"Se eu ouvisse uma música dessas, eu dormia!" A sinceridade do dono da banca de revistas se intrometeu na minha contemplação de um desses fascículos de coleção que enchem as bancas. Eu tinha pensado: mais uma série de mestres da música clássica? Mais CDs cheios de pedaços sangrentos de música, como em vitrine de açougue, a lembrar Herbert Caro e suas crônicas sobre música no Caderno de Sábado muitas décadas atrás? E agora essa: "Se eu ouvisse, dormia!".
A capa multicolorida tinha chamado a atenção pelo bom gosto. Cores demais para música clássica, quem sabe, mas mesmo assim a calhar. Mais: fiquei surpreso que o CD dedicado ao velho Bach tivesse uma obra só e justamente as Variações Goldberg, feitas segundo a lenda precisamente para embalar as noites de não-sono do patrão. Talvez o jornaleiro tivesse acertado em cheio. Na dúvida, pus o CD embaixo do braço, paguei e fui embora.
Comecei a ler o livreto ali mesmo num banco de parque: texto bem escrito, sem nenhuma sombra de simplificação, sem biografias romanceadas, sem adjetivos para afogar o texto, sem tratar a música de "coisa linda" e nem o compositor de "genial". Sidney Molina vai acertando o alvo página por página, até nas referências bibliográficas, que normalmente se leem com certa desesperança. Dias depois, outra surpresa boa no texto de Irineu Perpetuo para o CD de Chopin. Prova dos nove: coleção boa de manusear, CD com obras completas sem fazer concessões à satisfação imediata, texto com palavras exatas.
Como costumo ser metódico, tenho perseguido os CDs da coleção sempre na mesma banca e o olhar do dono nunca varia, é sempre o olhar de quem sabe que a loucura se manifesta de várias formas, até ouvindo os mestres da música clássica. Apenas que agora o que me interessa é menos a música do que o texto do livreto. Ali tenho encontrado coisas interessantes, o que é bem mais do que se espera de música comprada em bancas de esquina.