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Talvez o método mais antigo (e prático) de organização, as filas são parte do cotidiano humano tanto quanto reclamar das próprias. Ninguém gosta de pegar fila, mas todos - querendo ou não - fazem uso. É impossível fugir delas mesmo para se divertir: organizadas ou caóticas, silenciosas ou barulhentas, ecléticas ou homogêneas, as filas compõem um microcosmo que é parte indissociável da vida noturna.
Em 2010, em um artigo publicado em Zero Hora, o escritor Moacyr Scliar (1937 - 2011) resumiu bem a questão: "A fila é um estilo de vida, e isso fica muito visível nos fins de semana, nas casas de diversão". Fiapo Barth, proprietário do mítico Ocidente, concorda com o centauro do Bom Fim:
- As pessoas andam pela cidade caçando filas, faz parte do código social - aponta. - Metade da fila do Ocidente não entra na festa, nem consegue ingresso para entrar, estão lá apenas para curtir e azarar. Faz parte da festa.
Para entender um pouco desse ecossistema, o 2º Caderno caiu na balada para descobrir quem são, o que fazem e como vivem os frequentadores das filas de algumas das festas mais disputadas de Porto Alegre.
Tem de tudo: de gente que conheceu o grande amor da vida a quem prefere matar o tempo no celular, passando por aqueles que têm urticária só de enxergar uma fila dobrando o quarteirão e outros que, por ganharem o pão de cada dia na noite, só veem vantagem naquele pessoal embretado, esperando a vez.
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A fila anda. Ou não.
O relógio marca meia noite e meia e o entroncamento da João Telles com a Osvaldo Aranha já está tomado. A linha humana que dobra a esquina tem um motivo: a vontade de entrar na Blow Up, uma das festas mais populares do Ocidente e mais tradicionais de Porto Alegre. Homens de camisa social e jeans, mulheres bem maquiadas e com vestidos brilhosos trocam olhares e sorrisos. Nem parecem se importar com a espera.
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A atenção de todos é fisgada quando uma van preta estaciona. Dela, sai uma moça de cabelos longos com véu, grinalda e buquê. A noiva é Sabrina Fiori, 34 anos, que está comemorando sua despedida de solteira com mais 14 amigas. A psicóloga e suas acompanhantes não entram na fila: já tinham comprado ingressos antecipados. A história de amor que culminou em casamento, marcado para este mês, teve início justamente numa fila de festa, há 12 anos.
- Em 2002 uma vidente me disse que eu iria encontrar o grande amor da minha vida - conta Sabrina.
Dito e feito. A profecia da vidente se concretizou um mês depois, quando Sabrina aguardava para entrar na antiga Liquid (ali mesmo, na própria João Telles). Sabrina estava com algumas amigas quando olhou para um rapaz e profetizou:
- O dia em que eu ficar com esse guri, não preciso ficar com mais ninguém.
Naquela festa, ficaram juntos e, 12 anos depois, vão se casar.
Mas Sabrina é exceção. Dificilmente o amor de fila vê o dia raiar (ou sequer entra na boate), como garantem as amigas Ariel Sirtoli, 19 anos, e Michely Senna, 26, à espera para entrar na Uptown Club, casa recém-inaugurada e que reúne uma fila de respeito aos finais de semana.
- Teve uma vez que rolou umas conversas na fila, mas nada demais - desconversa Michely.
- O forte mesmo da fila é botar a conversa em dia.
As amigas contam esperar em média 30 minutos para entrar nas casas de que mais gostam, mas já chegaram a ficar mais de uma hora contando as pedrinhas do calçamento. Paciência é requisito mínimo para os habitantes das filas, mas há quem, por motivos nobilíssimos, prefira levantar acampamento.
- Preciso muito ir ao banheiro, senão até aguentava mais um pouquinho - relata Beatriz Matte, 21, que debandou da fila da festa Lollypop, no Beco.
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Ela e os amigos Adriana Sampaio, 27, Arthur Lauxen, 22, e Bruna Feltes, 21, desistiram de entrar na casa após uma hora e meia enfileirados na Avenida Independência. Já tinham feito todo o aquecimento que podiam e quase gasto toda a bateria do celular jogando e conferindo redes sociais. Mesmo assim, admitem o efeito psicológico que a fila exerce sobre o imaginário notívago.
- Fila demais é um saco, mas não ter nenhuma fila também é ruim - comenta Lauxen.
Produtora da Lollypop, Emanuelle Neis garante que a festa tenta minimizar o tempo de espera nas filas o máximo que pode. A venda antecipada de ingressos é uma das alternativas, mas nem sempre é suficiente.
- Acontece muito de as pessoas chegarem quase todas na mesma faixa de horário. Daí não tem como não formar fila - diz Emanuelle.
Situação semelhante ocorre no Ocidente, que também trabalha com venda antecipada de ingressos.
- Colocamos para a venda antecipada metade dos ingressos, a outra metade vendemos na bilheteria para que as pessoas tenham a oportunidade de comprar na última hora - conta o proprietário, Fiapo Barth. - Só que, de uns tempos para cá, temos notado que muitos chegam às 22h30min para comprar ingressos, aguardam na fila e, quando conseguem comprar, voltam para casa e só retornam perto da 1h da manhã, quando a balada está cheia. É um ciclo vicioso.
Outra campeã de filas, as festas da Lab, na Cidade Baixa, contratou duas hostess para agilizar o processo de verificação de identidade e nomes em lista. Para o produtor da casa, Fábio Cobalto, o principal motivo das filas é simples.
- Somos uma casa muito visada, mas com uma capacidade pequena de público - define, explicando que o espaço deverá aumentar de tamanho até dezembro e ampliar seu público de 205 para 450 pessoas.
Há quem busque alternativas para tornar a espera menos entediante. É o caso das festas Rockwork e Bombom, na casa noturna Cucko, na Cidade Baixa. Disputadíssimas, as duas baladas costumam originar filas épicas.
- Procuramos dar uma atenção especial para todos aqueles que estão na fila, seja distribuindo cupcake, batata frita, botom, água ou puxando conversa - comenta Thales Speroni, produtor das festas e curador do Cucko.
- Além disso, começamos a abrir uma hora antes para fazer com que a chegada das pessoas fosse mais bem distribuída durante a noite, diminuindo a duração das filas.
Ainda no Beco, Elisa Brugger, 20 anos, enfrenta quase uma hora na fila que se estende por grande parte da Avenida Independência - ela, que sempre compra ingressos antecipadamente, desta vez deixou para a última hora. A estudante costuma fazer amigos durante a espera, mas afirma que não existe nenhum tipo de etiqueta nas filas.
- É terra de ninguém. Se todo mundo respeitasse a ordem, eu respeitaria também.
Em uma boate da Rua João Alfredo, na Cidade Baixa, duas amigas reclamam que estão em sua segunda tentativa de balada - na primeira, desistiram por causa da fila que não andava. Migraram para outra casa e seguem reclamando:
- Bota aí que essa gente tranca a porta só para deixar formar fila. É um absurdo, uma completa falta de respeito - diz uma delas.
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Coisa de 20 minutos depois, a dupla sai da fila, conversa com um dois rapazes na calçada da boate e são colocadas para dentro - sem precisar esperar na fila. Boquiaberto, o pessoal que aguarda pacientemente sua vez de entrar apenas faz um muxoxo. Sabem que esse tipo de estratégia é natural e pouco pode ser feito a respeito - já a acusação de "segurar" a portaria para formar um grande e vistoso amontoado de gente na rua é rebatida.
- Isso é uma lenda urbana, eu perderia dinheiro com isso - diz Fábio Cobalto, da Lab.
Thales Speroni afirma que "o Cucko trouxe a sua fila para dentro da casa, porque não se importa com a aparência de casa cheia, e sim que a festa esteja realmente legal e que as pessoas na fila possam esperar com segurança, organização e respeito aos vizinhos".