
Leia abaixo, entrevista com o escritor Millôr Fernandes publicada em Zero Hora em 1996:
Um colunista sem medo do poder
Data de Publicação: 14/01/1996
Caderno: Revista ZH
Nesta entrevista, Millôr Fernandes fala sobre seu retorno à imprensa e mostra disposição para voltar a atacar o poder.
Zero Hora - Que tal é voltar à ativa? O senhor estava sentindo falta de se comunicar com o público leitor através do jornal?
Millôr Fernandes - Olha, não sei, não penso muito nessas coisas. Quando estou fazendo uma coisa não penso nas que não estou fazendo. E eu, privilégio que reconheço sempre, tenho muito que fazer. Mas minha comunicação maior é mesmo com uma pessoa só, ao vivo. Se conseguir me comunicar da mesma forma, com a mesma intensidade, com um leitor, magnífico. Minha multidão não tem mais de seis pessoas. Meu pavor, meu pesadelo, está expresso na música de Roberto Carlos: "Eu quero ter um milhão de amigos''. Que horror!
ZH - O que mudou na sua coluna, no seu estilo, no seu pensamento, nestes anos todos de imprensa, do Vão Gogo para cá, passando por Pasquim, JB, IstoÉ e outros?
Millôr - Acho que nada. Espero que tudo. Por que você esqueceu da Veja, onde trabalhei tantos anos?
ZH - É a primeira vez que escreves para um jornal do Rio Grande do Sul. O que o filósofo do Méier acha do pampa? Que expectativa tem do leitor gaúcho?
Millôr - Sem puxar o saco dos gáuchos (o acento indica como eu pronuncio a palavra) sempre tive - e tenho - fraternais amigos nisso que você chama de pampas. E, naturalmente, tenho severas queixas quanto a tantos presidentes que vocês nos mandaram, pra não falar do governo carioca. Mas um dia vocês ainda vão ver o que é bom, quando mandarmos um carioca pra governar Porto Alegre. Do leitor gáucho espero que tenha mais o que fazer do que me ler.
ZH - O poder e os políticos sempre foram seus alvos preferenciais - e o senhor já andou qualificando Fernando Henrique Cardoso de "rei do lugar-comum''. Algum político gaúcho vai perder o sono, a partir agora, um dia antes da Zero Hora de domingo?
Millôr - Acho que o poder deve ser criticado, e severamente, até com risco de injustiça. Os poderosos têm sempre - embora chorem que não - uma tribuna maior e mais alta para desfazer qualquer mal que se lhes impute. Gostou do torneio de frase? Todo Millôr Fernandes tem seu dia de Josué Montello.
Não, a política local está fora do meu alcance e da minha competência. Mas, pra não dizerem que não falei de flores, quando eu escrevia no JB, gritando todo dia (caso Tancredo) contra a farsa montada no hospital de Base de de Brasília, o vosso governador era porta-voz (acho que durou 45 dias a farsa político/moral) do governo, e lia diariamente os informes médicos do professor Doutor Pinotti, vergonhosamente mentirosos.
E o vosso governador foi eleito por ter saneado o INSS, onde, por acaso, eu era, e continuo sendo, roubado em três salários mínimos todo mês. Devo receber dez salários mínimos, recebo sete. A passagem de Britto pelo instituto não melhorou o meu feijão, ou melhor, o meu tutu.
ZH - E que tal o Fernando Henrique Cardoso, afora os lugares-comuns?
Millôr - Melhor do que o Collor
ZH - O senhor tem um olho particularmente acurado para as insanidades nacionais. Que tem achado desta polêmica toda em torno da igreja do Edir Macedo?
Millôr - Uma crapulice institucionalizada contra uma neo-crapulice.
ZH - Que outros projetos o senhor vai tocando além da coluna? Como vai a edição do Teatro Completo?
Millôr - Não interfiro nada na edição de trabalhos meus. Não estou de olho na posteridade, nem no passado, a anterioridade. Vou indo. Aliás, vou indo bem. Não tenho de que me queixar. Me queixo de vez em quando, apenas pra que os deuses, lá em cima, não fiquem com inveja.
ZH - Alguns episódios recentes tem lembrado a falecida censura: a proibição de uma música do Paralamas do Sucesso chamando o congresso do picareta, a vergonhosa proibição de "Estrela Solitária'', do Ruy Castro, no Rio - e há quase impedem a cigana Dara de transar na novela da Globo. Como é que o senhor, que encarou o pior período da censura militar à frente do Pasquim, encara estes fatos? A liberdade de expressão ainda é frágil no Brasil?
Millôr - É claro que estamos muito longe da ditadura militar. Mas estamos nos aproximando perigosamente da neo-ditadura americana - a mais estúpida da história, tendendo a ficar violenta - a do politicamente correto. Mexe com tudo - cigarro, trepadas, segurança (o cinto), as piadas, as etnias. O cidadão americano hoje se auto-policia tanto quanto o cidadão soviético se policiava no stalinismo e o alemão no nazismo. Minha atitude é simples - me recuso a chamar meu velho amigo, por acaso negro, Antônio Pitanga, de afro-ipanemense. Os débeis lá de cima - de um lado e de outro - não percebem que quando um negro está sendo tratado com cuidado, é porque o outro o está colocando como inferior, no respeito, e ele está se colocando como inferior, na exigência.
ZH - Falando na ditadura: o senhor já leu o livro do Falcão sobre Geisel? E o livro do filho de Médici sobre o próprio?
Millôr - Não pude. Estava engolfado no Dono do Mar, do Sir Ney.
ZH - Como vai sua campanha radical contra o cinto de segurança?
Millôr - A obrigatoriedade do cinto de segurança pertence à mesma família dos tribunais de segurança, das grades em volta dos edifícios, praças e postos de mar, no Rio, à mesma família dos que inventam focinheiras de segurança pros cães não morderam (e, ocasionalmente, não ladrarem) e dos seguranças dos que (eles sabem por que) precisam deles e acabam seqüestrados por eles. Pelo amor de Deus, colegas de imprensa, examinem com muito, mas muito mesmo, cuidado, qualquer coisa em que venha - implicita ou explicitamente - impressa essa palavra.
ZH - O senhor também tem uma briga histórica contra a especulação imobiliária no Rio e, no início da década, investiu contra os planos do Marcelo Allencar para a praia de Ipanema. Como anda a cara da cidade maravilhosa? O que ainda pode ser dito de César Maia?
Millôr - Parte fundamental da violência do Rio vem da insensibilidade urbanística de seus administradores. Tenho horror, pra não dizer nojo, dessa gente. São responsáveis pela violência, mais do que a miséria e o tráfico.
ZH - É verdade que senhor corre uns 200 km por dia, como o seu editor, Ivan Pinheiro Machado, conta aqui em Porto Alegre?
Millôr - Atualmente corro só 180. É a idade. Mas não corro por demonstração de vitalidade ou qualquer outra ostentação. É, que, quando apenas caminho, a garotada murmura, me vendo passar: "Ele ainda anda!''
Não brinquem com números (Ou brinquem, se quiserem)