
Como um pulmão a respirar, o movimento do fole da sanfona pontua de forma emblemática o registro da vida e da obra de um músico que fez deste instrumento extensão de seu corpo. Fazer com que imagens simbólicas como essa tenham peso dramático e narrativo tanto quanto o som é um desafio nos tributos recorrentes aos grandes nomes da música brasileira, segmento muito presente no cinema nacional. E poucos são os projetos que cumprem esse desafio com a inventividade e a carga emocional de Dominguinhos, em cartaz em Porto Alegre (no Espaço Itaú, com sessões às 13h e às 20h).
A intenção dos diretores Eduardo Nazarian, Joaquim Castro e Mariana Aydar foi destacar o homenageado com uma construção formal de grande impacto sensorial sobre o espectador. Driblando um artifício recorrente no gênero, não há ninguém falando sobre José Domingos de Morais (1941 - 2013) além dele próprio. A voz de Dominguinhos sublinha imagens de arquivo que formam um painel não apenas de sua rica trajetória, mas também da realidade cultural e social do Nordeste no contexto da onda migratória rumo ao centro do país provocada pela seca e pela miséria. Cenas extraídas de documentários que prospectaram o sertão profundo nos anos 1960, assinados por nomes como Jean Manzon e Thomas Farkas, são complementadas por dramatizações que dialogam com o cinema experimental.
A narração transcorre em tom de diário pessoal. Dominguinhos fala da infância em Garanhuns, Pernambuco, onde herdou do pai, músico e lavrador, a paixão pela sanfona, e do encontro com Luiz Gonzaga, seu mestre e tutor. Aos 13 anos, sacudiu por 14 dias num pau-de-arara rumo ao Rio de Janeiro, onde o pai foi buscar trabalho. Graças a seu apurado ouvido e a seu virtuosismo autodidata, Dominguinhos logo deixou de ser pedreiro para viver só da música, incorporando ao xote e ao baião os diferentes ritmos que passou a conhecer.
Luiz Gonzaga lhe abriu portas, mas Dominguinhos, após lançar o primeiro disco, em 1964, alçou voo próprio expandindo sua sonoridade regional. Revelou-se universal e pop a partir dos anos 1970, trabalhando com Gal Gosta, Gilberto Gil e Elba Rabalho, entre outros nomes do primeiro time da MPB, e também passeou pelo jazz, como destaca o filme em momentos instrumentais transcendentes dele ao lado de Hermeto Pascoal e João Donato.
O documentário oferta ao espectador a chance de se emocionar vendo ou revendo Dominguinhos cantando e dançando xaxado com Gonzagão, mandando ver Lamento Sertanejo, tocando com Nara Leão (João e Maria), Gal (Índia), Gil (Eu Só Quero um Xodó), Elba Ramalho (De Volta pro meu Aconchego) e, entre os encontros mais recentes, de 2011, fazendo Nana Caymmi Chorar com Contrato de Separação.
Realizado com apoio do projeto Natura Musical, Dominguinhos originou antes uma websérie de oito episódios com a íntegra de gravações realizadas em 2011, que mostram o sanfoneiro ao lado de nomes como João Donato, Djavan, Nanna Caymmi, Gilberto Gil e Yamandu Costa (trechos de alguns desses encontros foram incorporados ao filme). A série completa pode ser assistida em facebook.com/dominguinhosmais.
Dominguinhos morreu em 23 de julho de 2013. Uma pena que não pôde assistir ao belo espetáculo cinematográfico e musical que agora lhe presta a merecida reverência.