsto no ECA, cuja pena é de até dois anos de prisão. Assediadores, diretores das casas e mantenedoras também estão sujeitos a pagarem indenização às vítimas.

 

* Os nomes das crianças e adolescentes foram trocados na reportagem, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nomes de mantenedores, abrigos e funcionários foram omitidos a pedido do MP, para não atrapalhar as investigações.

O que diz Marcelo Soares, presidente da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) da prefeitura de Porto Alegre:

 "A Fasc cumpre um cronograma de capacitação dos educadores, no que refere-se ao manejo, orientação e condução técnico-pedagógica. O mesmo procedimento é desenvolvido e reforçado pelas entidades. Tivemos a aprovação de uma lei na Câmara de Vereadores para a realização de um concurso para 655 novos cargos, desses 355 para educadores.”

O que diz a Fundação de Proteção Especial (FPE) do governo do Estado, por meio da Lei de Acesso à Informação:

"(A orientação para conter sem agressividade) é tratada nas capacitações e nas questões pontuais pela Equipe Técnica do NAR (Núcleo de Abrigos Residenciais). O ingresso dos agentes educadores é por concurso público, através de prova escrita, prova de títulos e exame psicotécnico. Existe um programa de Capacitação Continuada-FIC, com duração de seis meses.”

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