
Há muitas abordagens sob as quais o polêmico fechamento da exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira tem sido debatido, do político ao sociocultural. Um, no entanto, ganha destaque nas acusações apresentadas nos vídeos que viralizaram e motivaram o cancelamento prematuro da mostra, que deveria ficar em cartaz no Santander Cultural até 8 de outubro: o jurídico.
As alegações dos grupos organizados que promoveram o boicote e os ataques nas redes sociais são de que a exposição promovia apologia à pedofilia e à zoofilia, além da profanação de símbolos de culto. Tais crimes são tipificados nos artigos 208 ("Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso"), 286 ("Incitar, publicamente, a prática de crime") e 287 do Código Penal ("Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime"), além dos artigos referentes aos crimes de abuso sexual de menor de idade. Juristas ouvidos por Zero Hora avaliam que enquadrar a exposição em qualquer desses artigos seria deturpar o que dizem tanto as leis, quanto as obras.
Leia mais:
Quais são e o que representam as obras que causaram o fechamento da exposição
"Não fui consultado sobre o cancelamento", diz curador
"Não entendo que isso seja arte", diz coordenadora do MBL/RS
– Do aspecto legal, arte não se discute. Aceita-se ou não, causa impacto ou não. Museu que discute sexualidade existe em todo lugar do mundo, com representações de todos os tipos, inclusive de pessoas transando com animais – afirma Maria Berenice Dias, advogada em direito homoafetivo e presidente da comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB do Brasil, que prossegue: – Não vi nenhuma representação que pudesse ser reconhecida como apologia a pedofilia ou zoofilia. Absolutamente nada. E o fato de usar símbolos religiosos com motivação de arte é algo que sempre existiu, sem que isso ocasionasse proibição de que pessoas assistam.
As alegações de apologia, explica o comunicador da RBS e também advogado Cláudio Brito, dificilmente podem ser aplicadas a obras artísticas, uma forma de expressão subjetiva por natureza. Para ele, no entanto, é possível interpretar que a exposição atentou ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao não reservar um espaço para obras que podem ser ofensivas a menores de idade:
– A legislação que pode ter sido desrespeitada é o ECA, porque a exposição não fazia distinção de faixa etária. Mas as alegações de apologia são infundadas. Não posso interpretar essa exposição como uma denúncia ou uma reflexão, em vez de apologia? Não há como caracterizar apologia num caso como este.
Leia mais:
Veja manifestações sobre o encerramento da exposição
FOTOS: veja imagens da exposição "Queermuseu", que foi cancelada após críticas nas redes
O juiz de Direito Roberto Lorea avalia as alegações de que a exposição seria desrespeitosa, de forma ilegal, com símbolos religiosos como uma distorção da lei que assegura a liberdade religiosa. Ele explica que o texto do artigo caracteriza como ilegais atitudes de ataque deliberado e preconceituoso contra grupos ou símbolos religiosos – e não obras de arte que retratam tais símbolos:
– O básico, que as pessoas precisam entender, é que a convicção religiosa delas é delas, não de todo mundo. Uma coisa é atacar em outro sentido, outra é cercear a liberdade de expressão artística. Todo mundo tem o direito de não gostar, mas extrair isso de uma obra de arte é complicado.
Ainda sob o ponto de vista legal, o Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul divulgou na segunda-feira uma nota em que lembra artigos da Constituição do Estado: 'A Constituição do Rio Grande do Sul, em seu artigo 220 prevê que: 'O Estado estimulará a cultura em suas múltiplas manifestações, garantindo o pleno e efetivo exercício dos respectivos direitos bem como o acesso a suas fontes em nível nacional e regional, apoiando e incentivando a produção, a valorização e a difusão das manifestações culturais. Parágrafo único: É dever do Estado proteger e estimular as manifestações culturais dos diferentes grupos étnicos formadores da sociedade rio-grandense'. A mesma Constituição prevê, em seu artigo 221, parágrafo V, inciso a: 'as formas de expressão constituem direitos culturais garantidos pelo Estado'."