
Em uma região distante do centro de Porto Alegre, não existem salas de cinema, mas há cineastas. Não há teatro, mas se multiplicam atores e dançarinos. Se faltam casas de espetáculo, sobram músicos e artistas em busca de público.
Vindos de um cantão da Capital quase sempre lembrado pela pobreza e pela violência, lutam contra a falta de estrutura para serem reconhecidos pelo talento - muitas vezes, contrariando opiniões de que se devotar à cultura em meio à carência é "coisa de vagabundo". Se é difícil fazer arte no centro cultural e financeiro da cidade, é um milagre na Restinga.
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Originado nas cortes europeias do século 16, o balé clássico faz sucesso hoje em um ambiente bem diferente dos salões aristocráticos de Paris ou Moscou: uma sala de aula de Porto Alegre com janelas quebradas, onde pinga água quando chove muito.
Nesse espaço, uma centena de crianças sonha virar bailarina apesar de dificuldades até para comprar o figurino tradicional de malha, meia e sapatilha. Mesmo assim, de todas as oficinas artísticas oferecidas em Porto Alegre por meio de convênios com a prefeitura, o curso de balé da Restinga é o que reúne maior número de interessados. Chega a haver fila.
As lições da professora Elizabeth Santos em uma unidade da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) procuram promover a autoestima das meninas, transmitir noções de higiene, disciplina, organização. Mas a sala de vidros partidos e goteiras vem revelando talentos reconhecidos até em premiações importantes como o 11º Festival Sul Em Dança, que reuniu 4 mil dançarinos no Estado em setembro. A moradora da Restinga Sophia Silva Velloso, 11 anos, tirou primeiro lugar na categoria solo em sua faixa etária. A colega Mariana Oliveira ficou em terceiro, e o projeto também conquistou a primeira colocação para grupos em dança folclórica e balé clássico.
Sophia, que pratica há três anos e ganhou uma bolsa de estudos na escola particular de Elizabeth, foi campeã em seu primeiro torneio.
- Foi uma surpresa, porque eu estava nervosa e não dancei tudo o que podia. E competi com umas 20 meninas cheias da grana - conta.
Até ingressar na oficina da Restinga, sonhava em ser bailarina e dançava por conta própria em casa, na rua, no pátio do colégio. Mas, filha de uma dona de casa e um soldado da Brigada Militar, não tinha dinheiro para pagar um curso. Um traje completo com sapatilha, meia-calça e saiote pode custar mais de R$ 1 mil. Embora Elizabeth consiga o material bem mais barato graças a parcerias, muitas famílias têm dificuldade de adquirir o figurino obrigatório.
A falta de dinheiro é um obstáculo comum à vocação artística na Restinga: enquanto o percentual de domicílios pobres na Capital é de 9,8%, no bairro da Zona Sul esse índice chega a 22,8%, e a renda mensal do responsável pela família é menos da metade do que a da média na cidade.
Uma supervisora do colégio de Sophia sugeriu que ela procurasse a oficina de balé. Lá, encontraria uma multidão de outras meninas da Restinga com o mesmo sonho - até as bem pequenas como Alícia de Oliveira, cinco anos, cara e olhos bem redondos.
- Quero ser bailarina quando crescer - garante a aluna caçula, que costuma ir para o colo das colegas mais velhas ao final das aulas.
Durante as aulas, porém, o ambiente é de rigor e disciplina como em qualquer outra classe de balé. Elizabeth fala, todas obedecem:
- Cuida a postura! Olha reto, para frente. Não olha para baixo.
A exigência da aula não incomoda as bailarinas da Restinga. Estão acostumadas a dificuldades bem maiores, a exemplo de Sophia:
- Tudo é difícil. Para comprar o figurino, foi com um suor da minha família. Abro mão de muita coisa porque o balé é a minha vida.
O DESAFIO ECONÔMICO
> Domicílios pobres (rendimento per capita até meio salário mínimo)
Porto Alegre 9,8%
Restinga 22,88%
> Rendimento médio do responsável pelo domicílio
Porto Alegre 5,3 salários mínimos
Restinga 2,1 salários mínimos
> Domicílios indigentes (rendimento per capita de 1/4 de salário mínimo)
Fontes: IBGE/ObservaPOA (2010)