
Há exatos 30 anos, última semana de agosto de 1984, a vendagem do primeiro disco de Renato Borghetti ultrapassava as 40 mil cópias em apenas dois meses, e o pessoal da gravadora Som Livre, pego de surpresa, corria para atender aos pedidos de lojistas de todo o RS e até de outros estados. O LP Gaita Ponto chegara às lojas gaúchas no final de maio com 20 mil pedidos antecipados! Borghetti ainda era pouco conhecido, músico coadjuvante em três ou quatro festivais, aparições discretas em bares nativistas da Capital. Mas o lançamento do disco trazia à tona uma revelação: muita gente já estava de olhos e ouvidos nele, o boca a boca se tornou um movimento inconsciente para a materialização do fenômeno. A imagem do jovem cabeludo de bombachas e alpargatas, tocando um instrumento ancestral, se encaixa no clima nativista da época, de mesclar tradição e renovação.
No início de 1984, Borghetti procurou o produtor Ayrton dos Anjos para ajudá-lo a lançar seu disco, gravado por conta própria, ele e o violão de Enio Rodrigues. Ayrton, a quem sempre devemos agradecer pelos serviços prestados à música gaúcha desde os anos 1960, sugeriu que o som fosse mais encorpado, indicando os experientes Oscar Soares (violões) e Chico Castilhos (baixo) para os acréscimos. A ideia de Borghetti era fazer mil cópias, a serem vendidas nos shows. Ayrton levou a fita à recém-criada RBS Discos, que assumiu o lançamento em parceria com a Som Livre, divulgando na TV. E foi o tal espanto. Logo, rádios que nunca tocaram música instrumental, muito menos gauchesca, rodavam Milonga para as Missões, composição de Gilberto Monteiro, uma das influências de Borghetti. E o LP conquistou o país, foi pauta dos principais jornais e revistas, ultrapassando no final de dezembro as 100 mil cópias.
Com esse número, Renato Borghetti conquistou o primeiro (e por enquanto único) Disco de Ouro da história da música instrumental brasileira - o prêmio foi entregue em fevereiro de 1985 em Porto Alegre. Ayrton calcula que Gaita Ponto tenha vendido umas 250 mil cópias nestes 30 anos. É um álbum emblemático, ponto inaugural alto na carreira do instrumentista que se tornaria um símbolo da música com DNA gaúcho, reconhecido internacionalmente - faz pelo menos duas turnês anuais na Europa. Passado tanto tempo, o disco ainda traz surpresas, como a inclusão de Milonga para as Missões na edição de outubro de 2013 do prestigiado Princeton Tango Festival (New Jersey, EUA). A música foi coreografada por dois bailarinos de reconhecimento mundial na área do tango, o argentino Ivan Terrazas e a croata Sara Grdan, ambos radicados nos Estados Unidos. O vídeo está no YouTube.
O ano de 1984 carregava o simbolismo do livro de George Orwell publicado em 1949, sobre um futuro em que a vida das pessoas seria controlada até à intimidade por um "Big Brother". Mas o 1984 que revelou Renato Borghetti foi diferente. No plano mundial, a Apple lançava o Macintosh, revolucionando a história da computação, e a Motorola lançava o primeiro telefone celular. No Brasil, surgia o movimento Diretas Já!, a ditadura agonizava, o Rio de Janeiro inaugurava o Sambódromo. Em Porto Alegre, o Theatro São Pedro reabria as portas novo em folha depois de 11 anos fechado, estreavam o show Tangos & Tragédias, o filme Verdes Anos. E a capa do LP de Borghettinho, criada por mim e pelo fotógrafo Tude Munhóz, era exposta com destaque em todas as lojas de discos...
Os 30 anos serão comemorados com um livro biográfico escrito pelo jornalista Márcio Pinheiro, também roteirista do último DVD do gaiteiro. Lançamento provável em outubro pela editora BelasLetras.
ANTENA
> Mestiça, de Jurema
Baiana radicada em São Paulo, a cantora Jurema Paes descreve sua trajetória como "multidisciplinar". É também historiadora, com doutorado na USP em História das Culturas. Ela demorou muito para gravar este segundo álbum (o primeiro é de 2002), mas, diante da beleza e da integridade do trabalho, isso é irrelevante. A voz linda, colorida, une um repertório que surpreende a cada faixa, mesclando tradições baianas com Brasil e América Latina. Violão, guitarra, percussão, programações e vozes levam o ouvinte a uma viagem encantada pela natureza e a vida dos homens, em músicas de autores como os baianos Elomar, Roberto Mendes e Tiganá Santana, o maranhense Zeca Baleiro e o mexicano Patrício Hidalgo. Baleiro, Chico César, o maestro Letieres Leite e a cantora moçambicana Lenna Bahule fazem participações especiais. Um dos melhores CDs do ano. Saravá Discos, 12 faixas, R$ 25 (em média)
> Quente, de Saulo Duarte e a Unidade
É uma questão de tempo para a música dançante do Norte se espalhar pelo país. A paraense Gaby Amarantos abriu uma trilha que começa a ser usada por artistas mais exigentes musicalmente, como seu conterrâneo Saulo Duarte, que há cinco anos vive em São Paulo e está lançando o segundo disco. Já na primeira faixa, você vê que o negócio dele é fazer dançar - mas pode ser só ouvido, pois as letras não são simplórias ou apenas para fazer efeito. A música de Saulo tem um conceito de "Brasil Amazônico", dialogando com a América Central e o Caribe. O carimbó, a lambada e a guitarrada transam com a cúmbia e o reggae, resultando em alta combustão. Nome promissor da nova geração, ele compõe e canta bem, além de mostrar liderança à frente dos 26 músicos envolvidos. Entre os convidados estão Curumin e a cantora Luê. YB Music, 11 faixas, R$ 20 (CD) e R$ 60 (vinil)
> Anos 60 (1966 - 1969), de Jackson do Pandeiro
Amanhã, 31 de agosto, Jackson faria 95 anos - morreu em 1982. Maior que ele, dizem no Nordeste e concordam muitos críticos musicais, só Luiz Gonzaga. Mas nem Gonzagão dominou tantos ritmos ou foi tão festeiro e improvisador quanto o criador de clássicos como Sebastiana, Chiclete com Banana, O Canto da Ema, Forró em Limoeiro, A Mulher do Aníbal. Um trecho significativo da carreira do cantor, compositor e ritmista paraibano está nesta caixa que resgata três LPs lançados por gravadoras paulistas e traz um adicional reunindo músicas lançadas somente em compactos - todos pela primeira vez em CD e com as capas originais. Os LPs: O Cabra da Peste (1966), A Braza do Norte (1967) e Jackson do Pandeiro É Sucesso (1968). Algumas das músicas: Capoeira Mata Um, Vou Sambalançar, Lá Vai a Boiada, Iê Iê Iê no Cariri. Discobertas, box com quatro CDs, R$ 89,90