
Dois dias depois de uma reportagem do Fantástico mostrar que Belchior e a mulher Edna Assunção de Araújo teriam abandonado um hotel em Artigas, no Uruguai, deixando para trás bens e diárias não pagas desde maio, o casal foi identificado passeando pelo Moinhos Shopping, em Porto Alegre.
Especulava-se que Belchior e Edna estivessem hospedados no hotel Sheraton, anexo ao shopping, mas a administração afirma que eles não passaram do lobby. Quando os repórteres se acumularam, no início da madrugada, os dois foram ao restaurante Gokan, do outro lado da rua.
- Falamos que já não estávamos mais servindo, mas eles disseram que, se não fosse incômodo, estavam só aguardando a saída dos jornalistas. Ela (Edna) parecia aflita, mas o Belchior estava tranquilo. Oferecemos uma água - relata o subgerente Adriano Rodrigues de Abreu.
Passava das 2h quando o casal saiu a pé pelo estacionamento do local. Antes, pediram a indicação de outro lugar ainda aberto. No amanhecer de ontem, restava apenas o burburinho sobre o turista ilustre.
Todos que tiveram contato com a dupla tiveram a percepção de que Belchior e Edna caminhavam sem rumo. Tinham somente uma maleta de mão e não consumiram nada. Nem o café, degustado no térreo do shopping, teria sido pago por eles.
Sem dinheiro no banco
O comportamento de Belchior surpreende o Brasil desde 23 de agosto de 2009, quando o mesmo Fantástico fez uma reportagem sobre o suposto desaparecimento do artista. Ele seria localizado uma semana depois em San Gregorio de Polanco, interior do Uruguai. Sempre com Edna, dizia estar em busca de paz para compor e traduzir sua obra para o espanhol.
Meses após o inusitado retorno à mídia, no calorento janeiro de 2010, o músico cearense fez nova aparição. Desta vez na Costa Doce gaúcha.
- Tocou o telefone e me disseram assim, do nada, que o Belchior estava na sede da prefeitura de São Lourenço do Sul - diz o prefeito José Nunes.
Por que São Lourenço, o prefeito nunca soube, mas Belchior procurava ajuda para sacar cerca de R$ 10 mil de uma conta do Banco do Brasil. Conseguiu. Durante dois dias, frequentou restaurantes à beira da Lagoa dos Patos e fez amigos pela cidade.
- Não parecia mal. Estava com a mulher, um carro alugado e tinha até um motorista, que parecia uruguaio - relata o prefeito.
Um dos amigos feitos no município, que prefere não se identificar, atentou para as roupas simples e a forte influência de Edna. O fã, um empresário local, passou a trocar e-mails com Belchior, até receber um insistente convite para que ele fosse visitar o casal na fronteira Livramento-Rivera, no inverno de 2011. Demorou para ele interpretar o convite como um pedido de socorro financeiro. O casal estava com as bagagens retidas no Plaza Verde Hotel, em Santana do Livramento, por falta de pagamento.
Minha dor é perceber
O fã relata que até um advogado foi oferecido ao músico, mas que é difícil convencê-lo a receber auxílio:
- O Belchior está sendo muito mal assessorado. Tem de estar ciente de que as pessoas querem ajudá-lo. Ele está pré-disposto a achar que está sendo perseguido.
O episódio no hotel da fronteira teria ocorrido pouco antes de Belchior instalar-se em Artigas, de onde saiu abandonando até as roupas.
Pela analogia mais óbvia, Belchior parece incorporar o "rapaz latino-americano sem dinheiro no banco" que ele cantou em uma de suas músicas mais conhecidas. Amigos temem, no entanto, uma ironia ainda mais cruel. Ver o compositor sob os versos que relatam a "alucinação de suportar o dia a dia". Sua última grande turnê, pelos 30 anos de carreira, foi em um distante 2005. Na ocasião, ele passou por Porto Alegre e foi entrevistado pelo jornalista e amigo Juarez Fonseca.
- O Belchior sempre foi um cara andarilho, aventureiro, mas muito acessível. Quando vi pela primeira vez essa história do Uruguai, achei que era uma forma de realimentar a carreira. Mas agora eu temo que ele não esteja com a cabeça legal - lamenta.
O passado é uma roupa que já não serve mais
Belchior foi um dos representantes mais destacados da geração de músicos nordestinos que despontou no país na virada dos anos 1960 para os 70. O talento para a composição e o timbre diferenciado o levaram ao sucesso em 1976, quando lançou o segundo disco, Alucinação - cujas faixas Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida seriam regravadas, no mesmo ano, por Elis Regina, no álbum Falso Brilhante.
- Belchior deu a Elis um lado pop que ela não tinha, surpreendendo e convencendo uma parcela do público que não a aceitava antes - pontua o escritor e jornalista Zuza Homem de Mello. - A partir dali, a música brasileira de forma geral se tornaria mais pop - acrescenta.
Muitos outros o reverenciariam, de bossanovistas como Toquinho ao pessoal da música negra, como Wilson Simonal e Jair Rodrigues. O gaúcho Wander Wildner registrou uma versão de A Palo Seco em seu último disco, Caminando Y Cantando.
- Belchior marcou minha formação musical, e essa música em especial é uma das melhores. Tem uma letra forte, fala de América Latina, de tango, toca muita gente - diz Wander Wildner.
Para o crítico Juarez Fonseca, o ostracismo de Belchior é um mistério:
- Uma pesquisa recente o apontou como o artista mais conhecido no Ceará, e isso com o Fagner em atividade. Não entendo como alguém deste tamanho está nesta situação.