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No último dia 7, horas depois da morte de Nico Nicolaiewsky, Hique Gomez pediu para não falar à imprensa. Estava impactado com a perda repentina do parceiro de Tangos & Tragédias, que sucumbiu a uma leucemia diagnosticada 17 dias antes - quando a 28ª temporada do espetáculo recém havia se iniciado.
Duas semanas depois, Hique atendeu ao pedido de entrevista de ZH. Recebeu a reportagem em sua arborizada casa no alto do Sétimo Céu, zona sul da Capital. Cercado de gatos, com fala tranquila, lembrou a personalidade e as histórias de Nico usando quase sempre o tempo presente. Também comentou sobre os últimos dias, mas a todo instante voltando àqueles que foram os primeiros - os dias em que os dois iniciaram e consolidaram a "parceria de uma vida inteira".
Zero Hora - No dia da morte do Nico, você disse que perdeu o "parceiro de uma vida". Dá para entender porque demorou para falar sobre ele.
Hique Gomez - Estou muito abalado. Acordo no meio da noite tentando entender o que aconteceu, me emociono todos os dias ao levantar e me dar conta da nova realidade. O público ficou muito emocionado com a perda. Todo o público. Muita gente. Sempre soubemos da popularidade do Tangos & Tragédias, mas agora realmente ficou claro o que o projeto representa, a relação das pessoas com o Tangos, a rotina de vê-lo e revê-lo, e depois falar com a gente. Para nós, essa relação com o público sempre foi parte do projeto. Está no DNA do Tangos.
ZH - O que você mais tem ouvido?
Hique - "Por favor, não deixa a Sbórnia morrer." É o que as pessoas pedem. Recebemos longos depoimentos, verdadeiras cartas, mensagens que, para serem elaboradas, foram necessários muito tempo e uma dose considerável de emoção. Muitas correspondências deixam claro que o Tangos é parte da vida de quem escreve. Formamos uma plateia ativa, e este era um objetivo que Nico e eu tínhamos desde a gênese do Tangos.
ZH - Como assim?
Hique - Ao falar sobre o início de tudo, o Nico sempre conta uma história segundo a qual estava em um bar. Estava aquele clima de conversas, barulho, quando ele começou a citar o texto de O Ébrio, aquele que está gravado no disco do Vicente Celestino. Instantaneamente, todo mundo parou. E ficou ouvindo atentamente. Havia ali, naquela interação, uma centelha do que seria o Tangos. Mas é claro que nosso projeto só se tornaria um espetáculo de fato com a criação dos dois personagens, a partir da nossa interação. Vamos deixar isso registrado em um livro sobre o Tangos, "no perca!".
ZH - Este livro é um dos projetos que você está preparando para se lembrar do parceiro? Há outros?
Hique - Planejávamos lançar em 2014 um livro sobre os 30 anos do Tangos & Tragédias (a serem completados em setembro), assim como o filme (a animação Até que a Sbórnia nos Separe, de Otto Guerra). Agora o projeto de livro mudou: será uma biografia do Tangos. Mas isso após respeitar um tempo de luto. Nesse período, vou me dedicar a projetos individuais. As ideias que surgirem serão gestadas com calma nesse tempo.
ZH - Entre essas ideias está o Instituto de Artes Sbornianas?
Hique - Sim. Isso surgiu na cerimônia de despedida do Nico, no Theatro São Pedro. Há algum tempo, fundei o Instituto Marcelo Sfoggia (em homenagem ao técnico de som), que tem em seus arquivos gravações dos concertos da Ospa realizados durante 30 anos. Vou aproveitar o estatuto dessa entidade para isso. O Tangos & Tragédias não existe mais. Não vai voltar. Mas há muitas coisas que podem manter viva a sua memória.
ZH - O que, por exemplo?
Hique - Todo o universo da Sbórnia. Eu mesmo já dei cursos sobre o Teatro Hiperbólico. Há o filme, o CD, o DVD, o livro em quadrinhos, o livro biográfico, as músicas que não foram gravadas, as suas versões em espanhol e inglês. O Drama de Angélica é uma das canções que ganharam versão em inglês do (compositor) Carlos Rennó. Se houver condições para que o instituto seja levado adiante, é algo sobre o que podemos trabalhar.
ZH - Em entrevista a ZH, antes da última temporada, você e o Nico lembraram um sentimento que tiveram ainda nos anos 1980, quando, após três anos de apresentações, achavam que "todo mundo que podia ver o Tangos já o tinha visto". E se perguntavam: "Como vai ser daqui para a frente?".
Hique - Pois é, chegamos à 28ª temporada. Demoramos a ter noção do que o Tangos representaria. A Dona Eva (Sopher, presidente da Fundação Theatro São Pedro) percebeu antes de nós dois. Nos anos 1990, chegou a nos proibir de fazer temporadas em outros lugares da cidade, quando cogitamos apresentá-lo menos vezes em locais maiores. E a mestra tinha razão: nos fundirmos com a história do teatro foi muito positivo para a nossa trajetória. Quem também nos surpreendeu pela forma como dimensionou o Tangos foi o maestro (Hans-Joachim) Koellreutter. Ele pirou depois de ver o show. Sabe que, já velhinho, com o Alzheimer avançado, ele acordou surpreendentemente consciente, e a mulher perguntou o que ele queria ouvir. Respondeu: "Tangos & Tragédias". Isso resume o nosso show: atrair intelectuais e crianças, pessoas simples e eruditas. E a questão da identificação, também: o Rio Grande do Sul, o Brasil, a América inteira, tudo aqui é formado por imigrantes. Ninguém sabe exatamente o caminho de todos os seus antepassados. Há algo turvo em algum trecho de qualquer árvore genealógica. Todo mundo se encontra em algum lugar indefinido do passado que não é aqui. Todo mundo é meio sborniano.
ZH - Vocês foram muito felizes em batizar este lugar lúdico que todos nós conhecemos de Sbórnia.
Hique - Todo mundo tem a Sbórnia dentro de si! E vou te dizer: quando criamos o Tangos, em 1984, o Brasil era uma esbórnia ainda maior, com hiperinflação, por exemplo. Mas a esbórnia persiste.
ZH - Como foi receber a notícia da doença do Nico? Foi tudo repentino, mesmo? Como ele reagiu?
Hique - Foram 17 dias entre o diagnóstico e a morte. Antes, ele parecia cansado, só. Achamos todos que era normal, por conta de uma doença na família, que foi desgastante para ele. Mas ninguém podia imaginar... Se houve algum tipo de sinal, foi o filme (Até que a Sbórnia nos Separe): de certo modo, a trama fala do fim da Sbórnia, e do Tangos. Ou é uma profecia, ou alguém sabia o fim da história e não me contou.
ZH - Isso que o filme demorou quase uma década para ficar pronto.
Hique - Foram oito anos com o filme. A nossa carreira toda é insólita. Nós sempre procuramos o improvável. O inusitado. Priorizamos a performance e o laboratório constante. Isso se mostrou até mais interessante do que nossa carreira de compositores...
ZH - Vocês tiveram que deixar muita coisa de lado em nome do Tangos?
Hique - Nunca deixamos nossas carreiras de compositores de lado. Mas é inegável que o Tangos tomou uma proporção muito grande nas nossas vidas artísticas. É que ele foi permitindo que nós descobríssemos capacidades que nem sabíamos direito que tínhamos, como a de performers, atores, comediantes. O importante é que nós sempre nos expressamos da forma mais integral possível.
ZH - Essa sintonia entre vocês existiu desde sempre?
Hique - Foi imediata. Quando o Tangos começou, ambos tínhamos outros projetos. Nosso encontro abriu uma perspectiva de expressão diferente. Logo sentimos que, juntos, estávamos dando um mergulho mais profundo nas nossas almas de artistas. Essa era a imagem: sentimos que podíamos ser radicais. É claro que cada um trazia uma experiência diferente. Mas a união de nossas competências sempre foi tranquila. Ultimamente, então, andamos juntos lindamente.
ZH - O Nico parecia ser um sujeito discreto, low profile. Era assim mesmo? E o quanto dele havia no Maestro Pletskaya, e de você no Kraunus Sang?
Hique - Os personagens são alter egos nossos, são nós mesmos em outra dimensão. Lúdica. Pletskaya é um apaixonado romântico, assim como o Nico. Isso está em toda a obra dele, em seus discos. Já o Kraunus é um visionário, preocupado com o planeta como um todo. Todo mundo tem um clown dentro de si. O que o artista faz é jogar luz sobre isso, expor e iluminar esse lado que escondemos, permitindo que as pessoas se identifiquem com ele e, assim, a apresentação artística se transforme num ritual de purificação.
ZH - Ainda é cedo, mas você já consegue vislumbrar como serão as coisas daqui para a frente, sem o Nico?
Hique - Meus projetos paralelos ao Tangos vão prosseguir. Já tem algum tempo que as coisas ficaram estáveis, de modo que conseguimos dar conta do Tangos e dos nossos outros trabalhos paralelos. O Nico fez temporada em São Paulo com Música de Camelô, eu levei o meu Tãn Tãngo para o Auditório Ibirapuera no ano passado... Em certos momentos, a agenda carregada do Tangos chegou a preocupar tanto a mim quanto ao Nico. Mas nós sabíamos que esse projeto era importante, inclusive para o nosso desenvolvimento artístico. A oportunidade de expressão que um proporcionou ao outro foi algo que não se repete. Nosso encontro, no palco, sempre foi explosivo em termos criativos. Foi assim até o final.