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Na primeira conversa com o diretor Roberto Alvim, Chico Buarque não acreditava que seria possível adaptar para o teatro o romance Leite Derramado (2009), sobre um representante de uma tradicional família da elite brasileira que termina a vida em um leito de hospital público. Mas Alvim surpreendeu o compositor e romancista: já estava com a primeira versão do texto pronta. Ao ouvi-la da voz do diretor, Chico ficou emocionado e cedeu os direitos do livro.
– Na verdade, inventei tudo isso apenas para ficar amigo dele – brinca Alvim, que teve sua primeira experiência com poesia ao ouvir, na infância, a canção Construção.
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Apesar da aprovação, o encenador ainda não estava satisfeito com o primeiro esboço. Foram necessárias sete versões da dramaturgia para considerar pronto o espetáculo Leite Derramado, que estreou em São Paulo em 2016 com sua companhia Club Noir. É esta montagem que tem sessões desta quarta (13/9) a sexta-feira (15/9), às 21h, no Teatro Renascença (Av. Erico Verissimo, 307), dentro da programação do 24º Porto Alegre Em Cena.
Destacado diretor da cena brasileira, Alvim não considera esta uma adaptação, e sim um “sonho do livro”, ou seja, uma “tradução teatral do inconsciente do livro e, portanto, do inconsciente do Brasil”. Durante um ano inteiro de trabalho, reduziu as 200 páginas do romance em apenas uma hora de peça, como é de seu costume, escrevendo trechos e diálogos de próprio punho, em um processo que compara à poesia:
– Foi a peça mais difícil da vida porque foi a tentativa de traduzir para o teatro o Brasil. É uma visão panorâmica de 400 anos de história por meio de figuras que têm valores completamente deturpados em relação a qualquer ética ou visão política visando ao bem comum.
Tanto no livro quanto na peça, Alvim acredita que o público encontra um lugar de empatia com Eulálio, o protagonista que se torna vítima de um sistema que ajudou a erigir. Essa capacidade de levar as pessoas a chorar com Eulálio ao mesmo tempo em que constatam sua sordidez é o que torna o livro uma obra-prima, segundo o diretor.
Ao ver uma foto de divulgação do espetáculo, Chico disse que Eulálio era exatamente como tinha imaginado. Surpreendeu-se ao ser informado pelo diretor de que se tratava de uma atriz, Juliana Galdino, uma das mais talentosas do teatro brasileiro hoje. Juliana já havia se transmutado no macaco de Kafka na impressionante atuação em Comunicação a uma Academia, também do Club Noir, apresentado em Porto Alegre em 2010. Sobre Leite Derramado, Alvim expressa:
– Toda a carreira dela convergiu para chegar a esta criação. A peça se passa na cabeça do Eulálio, na qual vários tempos e espaços começam a existir simultaneamente, em uma confusão delirante. Eu precisava de uma grande intérprete que pudesse ir a todos esses lugares. É uma trajetória do tamanho de protagonistas de Guimarães Rosa e do Macunaíma de Mário de Andrade.
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Inventário de perdas
Por Carlos André Moreira (carlos.moreira@zerohora.com.br)
Em Leite Derramado (Companhia das Letras, 200 páginas, R$ 47,90), publicado em 2009, Chico Buarque, artista de renome e flor de uma elite com ampla participação na história do Brasil, critica, numa mescla de sarcasmo e sutileza, certa elite nacional com ampla participação na história do Brasil. O protagonista, Eulálio Montenegro Assumpção, é um homem de cem anos entrevado em uma cama de hospital, dirigindo-se a vários interlocutores diferentes: uma enfermeira por quem se diz apaixonado, a filha que vem visitá-lo, os colegas doentes de enfermaria.
O leitor não tarda a perceber que Eulálio, com sua memória senil, confunde não apenas os interlocutores como os episódios. E que, na arquitetura difusa do romance, o próprio personagem é um símbolo, uma alegoria potente. Por meio do personagem bem falante (“eulalia” é um termo grego para alguém com facilidade de articulação da pronúncia), que confunde antepassados e descendentes, o livro reconstrói a história de sua família, de um senador da Primeira República, pai do protagonista, até um tataraneto traficante de drogas.
É um inventário mordaz de uma elite acostumada a servir-se do Brasil e a dar pouco em troca – causando assim, as devastadoras perdas de que o protagonista de Leite Derramado traça o inventário.
LEITE DERRAMADO
Desta quarta (13/9) a sexta-feira (15/9), às 21h.
Teatro Renascença (Av. Erico Verissimo, 307), em Porto Alegre.
Ingressos: R$ 80. Desconto de 50% para sócios do Clube do Assinante.
Ponto de venda sem taxa: Centro Municipal de Cultura (Av. Erico Verissimo, 307), de terças a sábados, das 10h às 14h e das 15h às 19h.
Ponto de venda com taxa: bit.ly/24poaemcena. Outras informações pelo fone (51) 3289-8169.
Havendo disponibilidade, os ingressos serão vendidos na bilheteria do teatro, uma hora antes de cada sessão.
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