
A Netflix chegou com cartas fortes na manga ao Emmys 2014, maior premiação da televisão americana. O serviço de TV por internet vinha com séries como House of Cards, sobre trambiques nos bastidores da Casa Branca, e Orange is the New Black, que trata de um presídio feminino. No ano passado, a Netflix fez história ao somar 14 indicações e arrebanhar três premiações para House of Cards. No último dia 25, entretanto, o jogo foi de cartas marcadas.
Bryan Cranston (Walter White, de Breaking Bad) recolheu seu quinto título de melhor ator em série de drama. Seus colegas Aaron Paul (Jesse Pinkman) e Anna Gunn (Skyler White) subiram ao palco pela terceira e segunda vezes, respectivamente. A badalada Orange is the New Black perdeu o troféu de melhor série de comédia para Modern Family, premiada pela quinta vez, enquanto as melhores atuações em série de comédia se repetiram com Jim Parsons (Sheldon, The Big Bang Theory), pela quarta vez, e Julia Louis-Dreyfus (Selina Meyer, Veep), agora tricampeã.
Lá na escola, isso é o que a gurizada chama de panelinha.
- Se não existia claramente uma insatisfação do público com o Emmy, ela acabou de ficar bastante consolidada com a última cerimônia. Já começou quando foram divulgadas as indicações. Público e críticos ficaram em choque com a falta de Tatiana Maslany (Orphan Black) na lista de indicadas a melhor atriz - afirma Ana Paula Bandeira, publicitária e colunista do site Ligado em Série, sugerindo que o gênero ficção científica e o caráter cult da produção podem ter prejudicado a atriz, que dá vida a diversos clones diferentes na série.
O mesmo prejulgamento teria acontecido com Hannibal, que, apesar da grande base de fãs, é "para estômagos fortes" e muito "ousada graficamente".
- Ficou mais claro do que nunca o conservadorismo dos membros da Television Academy. O grande número de indicações para originais da Netflix parecia representar a coroação de uma nova era de produções televisivas, assim como seria consagrada a grande surpresa da HBO, True Detective, produção de alto nível que teve o infortúnio de bater de frente com o adeus de Breaking Bad, mas havia a esperança de que faturasse algo mais além de direção - critica Ana Paula.
Parte da crítica internacional chegou a levantar a peteca de uma possível defesa do establishment televisivo contra a onda de serviços de streaming da internet.
- A gente poderia pensar que a Netflix não ganhou nada porque a TV está tentando se valorizar como centro de qualidade, mas não sei se tem a ver com protecionismo do meio. Existem, em todo caso, os conservadores. As pessoas que votam no Oscar são conservadoras, têm uma ideia preconcebida de cinema. No Emmy, elas podem ter uma ideia preconcebida de TV. Modern Family foi legal nas primeiras temporadas, mas ganhar ainda agora? - questiona Marcio Telles, mestre em TV pela Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação Social da UFRGS, apontando que a série repete a fórmula já gasta de sitcoms como Friends.
Ana Paula concorda que o caso Modern Family revela "a dificuldade de mudança".
- Acho que isso não chega a ter relação direta com a Netflix, algum protecionismo das emissoras tradicionais, mas talvez uma "preguiça criativa", privilegiando sempre aquilo que é seguro, conhecido. Uma dificuldade de correr riscos. Claro que esse conservadorismo de alguma forma respinga nessa nova forma de produzir (e consumir) televisão que a Netflix traz, mas ainda assim acredito que esse conservadorismo seja amplo - analisa a colunista.
Ana Paula aponta que, ainda que aborde uma família formada por um casal homossexual, Modern Family "evita ao máximo o mais tímido beijo entre eles", em contraste a Orange is the New Black, onde as cenas, tirando proveito da plataforma online, são mais ousadas. Assim, "gênero e estética sempre saem prejudicados":
- É o sombrio de True Detective, a fantasia e a nudez de Game of Thrones, a ficção científica de Orphan Black, o gore e a violência de Hannibal - enumera a publicitária, acrescentando que, nesse aspecto, o Globo de Ouro "parece estar mais sintonizado com o público e com a indústria, pois na última cerimônia premiou uma série estreante em comédia (Brooklyn Nine-Nine), além de Robin Wright (House of Cards) em vez de Julianna Marguiles, que já tem seus três Emmys".
Netflix divulgou vídeo tirando uma onda com o fato de House of Cards não ter sido premiada
TV acusando o golpe?
Marcio Telles observa que usar a premiação como lembrete de que a programação televisiva segue valorizada pode ser "uma maneira de dizer para os anunciantes que continuem anunciando":
- Tendo a reduzir questões de audiência de internet e até de novidades estéticas à economia. Muita gente diz que o cinema está acabando. Acho que é a TV que está acabando. Com o video on demand, em que cada um vê o que quer na hora que quiser, a TV perde espaço. Há 20, 30 anos, tinha um horário em que toda a família se reunia para assistir TV junta. Hoje, mesmo os debates eleitorais de agora, cada um vê sozinho na tela do computador - repara Telles.
O especialista alerta que não se deve fazer "futurologia", mas arrisca que, dentro de 10 anos ou menos, a lógica de operação de serviços como a Netflix deve tomar conta do que hoje é a televisão.
- Muito se fala em uma terceira era de ouro da TV, com grandes produções, atores e diretores de cinema, séries mais interessantes, mas a maior parte das pessoas que conheço vê séries não na TV, mas no computador. Apesar de toda a produção, a TV é pouco lucrativa. Lá fora, o investimento forte é em esportes. Os canais conseguem cobrar, as pessoas assistem juntas. Mas a Globo, por exemplo, vem perdendo audiência inclusive no futebol.
De acordo com o pesquisador, cuja dissertação sobre a transmissão de jogos de futebol pela TV ganhou o Prêmio COMPÓS 2014, é possível que as emissoras ainda não saibam lidar com o "novo panorama do audiovisual". Exceção honrosa seria a HBO, que recebeu 99 indicações e 19 prêmios neste último Emmy:
- A HBO não proíbe e até acha bom que se "pirateie" o Game of Thrones. Sabe que não vai lucrar com a exibição da série, mas vai gerar esse buzz que fortalece a marca. Tudo tem virado comércio de imagem, na verdade - conclui Telles.
Em termos estéticos, Telles entende que, em vez de pensarmos TV, cinema e mídias digitais isoladamente, "talvez tenhamos que pensar em audiovisuais como um todo".
- Arlindo Machado diz que a TV, pela baixa qualidade da imagem, tem "muitas cabeças", muitos primeiros planos. Hoje já temos produções com muitos elementos de cena, planos médios que não eram usuais na TV. O cinema, por outro lado, sempre teve a vantagem da tela grande, que vem sendo muito bem explorada, mas as pessoas hoje compram TVs de 50 polegadas. Tudo tem convergido - completa.