
Ao colocar o novo disco da Apanhador Só para rodar, não se preocupe: não há nada de errado com seu aparelho de som ou seus fones de ouvido.
A camada de ruídos de Mordido, a primeira faixa, é proposital, um desafio deliberado ao ouvinte. Tal ousadia ajuda a explicar o status cult que a banda conquistou desde seu começo, em 2005.
Da capa à última faixa, o álbum Antes que Tu Conte Outra é imprevisível, agressivo, desconfortável - e, por isso mesmo, encantador. Lançado na última semana via download, o álbum é uma subversão completa da proposta que tornou a Apanhador uma das bandas queridinhas do cenário indie brazuca. Em 2010, quando lançou seu homônimo primeiro disco, o grupo porto-alegrense executava um pop melódico, de temas adocicados e postura solar. Era o retrato em Instagram da banda mais feliz da cidade - o que lhe rendeu, no ano seguinte, três troféus no Prêmio Açorianos de Música (Álbum Pop, Produtor Musical e Projeto Gráfico), indicação ao Video Music Brasil da MTV na categoria Aposta e uma elogiada turnê pelo Brasil.
Propositalmente ou não, a gargalhada desdentada da capa de Antes que Tu Conte Outra parece escarnecer disso tudo. A virada é arriscada, e eles sabem disso. Enquanto faziam a pré-produção do disco, isolados em um sítio em Gravataí no final do ano passado, chegaram a pensar se não estavam indo longe demais.
- Estávamos muito envolvidos com o processo, focados em nós mesmos, sem olhar ao redor. Daí, mostramos as músicas a outras pessoas para avaliarem se não era exagero - relata o guitarrista Felipe Zancanaro.
Como ninguém reagiu mal, a banda formada por Felipe, Alexandre Kumpinski (voz e guitarra), Fernão Agra (baixo) e André Zinelli (bateria) seguiu adiante, finalizando as faixas entre São Paulo e Porto Alegre. Mas, quando enviaram o arquivo do disco para a fábrica, precisaram explicar duas vezes que os tais ruídos da primeira faixa não eram defeito. Estava claro que Antes que Tu Conte Outra não seria assimilado de primeira - embora as reações estejam sendo melhores do que o esperado.
Há pelo menos duas indicações da confiança do público em relação à nova investida da Apanhador: uma, o disco arrecadou, via crowdfunding, muito mais do que o necessário para ser gravado; outra, esgotaram-se bem rápido os ingressos para o show da banda na próxima quinta-feira, no Theatro São Pedro, obrigando a abertura de um segundo horário.
- A maioria das pessoas que baixaram o disco escreveu na internet que precisava ouvir novamente, que não tinha uma opinião formada. Outras estranharam de início, depois, gostaram. Sentimos que, no fundo, as pessoas estão mais abertas e querem ser surpreendidas - avalia Alexandre Kumpinski.
Dando nos dedos
Antes que Tu Conte Outra pode, a princípio, causar estranhamento e até vontade de chorar. Não é um disco para corações fracos, mas trata bem aqueles que procuram algo além do pop pasteurizado contemporâneo. Trata-se de uma obra destinada a não facilitar a vida do ouvinte, que toma nos dedos ao achar que entrou em alguma zona de conforto.
A abertura com Mordido (de mensagem politizada e sarcástica) é só o início da montanha-russa que continua na esquisitice delicada de Vitta, Ian, Cassales, ganha ritmo vertiginoso em Lá em Casa Tá Pegando Fogo, acelera no rock nervoso de letra pessimista de Despirocar (parceria de Alexandre Kumpinski e Ian Ramil) e arranca sorrisos em Líquido Preto - homenagem inversa ao famoso refrigerante.
Não se Precipite começa simpática, em ritmo de marchinha indie, só para, na metade, chapoletar os tímpanos do ouvinte com guitarras distorcidas; Torcicolo é um rockinho animado, com ôôôs sobre relações-relâmpago. Nado resume a vida do homem de qualquer época, observando o cotidiano com sagacidade e uma camada de barulhinhos. E por aí vai.
Uma viagem cara e sem rumo certo, mas que vale cada minuto.