
Em cartaz no GNT com a série Animal, o cineasta gaúcho Paulo Nascimento apresenta A Oeste do Fim do Mundo. O filme, uma coprodução Brasil-Argentina que se passa aos pés da Cordilheira dos Andes, venceu quatro Kikitos (entre eles, o de melhor longa latino-americano) no Festival de Gramado de 2013. A estreia no circuito de cinemas é nesta quinta-feira. Leia apresentação e comentário do filme abaixo e, a seguir, uma entrevista com o diretor.
Belas imagens da desolação
Protagonista do novo clássico latino-americano O Banheiro do Papa (2007), o uruguaio César Troncoso tem trabalhado com frequên­cia no Brasil. Poucas vezes, no entanto, pôde desenvolver seu talento como em A Oeste do Fim do Mundo. Solitário e arredio veterano da Guerra das Malvinas (1982), seu personagem sobrevive em um precário posto de combustíveis na Ruta 7, antiga estrada transcontinental, na Patagônia argentina. Tem um filho com quem não fala e um amigo motoqueiro (Nelson Diniz) que, assim como ele, foi para aqueles confins buscando isolamento.
Enquanto o espectador tenta entender a complexa equação que o transformou naquela figura desolada - e aprecia as lindas imagens daquela imensidão sem fim -, surge uma forasteira vinda do Brasil (Fernanda Moro). É a presença dela e a identificação entre esses personagens em fuga que desencadeiam o principal conflito do filme.
Ambos demoram a se abrir, o que permite ao diretor Paulo Nascimento trabalhar seus silêncios - aproveitando de maneira tímida, contudo, elementos externos como o vento. A fotografia de Alexandre Berra e a direção de arte de Vol­taire Danckwardt, em compensação, são eficientes tanto na exploração das belezas do lugar quanto na construção de um cenário que, apesar dessas belezas, é de ruína.
No fim das contas, Nascimento trabalha bem essa dicotomia. E faz a passagem da consternação para a esperança de um recomeço com ritmo (lento) adequado à natureza da dupla de protagonistas. Talvez A Oeste do Fim do Mundo fosse melhor se as decisões do diretor fossem mais radicais - por exemplo, apostando mais em elipses narrativas e sendo menos didático nas remissões ao passado da dupla.
Não que o vazio da vida de ambos não apareça. Ao contrário: é a forma com que relaciona o contexto histórico e geográfico à própria jornada de seus personagens o forte do filme, talvez o melhor de toda a carreira de um dos mais prolíficos realizadores gaúchos.
Detalhe importante: A Oeste do Fim do Mundo é o primeiro longa nacional a ter sessões diárias com audiodescrição para pessoas com deficiência visual e auditiva. Na Capital, essas sessões serão às 15h, na Cinemateca Paulo Amorim.
Entrevista
Paulo Nascimento, diretor de A Oeste do Fim do Mundo
Como se deu seu encontro com a figura de um veterano das Malvinas e sua transformação em um personagem que vive isolado?
Há alguns anos, em Buenos Aires, li uma notícia que dizia que em torno de 400 dos 10 mil soldados que foram para a guerra se suicidaram. Fiquei impressionado. Fui à livraria (El Ateneo) e comprei tudo o que encontrei sobre o episódio. Percebi que o traço comum entre essas pessoas, muitas delas jogadas na guerra sem saber, era a desesperança e um sentimento de exclusão, de não pertencer mais à sociedade. Daí surgiu a frase "A última coisa que sobra da pátria é a língua", que o personagem fala no filme. Também me interessou fazer um paralelo entre esse sentimento de exclusão aguda e uma pessoa aqui do Brasil que tem um emprego mas percebo que não vai ir além disso em seu projeto de vida mesmo que tente. O passo seguinte para dar forma ao projeto foi unir os traumas desses personagens que se encontram, unir os sentimentos de perda que eles têm. Usei, para isso, a ideia dos filhos: o León (César Troncoso) tem um filho com o qual não consegue se comunicar. A Ana (Fernanda Moro) perdeu seu filho e tudo o que ela queria era se comunicar com ele. Já o Silas (Nelson Diniz) é fruto da minha vivência de viajante de moto pela Patagônia. Ele é absolutamente real, te digo que há muitos Silas por lá, gente que acredita que "a liberdade é não fazer perguntas", como ele mesmo diz. O mais louco é que, depois de terminar o roteiro, encontrei um ex-combatente em Comodoro Rivadavia, na Patagônia, e ele me contou sua história - que era quase igual à do León, tanto que acabei acrescentando muitas falas reais dele ao texto. Esse encontro ajudou não a inspirar o personagem do León, mas sim revisá-lo. Foi muito forte o que ele contou. Em menos de uma hora de conversa já dava para sentir todo o clima: dificuldade de se relacionar com os filhos, com a mulher, esse sentimento de perda da própria pátria, visto que foram jogados na guerra sem saber - ele foi para um exercício de conclusão do serviço militar, uma "manobra", como chamam, e, ao chegarem nas ilhas, receberam a notícia de que aquilo ali era real, era uma guerra.
Coproduções internacionais para o cinema e séries em rede nacional de TV: essa é sua realidade daqui para a frente?
As coproduções abrem caminhos que nunca percorreríamos: este filme será exibido no interior da Argentina, em salas do INCAA (instituto nacional de cinema do país), lugares que nunca receberam produções brasileiras. Quanto à TV, é realmente um novo patamar: só o lançamento de Animal custou a mesma grana de dois ou três longas meus. E foi a TV que buscou nossa forma de trabalhar, com a equipe e os atores que estão sempre comigo. Ou seja, foi o que fizemos no cinema que nos levou à TV. Vale acrescentar que A Oeste do Fim do Mundo foi adquirido pela Sony para exibição em toda a América Latina entre janeiro e julho do ano que vem, período em que apresentará o filme 42 vezes em sua programação. O público gigante que verá o filme na televisão jamais conseguiríamos atingir no cinema. Em Teu Nome (filme anterior do diretor, de 2009) vendeu 50 mil ingressos nos cinemas e foi visto por cerca de 10 milhões de pessoas na TV, em cinco canais diferentes.
Há uma relação interessante do vazio sentido pelos personagens do filme com a paisagem desértica que eles habitam. E, também, do silêncio daquele lugar com sua busca pela paz interior. Por favor, fala um pouco dessa relação da trama com seu contexto, de como foi mergulhar na intimidade dos personagens nesse lugar tão marcante, grandioso.
O mergulho na intimidade de algum personagem é uma questão de ótica. Aparentemente, uma pessoa fechada em uma sala, solitária, está inevitavelmente olhando para si - nesse caso inclusive pela falta de horizontes. Mas acredito que, além disso, a imensidão nos deixa só. Faz com que a gente perceba que não é nada além de um pequeno ponto na paisagem. E você está ali, com você mesmo, apenas isso. Acho que esse é o espírito do filme. Outra coisa: viajando pela Patagônia, sempre deparo com pessoas que são muito simples mas que te dão uma aula de vida, filosófica, mesmo. São pessoas que criam uma bagagem interior muito rica a partir desse silêncio, desse tempo que têm consigo mesmos, da observação das coisas ao seu redor. Nas grandes cidades, não temos esse tempo. Temos um monte de prédios que limitam nossa visão e nos protegem. Os habitantes da Patagônia não têm isso, eles se veem de frente com tudo o que os cerca, a natureza e eles próprios, inclusive. Isso se mostrou claro nas filmagens. Todas as dificuldades que tivemos nos ensaios em Porto Alegre desapareceram quando chegamos à locação. Houve uma transformação natural e instantânea, como se o ambiente tivesse transformado cada ator nos personagens que eles encarnam. Todo o ambiente mudou, também com os técnicos. O que era normalmente mais elétrico, acelerado, passou a ter um ritmo mais cadenciado, adequado ao deserto.