
A cidade identifica no rosto dele um crime desconfortável, do qual todos são cúmplices. Ele, todavia, não reconhece rosto algum. Nem o próprio, no espelho.
Sobre essa tensão se equilibra Barba Ensopada de Sangue, quarto romance de Daniel Galera, paulista radicado em Porto Alegre que se afirma como um dos jovens autores mais celebrados da literatura contemporânea.
Dois fatos ligados ao novo livro dão a dimensão do autor no mercado editorial brasileiro: o romance chega às livrarias esta semana com direitos de publicação já comercializados para Estados Unidos, Itália, Inglaterra e Espanha, e uma adaptação para o cinema já anunciada pelo cineasta Karim Aïnouz - seu livro Até o Dia em que o Cão Morreu foi adaptado pelos diretores Beto Brant e Renato Ciasca, em 2007, sob o título Cão sem Dono.
Em Porto Alegre, o protagonista de Barba é um sujeito ressentido por uma morte e por um rompimento na família. Em Garopaba, onde se passa a trama, ele é o neto de Gaudério, o gaúcho pavio curto do qual a cidade deu cabo em 1967.
- Meu pai me contou uma história parecida. Certa vez, apagaram a luz de um baile e diversas pessoas esfaquearam um homem. Decidi escrever um romance em volta desse assassinato - conta Galera.
A diferença é que o corpo de Gaudério desapareceu. Em seu lugar, restou uma poça de sangue. Quando o neto instala-se em Garopaba para tirar a história a limpo, descobre que o avô se tornou uma espécie de maldição sobre a qual impera o silêncio. Dificulta a investigação o fato de o protagonista ter uma doença que o impede de guardar feições por mais do que alguns minutos.
- A prosopagnosia é decisiva para compor o personagem emocionalmente. Por causa dela, ele é um cara fechado. Sem reconhecer as pessoas de imediato, ele corre risco o tempo todo - avalia o autor.
Há elementos em Barba Ensopada de Sangue que dialogam com o restante da obra de Galera, embora com uma "evolução da voz literária", conforme o autor de 33 anos. Repetem-se a relação entre homem e cão - a cadela Beta é uma personagem ainda mais importante do que o cusco sem nome de Até o Dia em que o Cão Morreu, de 2003 -, o clímax de violência cinematográfica de Mãos de Cavalo (2006) e um sempre presente ajuste de contas entre homem e mulher.
Após viver em Garopaba entre 2008 e 2009 - as enchentes de Santa Catarina aparecem como elemento para acentuar o colapso psicológico do protagonista -, Galera aprimora uma espécie de romance tátil. Apresenta um narrador cuidadoso, que observa, apalpa e cheira com toda a calma cada detalhe de cada cena, para depois seguir adiante.
Galera ao mesmo tempo oculta e valoriza os reais temas do romance. O mais evidente deles é a construção do mito: enquanto investiga a história do avô, o personagem estabelece a lenda sobre si mesmo. Em um nível mais profundo, observa-se que Gaudério e o neto embrenham-se nas matas de Garopaba pelo mesmo motivo: uma forma poética, mas também venenosa e irredutível, de lidar com o rancor.