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O frio chegou a Gramado junto com a ficção de cordel e os mitos do cangaço nordestino. E ambos se deram bem. Estreia na direção do músico Alceu Valença, o longa A Luneta do Tempo incorpora a estrutura fabular e os diálogos declamados repletos de rimas que ajudaram a imortalizar lendas e personagens históricos como Lampião e Maria Bonita.
O filme foi exibido na quarta à noite, em um Palácio dos Festivais gelado e ainda atônito com a notícia da morte de Eduardo Campos (amigo de Valença), mas animado por um diretor figuraça que já é uma das presenças mais marcantes desta 42ª edição do festival
A Luneta... é glauberiano até a medula, de sua forma barroca à tentativa (às vezes bem-sucedida, noutras nem tanto) de relacionar eventos ordinários com o macrocosmo cultural que representam. Começa claudicante, com Lampião (Irandhir Santos) e sua amada (Hermila Guedes) caçando e sendo caçados em meio ao sertão. Quando encontram a trupe de um circo e com ela estabelecem uma parceria, o filme cresce, sobretudo ao abordar o sentido de permanência dos cangaceiros na memória de seu povo mesmo após a morte - as sequências da ressurreição e da encenação de um duelo pelos artistas circenses não serão esquecidas por aqueles que tiverem o privilégio de ver o longa.
Hermila e Irandhir, dois dos grandes atores de cinema do país, não vieram ao Sul. São ausências tão sentidas em Gramado quanto a da chilena Paulina García, atriz que fez fama com Glória (2012) e que protagoniza Las Analfabetas, longa exibido na mesma noite sobre uma senhora que não sabe ler nem escrever e que estabelece uma relação conflituosa com a persistente professora interpretada pela jovem (e bela) Valentina Muhr - em interpretação maiúscula, no mesmo nível de sua consagrada colega de elenco.
A Luneta do Tempo e Las Analfabetas tiveram suas sessões precedidas por dois curtas-metragens políticos: Brasil, ensaio em preto e branco do (muito bom) diretor Aly Muritiba sobre os protestos de 2013, e o gaúcho Se Essa Lua Fosse Minha, de Larissa Lewandowski. Produzido por alunos da Unisinos, este último é uma espécie de documentário lúdico, que aborda os sonhos de moradores de rua de forma não convencional. Poderia, ou melhor, deveria estar na Mostra Gaúcha realizada no último fim de semana, da qual, se estivesse inscrito, possivelmente sairia premiado.
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Alceu Valença: "Este filme é inspirado no que vivi na infância"
Na noite de quarta-feira, todos os holofotes estavam voltados para ele. Mas desde a terça Alceu Valença já agitava os ambientes pelos quais passava em Gramado. Verborrágico, bem-humorado apesar das notícias ruins (lamentou muito a morte de Eduardo Campos), fez o debate sobre A Luneta do Tempo, na manhã desta quinta-feira, se estender mais do que o usual - já havia sido assim, demorado, ao apresentar seu primeiro longa como diretor, no palco do Palácio dos Festivais, onde subiu com mais de 20 técnicos e atores.
- Todo mundo queria estar aqui - disse, emulando Chacrinha na entonação da voz para pedir aplausos para cada um dos parceiros da longa empreitada. - Finalmente este projeto que envolveu tantos esforços ficou pronto. Foi uma década de trabalho. Cheguei a conversar dormindo com os personagens, minha mulher ficou assustada - brincou.
Os jornalistas quiseram saber do frio, mas direcionar o rumo da conversa, com Alceu Valença, não é fácil. Que seja. O autor de Anunciação e Tropicana é melhor falando sobre o universo dos circos, dos emboladores e cantores anônimos da pernambucana São Bento do Una (onde ele nasceu e também se passa a trama de A Luneta do Tempo), inspirados na música de Luiz Gonzaga e no espírito indomável de Lampião.
- Cresci vendo isso. Foi inspirado no que vivi na infância que fiz o filme - explicou.
Confira o Trailer de A Luneta do Tempo
Festival premia Walter Carvalho
O último homenageado do 42º Festival de Gramado é um dos maiores estetas do cinema nacional. Fotógrafo de mais de cem títulos brasileiros (Central do Brasil e Lavoura Arcaica entre eles), parceiro de grandes cineastas do país e, nos últimos anos, diretor (de Janela da Alma e Budapeste, entre outros), Walter Carvalho é um veterano do evento, que volta à Serra nesta sexta para receber o Troféu Eduardo Abelin. Curiosidade: irmão do documentarista Vladimir Carvalho e pai do também diretor de fotografia Lula Carvalho, Walter receberá em Gramado o mesmo prêmio entregue a Vladimir em 2006.
Caco Ciocler mostra seu primeiro longa
Caco Ciocler é o candidato a estrela do tapete vermelho nesta sexta, última noite da mostra competitiva do Festival de Gramado. O ator e agora também diretor apresenta seu primeiro longa, o documentário Esse Viver Ninguém me Tira. O filme refaz os passos de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, viúva do autor de Grande Sertão: Veredas. Ela morreu aos 103 anos, em 2010, mas Ciocler optou por concentrar a narrativa à época da II Guerra Mundial, quando Aracy trabalhava no consulado brasileiro de Hamburgo, Alemanha - e decidiu ajudar judeus a emigrarem para o Brasil, contrariando o regime nazista e as orientações do governo de Getúlio Vargas.