
Se uma história de 400 anos é a prova irrefutável da permanência de um clássico, ela também pode oferecer desafios inquietantes ao ofício de um tradutor. Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, o fundador do romance moderno, é uma sátira à visão idealizada da cavalaria medieval, e lida o tempo todo com a discrepância entre esse mundo já extinto que o enlouquecido Quixote acredita habitar e a realidade que o cerca. E essa realidade já está distante quatro séculos para o leitor contemporâneo - o que acarreta diferenças brutais de linguagem, costumes e mentalidades.
Não era pequena, portanto, a tarefa que o escritor e tradutor gaúcho Ernani Ssó tinha pela frente para produzir a nova versão em português de Dom Quixote, que está sendo publicada agora (em dois volumes pela Companhia das Letras em seu selo Penguin, 1.328 páginas, preço médio R$ 79,90). Na entrevista abaixo, ele fala das dificuldades e das delícias de se entregar à tradução de uma das obras mais cultuadas da história da literatura.
Zero Hora - Como o senhor embarcou na empreitada de traduzir o Dom Quixote?
Ernani Ssó - É uma história antiga. Aos 17 anos, depois de uma semana folheando um manual de espanhol, tentei ler o Quixote no original. Me desiludi no primeiro parágrafo. Então fui estudar e ler autores contemporâneos, como Borges e Cortázar.
Anos depois, quando a editora Civilização Brasileira publicou a tradução portuguesa dos viscondes de Castilho e Azevedo, que é do século 19, tentei de novo ler o Quixote. Achei muito chato, com toda razão, por sinal, porque aquilo não é Cervantes. Além de muitos erros, como expressões idiomáticas traduzidas literalmente, muitas vezes é num português mais arcaico que o espanhol do Cervantes.
O humor se perdeu inteiramente. Aí começou minha birra, ver o Quixote num português ágil e legível. Nos anos 90, quer dizer, uns 30 anos depois da minha primeira tentativa, comecei a traduzir Cervantes meio na brincadeira. Fiz umas 200 páginas e comecei a oferecer para editoras. Quem tinha interesse não tinha dinheiro. Quem tinha dinheiro não tinha interesse. Até que uns 13 anos mais tarde ofereci pra Penguin-Companhia, que topou na hora.
ZH - O senhor conhece as quatro traduções brasileiras do Quixote?
Ernani Ssó - Sim, pelo direito e pelo avesso. Seria muita arrogância de minha parte ignorar as traduções anteriores, ainda mais de um livro importante e difícil assim. A primeira, de Almir de Andrade e Milton Amado, me desagrada, porque copidesca ou é literal, sem nunca se decidir. Acho interessante o que Sérgio Molina e Carlos Nougué fizeram, um tremendo jogo com a linguagem antiga, mas me sinto mais próximo da proposta de Eugênio Amado, que tentou aproximar o Quixote do leitor moderno. O engraçado é que tantas traduções de um mesmo livro, de uma língua muito semelhante ao português, tenham mais diferenças que coincidências. E, note-se, grandes diferenças às vezes.
ZH - É mais difícil transpor o ritmo e o tom em uma uma obra com tanto humor? SSó - O humor é um negócio muito, muito complicado, depende de síntese e agilidade, mas, antes de mais nada, de um modo específico de dizer as coisas. Veja uma frase do Nelson Rodrigues: "Nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais". Não interessa que esteja dizendo uma idiotice. Tecnicamente é perfeita. Não seria eficaz de forma direta: "Só as mulheres normais gostam de apanhar".
Pra complicar mais a coisa, Cervantes tem jogos de palavras e piadas que dependem do contexto cultural da época. Então, se o tradutor não tiver muita paciência para buscar a forma certa, se não tiver astúcia suficiente para recriar certas tiradas (na mesma atmosfera do original, senão o leitor vai perceber aquilo como interferência), vai acabar tendo de explicar piada em nota de rodapé, o que, cá pra nós, é o fim da picada. Enfim, não acho que o tradutor tenha de ser um humorista pra traduzir humor, mas é bom que tenha intimidade com o gênero.
Leia a íntegra da entrevista no blog Mundo Livro