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Há dois tipos de escritores mortos: aqueles que realmente morreram e aqueles que são constantemente descobertos, relidos e reinterpretados. Simões Lopes Neto se enquadra com folga no segundo grupo. Sua vida e obra nunca mobilizaram tantos pesquisadores, dentro e fora da universidade. Os especialistas em sua obra são considerados verdadeiros abnegados que dedicam uma vida a resgatar documentos, manuscritos e informações. O que parece motivar tanta paixão? Provavelmente uma interrogação que ainda circunda a memória do escritor, como aponta o biógrafo Carlos Francisco Sica Diniz:
– Penso que o verdadeiro mistério, quando os estudiosos já dissecaram praticamente tudo sobre o que ele escreveu, é o próprio escritor. Quem foi mesmo João Simões Lopes Neto? Até agora não se conseguiu decifrar esse enigma.
Morto fisicamente há cem anos, Simões segue "publicando" como nunca. Ainda neste ano, serão lançados os livros Inquéritos em contraste, que recupera crônicas sobre o universo urbano de Pelotas, e Simões Lopes Neto para o mundo, iniciativa do Instituto de Letras da UFRGS reunindo traduções de contos para 10 línguas, incluindo japonês, russo, chinês, polonês e catalão. Até o final de 2016, será publicada uma nova edição de suas peças de teatro em dois volumes – o segundo virá no primeiro semestre de 2017. Isso sem contar uma nova versão da biografia de Sica Diniz, ainda sem previsão de lançamento ("Posso afirmar que não demorará muito", diz o autor).
Tanto a coletânea de crônicas quanto o teatro reunido revelarão um autor para além do regionalismo com o qual foi rotulado. O professor de literatura da UFPEL João Luis Pereira Ourique, que organiza a nova edição das peças com o também professor Luís Rubira, defende que a "face urbana" do autor motivará uma reconsideração de paradigmas acerca de sua fortuna crítica:
– O principal argumento que defendo é que João Simões Lopes Neto foi mais do que o regionalismo que o consagrou. Sem argumentar contra o que é considerado até hoje como suas obras-primas, ou seja, os Contos gauchescos e as Lendas do sul, é possível afirmar que encontramos em sua literatura dramática aspectos de uma urbanidade, de um cenário cultural complementar e inserido em um contexto histórico-social relevante.
O biênio simoniano e a exposição no Santander Cultural são oportunidades para se reconsiderar o legado do autor. Na introdução a uma edição dos Contos gauchescos de 1998, o professor de literatura da UFRGS
Luís Augusto Fischer anotou que "quase nenhum até hoje teve a ousadia de situá-lo, como é de direito, no primeiro plano do conto brasileiro". Será que hoje o quadro mudou? Com a palavra, Fischer:
– De modo mais ou menos impreciso, a gente sabe que grandes como Mário de Andrade, Erico Verissimo e Guimarães Rosa, ou um crítico como Antonio Candido, admiravam as virtudes de Simões Lopes Neto, mas essa opinião nunca foi assumida de peito aberto, nem por eles, nem pela crítica em geral. Ainda são exceções os que reconhecem claramente seu valor superior, especialmente fora do Rio Grande do Sul.
Mas a que motivos se deve essa situação? Fischer prossegue:
– Por certo teriam a ver com o vocabulário muito marcado, ligado ao mundo rural sulino, mas também com o preconceito contra escritores tidos como menores, ou por serem "regionalistas", termo que só confunde, ou por não cantarem pela pauta modernista paulistana, hegemônica no Brasil como um todo e excludente como poucas outras matrizes mentais.
Para o historiador Jocelito Zalla, sua ficção "ajudou a desenhar uma imagem do gaúcho fronteiriço que se consolidou como estereótipo regional, fundamentando uma identidade política para o Estado":
– Sua literatura é um ponto chave do processo de positivação da palavra "gaúcho". No século 19, o termo era pejorativo, pois remetia a homens rudes, sem nacionalidade definida, frequentemente envolvidos em crimes de fronteira. Os rio-grandenses não se identificavam com o gaúcho histórico.