
Vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), pasta que é epicentro de turbulências desde os primeiros dias de Michel Temer na presidência da República, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) é uma autarquia responsável pelas diretrizes do setor audiovisual, do fomento à regulação. Nos últimos seis meses, o MinC já esteve ameaçado de extinção e agora está sob a gestão de seu segundo ministro, Roberto Freire. A Ancine, por seu modelo autônomo de gestão, tem como diretor-presidente desde 2006 o brasiliense Manoel Rangel.
Rangel esteve em Porto Alegre na segunda-feira para apresentar um balanço das ações do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) – que tem a Ancine como um de seus gerentes e o BRDE como agente financeiro – e lançar o Prodecine 5, edital que disponibiliza R$ 30 milhões para filmes ficcionais, animações e documentários. Segundo do IBGE, o setor audiovisual movimentou em 2014 um total de R$ 24 bilhões na economia brasileira.
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Ao Rio Grande do Sul cabe parcela significativa desses investimentos. Entre 2008 e 2016, o Fundo Setorial investiu no Estado cerca de R$ 56 milhões em 108 projetos de produtoras gaúchas, entre trabalhos para o cinema e a televisão, projetos de desenvolvimento e o núcleo criativo da Casa de Cinema de Porto Alegre, do qual, por exemplo, já resultou a série Grandes cenas, em exibição no canal Curta!. Entre os longas contemplados, estão, entre outros títulos, Castanha, de Davi Pretto, e Beira-Mar, de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, ambos exibidos no Festival de Berlim, Mulher do pai, de Cristiane Oliveira, premiado na Mostra de São Paulo e no Festival do Rio, e os próximos de Ana Luiza Azevedo (Aos olhos de Ernesto) e Carlos Gerbase (Bio).
Durante a gestão de Manoel Rangel, ocorreram dois movimentos significativos no setor: a lei da obrigatoriedade de conteúdo nacional na TV paga e o processo de digitalização das salas de cinema diante da extinção do processo que envolvia cópias em película. Às vésperas de viajar para Porto Alegre, Rangel conversou com ZH sobre esses e outros temas, desde seu escritório no Rio de Janeiro, sede da Ancine.
A Ancine é uma autarquia ligada ao Ministério da Cultura, pasta é um dos centros de turbulência política do novo governo. Esta instabilidade tem reflexo no seu trabalho?
Acabo de voltar de um encontro com o ministro Roberto Freire. O ambiente é de absoluta normalidade. Roberto Freire é um homem atento às questões do setor audiovisual brasileiro. O trato administrativo e gerencial transcorre em normalidade, como já transcorria com o ministro anterior (Marcelo Calero). O presidente Temer anunciou no dia 7 de novembro a renovação dos incentivos fiscais para o audiovisual, sinal de compromisso com o desenvolvimento do setor.
Durante sua gestão na Ancine ocorreram dois movimentos significativos no setor audiovisual, a lei que de obrigatoriedade de conteúdo nacional na TV paga e o processo de digitalização das salas do cinema, diante da extinção do processo que envolvia cópias em película. Qual seu balanço dessas iniciativas?
Nos colocamos no desafio de fazer com que o cinema o setor audiovisual brasileiro crescesse. Miramos no mercado de TV paga e no mercado de salas de cinema, para que filmes e séries brasileiras ocupassem um espaço importante. Com o marco regulatório da TV paga, passamos a ter 113 canais exibindo conteúdo brasileiro. Foi um processo que fluiu de maneira extraordinária. Conhecemos o mercado e o potencial de nossas mais de 7 mil produtoras. E esses canais estão exibindo mais conteúdo nacional do que o determinado. São cerca sete horas por semana quando a lei define 3 horas e meia. Mesmo que no início tenha havido alguma resistência, logo se viu as vantagens, porque o brasileiro deseja se ver na tela. Fortaleceu a audiência de vários canais. O Brasil tinha, em 2002, 3 milhões e meio de assinantes de TV paga . Em 2015 chegou a 19 milhões e meio e hoje tem 19 milhões, em razão de um processo de retração que já estabilizou.
A Ancine monitora o cumprimento da lei?
Estruturamos um sistema de acompanhamento da programação e temos registros 24 horas por dia. De modo geral, todos cumprem. Quando um canal que tinha que exibir três horas e meia de conteúdo nacional no horário nobre exibe três horas e vinte, damos como não cumprido. A lei é um sucesso junto aos espectadores e promoveu um extraordinário aquecimento do setor audiovisual brasileiro.
Quanto a digitalização do parque exibidor, o processo avançou muito rapidamente, diante da expectativa inicial, em especial junto aos pequenos exibidores, mas o circuito segue concentrado em poucos municípios. Descentralizar esse circuito faz parte das estratégias da Ancine?
A Ancine construiu um vigoroso programa de expansão do mercado exibidor. Em 2012, o programa Um Cinema Perto de Você investiu na desoneração do investimento para construção e modernização de salas. Uma sala de cinema gera impostos municipais, estaduais e federais. Em 2015, foram abertas 250 novas salas. Esse ano, mais 142. Estamos hoje com 3.120 salas no Brasil. Em 2002, eram 1.635. Vamos bater nas 3.500 salas em mais dois anos. É um crescimento superior ao da economia brasileira. Neste período de retração econômica, é evidente que diminuiu o ritmo, mas não estancou. No Rio Grande do Sul, três cidades que não tinham nenhum cinema, Montenegro, Santiago e Gravataí, passaram a ter salas. O Estado tem hoje 168 salas em 56 complexos de exibição em 31 municípios.
O crescimento do número de salas e da renda nas bilheterias indicam que o hábito de ir ao cinema continua forte, apesar das muitas opções de entretenimento disponíveis, porém o mercado de DVDs está em queda.
Todas as janelas de exibição cresceram. A TV paga cresce, as salas de cinema cresceram, a TV aberta manteve sua força, o serviço de vídeo por demanda explodiu. Já o mercado de DVD teve queda, primeiro, em virtude da pirataria e, depois, diante das mudanças tecnológicas. Tornou-se obsoleto diante do vídeo por demanda, mas ainda tem presença residual. No nosso plano de ação, nenhuma sala de cinema poderia fechar em virtude da transição tecnológica. Se um exibidor sair do negócio, é por uma razão diferente. Convertemos o prêmio adicional de renda para apoiar pequenos exibidores. No intervalo de um ano, chegamos a 99% das salas digitalizadas. Não houve tal velocidade em nenhum outro país do mundo.
Outra questão presente no setor audiovisual é o espaço ocupado pelo cinema nacional no circuito, cada vez mais voltado aos grandes lançamentos internacionais. Como a Ancine observa esse fato?
Isso tem a ver com a transformação que o mercado vivencia no mundo. Da distribuição à exibição, se privilegia o cinema como grande evento, com grandes lançamentos que promovem ocupações maciças do parque exibidor. O box office (sistema de aferição de bilheterias) do mundo inteiro é marcado por um conjunto de poucos filmes que fazem grandes bilheterias e uma massa com poucos exibidores. A despeito disso, o público do cinema brasileiro cresce. Esse ano, já vendemos mais de 24 milhões de ingressos de filmes nacionais, com um market share (proporção no mercado total) de 15%. Criamos mecanismos de apoio como o Prodecine 3 para apoiar o lançamento do filme brasileiro. Já exibimos mais de 120 filmes nacionais até o início novembro. Devemos superar o maior número de nossa trajetória, que foi 129, em 2015.
Mas não existe um desequilíbrio nesses números totais quando são poucos os filmes brasileiros que fazem um grande público, superior, por exemplo, a um milhão de espectadores, e muitos os que somam poucos ingressos vendidos?
A Ancine tem plena noção desta relação, mas que não é do cinema brasileiro. Nos filmes estrangeiros também se vê isso. Não temos pretensão de interferir na relação do espectador com o filme. Ele escolhe o que quer assistir. Estabelecemos uma cota de tela (lei pela qual o exibidor tem de apresentar um determinado número de filmes nacionais no conjunto de sua programação) em que deve existir a diversidade de títulos e temos incentivos a produtores que apostem em novos nichos. Mas tem um limite que a Ancine não pode ultrapassar. O Estado não vai ser tornar empresário, construir uma rede de cinemas. É um atividade privada, cada exibidor faz a programação da sua sala. Cada distribuidor vai ter que ter uma estratégia de viabilização de seu filme. Não há solução simples. O que temos feito é multiplicar iniciativas que favoreçam a circulação de nossos filmes. Nossa cinematografia precisa de todos os tipos filmes, os que falam com determinados nichos e os que falam com toda a sociedade. A gente mede um sucesso de um filme não apenas por sua bilheteria, mas também por sua repercussão artística, por seu impacto na renovação da linguagem, por seu desempenho em festivais nacionais e internacionais.
E como o senhor avalia as críticas à politica das leis de incentivo voltadas à produção audiovisual, mesmo quando se cometem equívocos como atribuir o benefício da Lei Rouanet ao cinema, que não faz uso dela?
Não é questão que mais vejo presente. Pelo contrário, o que vejo é entusiasmo com essa política. O Brasil construiu uma vigorosa política pública de desenvolvimento do setor audiovisual, que tem gerado empregos e projetado nossa cultura. E tem a virtude de ser realizada com recursos colhidos na própria atividade audiovisual, que são recursos do Fundo Setorial que não concorrem com recursos do Tesouro Nacional. O setor audiovisual movimentou em 2014 mais de R$ 24 bilhões na economia brasileira. Está numa curva ascendente desde 2007.