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Expoente de um gênero conhecido pelos números de venda modestos, Mario Quintana tem tido a memória honrada com sucessivas reedições de sua obra. O poeta, cujos 20 anos de morte são lembrados hoje, nunca esteve tão perto de seus leitores.
Senão, vejamos: em 2005, a editora Globo reeditou seus livros, e a Nova Aguilar colocou no mercado sua Poesia Completa em um único volume. Ambos os empreendimentos foram comandados pela professora Tania Franco Carvalhal, que morreu no ano seguinte. Em 2012, os livros ganharam cara nova em relançamentos pelo selo Alfaguara da editora Objetiva. Os próximos títulos a retornar serão Porta Giratória (originalmente de 1988), neste mês; Baú de Espantos (1986), em julho, e 80 Anos de Poesia (1986), em 2015. Ainda no final de 2014, virá a antologia inédita Quintana Essencial, com seleção de Italo Moriconi, curador das novas edições.
As efemérides apontam uma discrepância entre a popularidade de Quintana com os leitores e com os acadêmicos de literatura.
- Nos últimos dois ou três anos, não tenho sido notificada de novos estudos sobre ele. Tenho notado mais pedidos para adaptações para teatro e música - afirma Elena Quintana de Oliveira, sobrinha-neta do poeta e responsável por sua obra.
Elena defende que a permanência da poesia do autor é garantida pelos jovens leitores:
- Tenho realizado muitas palestras em escolas, e as crianças estão por dentro, gostam de poesia. São elas que garantem a imortalidade, e não os estudos acadêmicos ou as peças de teatro.
Essa fidelidade do público estudantil é confirmada pelos números. Entre os 20 mil exemplares vendidos de 12 títulos do poeta já relançados pela Alfaguara-Objetiva, o maior sucesso comercial é a coletânea Poemas para Ler na Escola (3,7 mil exemplares, entre livros físicos e digitais), organizada pela professora Regina Zilberman. Depois, vêm as coletâneas originais: Canções, seguido de Sapato Florido e A Rua dos Cataventos (3,3 mil), A Vaca e o Hipogrifo (3,2 mil), Apontamentos de História Sobrenatural (2,7 mil) e Caderno H (2,4 mil).
Acervos documentais têm baixa procura
Enquanto isso, as instituições que detêm documentos de Quintana ainda estão à espera dos pesquisadores. O Instituto Moreira Salles (IMS), no Rio, guarda o principal acervo do poeta desde 2009, contando com cerca de 1,2 mil livros e periódicos, 1,1 mil documentos, 2 mil correspondências, 2,7 mil recortes de jornais e revistas e 400 fotografias, entre outros. Esse material foi consultado por apenas dois pesquisadores em 2011, um em 2012 e três em 2013 (sem contar as consultas realizadas para as reedições da Alfaguara-Objetiva), segundo o IMS.
A Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ), em Porto Alegre, tem o Acervo Mario Quintana, com 457 itens, entre manuscritos, fotografias e outros documentos. Conforme Alexandre Veiga, coordenador do Núcleo de Acervo e Memória da CCMQ, o segmento dedicado ao poeta não tem sido procurado por falta de divulgação. Os itens estarão disponíveis, em formato digitalizado, no site do espaço cultural, a partir de 30 de julho, aniversário do poeta.
É preciso ressaltar que boa parte da produção acadêmica sobre Quintana é baseada em análise de textos, e não em pesquisa de documentos primários. O número de especialistas na obra do poeta ainda é grande. Mas não tanto como há 20 anos, segundo a percepção de Italo Moriconi, professor da Uerj e curador das reedições de Quintana:
- Talvez neste momento se possa dizer que ele é mais dos leitores em geral do que dos pesquisadores. Mas ainda há o que fazer.
Um outro Quintana, marginal
Organizadora da coletânea Poemas para Ler na Escola, de Quintana, a professora da UFRGS Regina Zilberman tem uma hipótese para a ausência de uma nova leva significativa de estudos acadêmicos sobre o poeta. Segundo ela, uma das principais questões que se costumava debater - a respeito da inserção ou não do poeta em um paradigma modernista - ficou "obsoleta" com a emergência da vertente acadêmica dos estudos culturais. Regina observa que a obra de Quintana tem dificuldade em dialogar com pós-graduandos interessados em teorias pós-coloniais, feministas e de minorias.
- Não é um defeito da obra - diz Regina. - É uma incompatibilidade entre linhas de pesquisa e o que a obra tem a oferecer. Isso acontece. Há autores que ficam em um limbo e às vezes voltam.
O que pode surpreender os jovens pesquisadores é um certo aspecto marginal da poesia e da personalidade de Mario Quintana, cuja imagem ainda é associada a uma lírica ingênua.
- Esse Quintana disciplinado, dos bons costumes, não tem nada a ver com a história. Ele esteve na periferia do sistema literário, e isso mais o prejudicou do que ajudou. Basta ver que ele não teve emprego público. Já Drummond, João Cabral e o próprio Vinicius de Moraes foram funcionários do governo - aponta Regina.
Elena, sobrinha-neta do poeta, complementa:
- Sempre gostei muito desse lado mais rock dele. Está se descobrindo um Quintana mais pesado, menos criança e mais adolescente. Ele não é só um poeta lírico, é um transgressor. Refiro-me a livros como Apontamentos de História Sobrenatural (de 1976) e Esconderijos do Tempo (de 1980).
Curador das reedições da obra de Quintana, Italo Moriconi observa que o poeta "fica à margem do mundo utilitário":
- Não é um poeta edificante, não traz nenhuma lição de moral. Se você ler as crônicas dele, percebe que é irônico, crítico da moral dominante. Mas não de uma maneira ressentida, agressiva. É o ponto de vista de uma criança totalmente livre.
Para o professor de literatura da UFRGS Luís Augusto Fischer, "há um quê de rebeldia" na obra de Quintana:
- Ele empreende uma rejeição em bloco da modernidade. Não é uma rebeldia pró-ativa, ele não vai jogar uma bomba em seus inimigos. Mas vai fazer uma careta.