
Inferninho mítico em que roqueiros e roqueiras bateram cartão e em que o cenário de música independente encontrou estímulo nas últimas duas décadas, o Garagem Hermética fechou as portas.
Fernando Nazer, dono da casa de shows no número 386 da Rua Barros Cassal, disparou a notícia na manhã desta quarta-feira, por meio de um comunicado no Facebook:
"Numa cidade sem memória e onde a produção cultural há muito paga pelos erros do passado, não nos resta mais nada a não ser encerrar as atividades do Garagem Hermética", relatou o empresário, que tentava, desde 2004, regularizar o alvará da casa. ZH tentou, sem sucesso, falar com Nazer sobre o fechamento.
Criada em 1992 pelo jornalista Leo Felipe e o músico Ricardo Kudla, o Garagem recebeu, ao longo de 20 anos, shows históricos e improváveis para a pequena casa na Barros Cassal. A musa indie Cat Power - antes de obter projeção mundial e voltar à Capital para um show no Opinião - e os punk rockers do Agnostic Front e do Lagwagon passaram por ali. Muitos nomes do cenário nacional também pisaram ou almejaram pisar no palco do Garagem, mas a maior parte de sua mítica e de seu lugar cativo na história cultural da cidade se dá pelo espaço que concedeu aos artistas locais. Em uma enumeração sintética ao extremo, é possível elencar shows de Replicantes, Ultramen, Júpiter Maçã e Cachorro Grande - que talvez não existisse sem o Garagem.
- Eu conheci os meus parceiros de banda ali - relembra o vocalista Beto Bruno em depoimento ao Segundo Caderno (confira a íntegra).
O cineasta Carlos Gerbase, ex-vocalista e baterista d'Os Replicantes, diz ter lembranças de shows memoráveis nos "dois Garagens": o primeiro, criado por Leo e Ricardo e mantido até 2000, e o segundo, depois que Nazer assumiu a direção e fez uma extensa reforma, que deu melhores condições ao inferninho - e, segundo os ex-frequentadores saudosistas da "primeira geração", neutralizou parte da efervescência que atraia gente para o bar.
- O rock precisa de locais quentes e escuros, em que se tropeça numa garrafa de Jack Daniel's antes de subir no palco e em que se respira fundo antes de entrar no banheiro - opina, em depoimento ao Segundo Caderno (confia a íntegra).
Além de casa de shows, festas de diferentes estilos eram frequentes, e a casa era preferida por aqueles que buscavam promover eventos com público alternativo e liberdade em todos os sentidos.
- A certa altura, quando os Bailões do CardosOnline já estavam consolidados e havia festas como Full Moon, ClubOn e Cinemeando que juntavam praticamente as mesmas pessoas ali, era quase como uma comunidade independente, um bando de gente que vivia à margem da sociedade durante aquelas horas ali dentro. Era demais - relembra em depoimento (confira a íntegra) o jornalista André Czarnobai, criador do CardosOnline, primeiro e-zine do país, que organizava os afamados Bailões no Garagem.
No relato, que deve virar livro sobre as desventuras da casa de shows, Leo Felipe exemplifica em vários momentos a diversidade de manifestações de que vivia o bar:
"Artistas faziam suas interferências nas paredes enquanto bandas tocavam no palco e a gente vendia cerveja, tudo-ao-mesmo-tempo-agora, pessoas entrando e circulando e bebendo ceva e assistindo aos shows e de repente surrupiando um pincel ou spray e fazendo suas próprias interferências nas paredes", conta em texto publicado em seu blog, Foguete Formidável.
Nos últimos anos, Fernando Nazer vinha enfrentando dificuldades para renovar o alvará de funcionamento da casa, vencido desde 2004. A agenda ficou mais vazia. Eventuais shows de hardcore e heavy metal dividiam o calendário com festas particulares, e outras casas nas cercanias da Avenida Independência passaram a desempenhar função similar à do Garagem na noite porto-alegrense - sem suprir, com a mesma força, a lacuna de shows independentes. Em janeiro, a casa fechou para passar por melhorias que, ao que parece, nunca serão colocadas em prática.
ZH tentou contatar Nazer, sem sucesso. Confira a íntegra do comunicado publicado pelo empresário no Facebook:
"GARAGEM HERMETICA, ULTIMO ACORDE.
Trocamos a razão por sonhos que julgamos não envelhecer. Achamos que nem o tempo amigo e nem a força bruta podem um sonho apagar. Porém, existem coisas que são imensuráveis, inexplicáveis, machucam e doem. Nos colocam em cheque.
Anos de batalha e nada mudou. E o pior é saber que nem assim vai mudar. Santa Maria precisa ser um divisor de águas. Hoje ter uma casa noturna e para verdadeiros guerreiros ou para irresponsáveis. A fritura cultural Portoalegrense deflagada em meados dos anos dois mil nos assola até hoje e parace não ter data para terminar. A completa omissão da Prefeitura e do Ministerio Publico me sinaliza e mostra que não adianta entrar em guerra de cartas marcadas. Onde secretários tem medo de assinar um auto de infração e votos e promessas de campanha valem mais que vidas. Peço desculpas a todos os parceiros que estão conosco nestes 20 anos de atividades, mas não dá mais. Numa cidade sem memória e onde a produção cultural há muito paga pelos erros do passado NÃO NOS RESTA MAIS NADA A NÃO SER ENCERRAR AS ATIVADADES DO GARAGEM HERMETICA. Agradeço a todos que compartilharam suas vidas conosco e sempre me fizeram ter a certeza que estes anos todos valeram a pena.
Grande abraço a todos.
Fernando Nazer.
GARAGEM HERMETICA
20 ANOS
UNDERGROUND ATÉ O FIM."