Cultura e Lazer

Cowboy rock'n'roll

Roqueiro Julio Reny vai ganhar biografia "sem meias palavras"

Livro sobre a história do músico das bandas Cowboys Espirituais e Expresso Oriente terá formato inspirado em "Vida", de Keith Richards

Daniel Feix

Enviar email
Adriana Franciosi / Agencia RBS
Julio Reny

"Julio Reny. Músico, compositor, cantor, ator, outsider, radialista, pai e, nos atribulados anos de juventude, goleiro, brigadiano mirim, ladrão de discos e brigador de rua."

É assim que o músico, conhecido por bandas como Expresso Oriente e Cowboys Espirituais, se apresenta no livro Histórias de Amor & Morte, que deve sair em 2015 pela editora Artes & Ofícios. Não é uma autobiografia. Trata-se, isso sim, de um exercício de estilo que o autor, o jornalista Cristiano Bastos, adotou inspirado em Vida, do guitarrista Keith Richards, publicado no Brasil pela Globo Livros.

- Fiquei impressionado com aquela figura tão diferente na cena local dos anos 1980 - diz Bastos, sobre Reny. - Essa sensação aumentou na entrevista que fiz com ele para o (livro) Gauleses Irredutíveis (Ed. Sagra-Luzzatto), em 2001. Ali ele desfiou um incrível roteiro de histórias. Ficou claro, para mim, que são poucos os artistas tão biografáveis quanto ele.

Julio Reny é, na definição de seu biógrafo, um "mito". Às definições e aos adjetivos da frase de abertura deste texto, em uma rápida conversa com ZH, acrescentou vários outros.

- Será um livro sem meias palavras sobre drogadição e alcoolismo, sexo antes e após quatro casamentos, loucuras e muito rock ‘n’ roll - afirma.

Na "terapia" em que se transformaram as entrevistas (a definição é do próprio biografado), são relembrados os 35 anos de carreira, que tiveram início em 1979, "ano do primeiro show profi, no teatro da Faculdade de Medicina da UFRGS, com cartaz, nota no jornal e iluminação com latas de leite em pó", lembra Reny.

No livro, o autor de canções como Jovem Cow­boy, Não Chores Lola e Amor & Morte revisita álbuns clássicos como Último Verão, lançado em fita cassete em 1983 ("Porque eu não queria reduzi-lo para um LP simples; teria de ser duplo, e aí era muito caro"). E, também, repassa parcerias e bandas menos badaladas, a exemplo de Os Daltons, Uma Canção nas Trevas e Km 0, esta com um jovem Edu K em suas fileiras.

Em meio a isso, e em atividades como o cinema (atuou em Deu pra Ti, Anos 70, entre outros filmes) e o rádio (foi produtor e apresentador da Ipanema FM por mais de 10 anos), não faltam histórias de amor e desamor.

- Essas histórias se confundem com suas músicas, já que as letras são confessionais e têm uma sensibilidade, às vezes um olhar feminino, incomum no rock local - observa Bastos.

O mais importante talvez seja o desprendimento desse olhar em perspectiva para o passado.

- Tenho muitas lembranças ruins, é claro - afirma o músico. - Mas, no livro, quero rever tudo sem maiores omissões. É mais íntegro assim.

Outros projetos

Se a biografia já está em sua reta final, o documentário e o DVD seguem em produção. O filme, que terá entrevistas e bastidores de shows, será dirigido por Tamires Kopp e Fabrício Costa. O DVD será o primeiro da carreira de Reny. Terá cerca de 20 músicas, que já foram gravadas no estúdio Marquise 51, em Porto Alegre.

- Estamos plantando agora para colher, talvez, em 2015 - projeta o músico.

Oásis de referências
(um depoimento do músico e parceiro Frank Jorge sobre Julio Reny)

"Num universo de estilos e sonoridades que se forjavam por aqui na primeira metade dos anos 1980, a partir de alguns ecos da década de 1970, hard rock/heavy metal e, é claro, o desbunde punk-pós-punk-new-wave-synth pop, tinha um verdadeiro oásis com outras referências, outro vocabulário, letras que ora mostravam-se como narrativas de conquista e dor, ora crônicas sobre a vida nervosa nas urbes: era o Julio. O nosso Julio Reny.

Conheci o Julio no filme Verdes Anos (1984), em algum cinema de calçada de Porto Alegre; ele colocaria o PA (a sonorização propriamente dita) no primeiro show do Prisão de Ventre (minha primeira banda oficial), junto com o Fluxo (embrião do DeFalla) naquele mesmo 1984, na extinta B 52's. Quando o Julio constituiu a banda Expresso Oriente, trazendo percussão, saxofone, teclado, junto com baixo, guitarras e bateria, num repertório autoral-passional e reflexivo-descritivo, podíamos não ter plena consciência, mas estávamos diante de algo único e em sintonia com o melhor do pop mundial daquele momento - Sade, Bryan Ferry, The Cure, música pop africana, tudo isto sem deixar de ter a pegada rock.

Tive a oportunidade - diria até o privilégio de tocar (algumas vezes) na Expresso Oriente, na Guitar Band e nos Cowboys Espirituais: não aprendi apenas muitas lições sobre música, aprendi muito sobre a vida. Longa vida ao Julio Reny e longa noite pros sulistas."

Jogada Noturna
(um trecho do livro Histórias de Amor & Morte, sobre Julio Reny)

Lançada em 1982, Cine Marabá, faixa que abre o álbum Último Verão, teve bom reconhecimento de público e crítica. Tocou direto na programação das rádios de Porto Alegre, como a Ipanema FM, e ganhou, também, execuções em emissoras fora do Rio Grande do Sul. Uma dessas rádios era a "maldita" Fluminense, do Rio de Janeiro, espécie de coirmã da Ipanema, que a tocou bastante em sua programação. Segundo me disseram, tocava lado a lado com a demo tape de Vital e Sua Moto, dos Paralamas do Sucesso, que também estava surgindo no cenário, e Kid Abelha. Cine Marabá foi meu primeiro hit, pequenino hit, a ponto de o [cantor e compositor] Guilherme Arantes elogiar-me publicamente como letrista. Cine Marabá é a segunda música que gravei na vida; a primeira - que dou como pedra fundamental de minha obra - é Tomás e a Lagoa. Para um principiante, até que dei muita sorte. As outras canções, porém, não tiveram sorte igual. Nenhuma delas caiu no gosto dos ouvintes. E, tampouco, dos radialistas. Mas Super Homem com o tempo se tornou mítica.

Como estratégia de venda e distribuição do Último Verão, Jaqueline e eu tivemos a ideia de criar um selo fonográfico, o Pirata Sulista. Conforme a nossa contabilidade, comercializamos, ao todo, umas quinze cópias do disco. Remetíamos as fitas aos parcos, mas honrados, compradores pelo correio. Nem imaginaríamos que hoje, depois de mais de 30 anos - irrefutável prova de sua longevidade -, a fita cassete seria uma valiosa raridade fonográfica procurada por colecionadores. Ainda tenho, em meus alfarrábios, um exemplar sobrevivente da fita cassete - "filha única". Sempre que meto os olhos na fitinha fatalmente sou tomado de séria nostalgia. Raramente me ponho a ouvi-la, no entanto. Mas quando isso acontece sei que a emoção ali premida não revela qualquer arrefecimento. Eu posso até ter superado o Último Verão, mas a verdade é que o Último Verão nunca me superará.

O disco saiu no começo de 1983, sem que houvesse lançamento oficial. A arte gráfica da fita cassete original - a ilustração de uma "noite no subúrbio" - levava assinatura do gaúcho Mauro Fuke, hoje artista plástico renomado internacionalmente. Na reedição do disco em CD, feita pela Barulinho Records, em 2001, a foto utilizada na capa, dos meus tempos de cabeludo, foi retirada de uma sessão realizada pelo fotógrafo Manuel A. Costa Júnior em 1979. Eu fazia as cópias da fita manualmente, utilizando um gravador que comprara exclusivamente para essa finalidade, e vendia num esquema de pronta-entrega. O prestígio do álbum junto à crítica especializada, entretanto, não correspondeu ao gosto do público. O [lendário repórter que comandou o tabloide Versus nos anos 70] Marcos Faerman foi um dos que elogiaram o disco, chamando-me, pela primeira vez, de Lou Reed de Porto Alegre.

Em 1983, em sociedade com outras duas pessoas, Jaqueline inaugurou, em Porto Alegre, a loja Armação, especializada na venda de discos e produtos independentes. O tipo incomum de iniciativa que, há mais de trinta anos, era considerada vanguarda. Naquele tempo não existia grandes perspectivas para o chamado "mercado independente". Então, despretensiosamente, pensei: "Vou gravar essa fita [do Último Verão] e botar para vender lá na loja". A Armação ficava numa galeria da Avenida Independência, esquina com a Barros Cassal. Tanto na forma de produzir quanto de distribuir o disco, nos alinhávamos com a embrionária cena independente nacional - como, por exemplo, a "Vanguarda Paulista", na qual se inscreviam artistas como Tetê Espíndola, Arrigo Barnabé, Ná Ozzetti e os grupos Premeditando o Breque e Língua de Trapo. Em Porto Alegre, não recordo de muitos aventureiros arriscando-se nas searas da música independente. As exceções, além de mim, eram o Nelson Coelho do Castro, com o disco Juntos, e o Nei Lisboa, com Pra Viajar no Cosmo Não Precisa Gasolina. Para gravar o seu álbum de estreia, Nei lançou pioneiramente, em Porto Alegre, o chamado "crowdfuding" - a popular "vaquinha" - com o projeto "Neilisbônus".

Não sei, até hoje, por que cargas d’água eu entrei numas de lançar o Último Verão com "tudo em cima", obedecendo a exigências legais como, por exemplo, registro no [Escritório Central de Arrecadação e Distribuição] Ecad e na [Ordem dos Músicos do Brasil] OMB. Submeti Super Homem Está Esquecendo as suas Melodias à censura e, por sua vez, a música teve sua letra questionada. Fui chamado pelo órgão censor para responder por ela - o que eu estava querendo dizer com "a lenda daqueles três rapazes". Não havia nada que pudesse ser tachado de subversivo na música, mas a letra era muito metafórica, e precisei defendê-la perante o censor. Pouco a música não foi vetada.

Com toda papelada legalizada, recebi um número de inscrição do Ecad, para fins de recebimento pela execução pública de minhas músicas. Eventualmente ainda recebo  direitos autorais de Cine Marabá, que tem boas execuções nos estados do Sul e Sudeste até hoje. De qualquer forma, foi uma complicação imensa botar no papel a empresa, que, durante anos, esteve sediada na garagem da minha casa no bairro Santana: "Julio Reny Pirata Sulista", lia-se num quadro afixado à parede. Vivíamos tempos em que tudo tinha de ser "legal", pensávamos. Tanto que eu pagava a Ordem dos Músicos do Brasil todos os meses. Apesar de já soprarem ventos favoráveis à abertura política, naquela época a gente era tri "cu-de-ferro". Era, na realidade, o temor repressivo, que ainda pairava nos ares.

GZH faz parte do The Trust Project
Saiba Mais
RBS BRAND STUDIO

Galpão da Gaúcha

08:00 - 09:30