
Antoine de Baecque nasceu em 1962, em plena efervescência da nouvelle vague, movimento que revolucionava a forma de fazer e pensar o cinema e do qual ele viria a se tornar um apaixonado especialista no campo acadêmico, editorial e jornalístico. Historiador, pesquisador, crítico e biógrafo de François Truffaut, Jean-Luc Godard e Éric Rohmer, entre outros realizadores, Baecque vai compartilhar seu conhecimento na conferência que fará em Porto Alegre no próximo sábado, às 19h, na Sala Redenção (Campus Central da UFRGS), com entrada franca.
Veja artigo de Antoine de Baecque sobre François Truffaut
Os 30 anos da morte de Truffaut (em 21 de outubro de 1984) estão na pauta do encontro e inspiram a mostra que a Sala Redenção exibe até 29 de novembro, passando em revista a filmografia do diretor em sessões comentadas, com ingresso gratuito. A vinda de Baecque à Capital resulta de uma parceria entre UFRGS, Aliança Francesa de Porto Alegre e Embaixada da França em São Paulo. Aproveitando a estada do crítico na cidade, foi organizado um encontro extra em razão da Feira do Livro. No domingo, dia 9, às 19h, no Santander Cultural, ele vai autografar e falar com o público sobre seu celebrado livro Cinefilia, lançado no Brasil em 2011 pela Cosac Naify.
Professor de História e Estética do Cinema na Ecole Normale Supérieur de Paris, Baecque foi redator-chefe da Cahiers du Cinéma de 1997 a 1999 e editor de Cultura do jornal Libération entre 2001 e 2006. Entre dezenas de publicações, tem já fez ensaios sobre Tim Burton, Manoel de Oliveira, Andrei Tarkovski, Maurice Pialat e Jean Eustache. Em sua experiência no cinema, assinou o roteiro do documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague (2010), de Emmanuel Laurent, que narra a história da afetiva e, depois, conturbada relação entre os dois mestres do cinema.
Antes de sua vinda à Capital, Baecque concedeu esta entrevista a Zero Hora.
Nestes 30 anos da morte de François Truffaut, o que você destacaria como mais representativo na trajetória dele?
Truffaut teve a ideia de que um filme poderia, ao mesmo tempo, dizer respeito a todos, coletivamente, e a cada um, pessoalmente, intimamente. Uma vez que sua vida, existência tão romanesca à qual ele deu forma em seus filmes, poderia fazer vibrar cada um de seus espectadores. Este cinema não era uma arte para um círculo restrito, uma experiência vanguardista para poucos privilegiados. Tratava-se, para Truffaut, de trabalhar no sistema do cinema comercial, a fim de tocar vários espectadores. Ao mesmo tempo, isto não lhe impedia de contar histórias muito pessoais, mesmo autobiográficas. Truffaut quis manter juntos o diário e a cultura popular. É nesta lacuna que vibra seu cinema, tão pessoal quanto uma impressão digital.
Dois contemporâneos de Truffaut, Jean-Luc Godard e Alain Resnais, este recentemente falecido, lançaram filmes em 2014. Como você observa a longevidade da carreira de ambos?
Na verdade, é Truffaut que é uma exceção: ele morreu aos 52 anos, deixando sua obra inacabada. Rivette e Chabrol fizeram filmes até os 80 anos, Resnais e Rohmer filmaram até quase os 90 anos, Godard ainda faz filmes com 84 anos. Em todos estes diretores da Nouvelle Vague a obra é escrita através do tempo, seguindo suas evoluções, suas contradições, suas inscrições em épocas diferentes pelas quais eles passaram. A longevidade faz parte então da Nouvelle Vague, que é sinônimo de juventude, de irrupção súbita, certamente, mas que permitiu a artistas maiores afirmarem-se, cada um de sua maneira, na duração. O que me surpreende nos filmes mais recentes destes cineastas é sua liberdade. Eles não procuram se parecer, absolutamente, ao cinema da década de 1960. Eles propõem um renovação constante. A vitalidade deles existe, inicialmente, no presente.
A internet democratizou o acesso a filmes de mais diferentes épocas e países. Na sua avaliação, a cinefilia exercitada fora da sala escura tem o mesmo impacto de deslumbramento que fez gerações passadas se apaixonarem pelo cinema?
Nós vivemos em um momento em que existe uma incomparável heterogeneidade das imagens: a imagem-cinema é, a partir de agora, mergulhada nas imagens-ecrã. É, ao mesmo tempo, estimulante e inquietante. Nós estamos fabricando um cinema mutante. Encontramos este fenômeno em cineastas como David Lynch, nos grandes formalistas asiáticos (Hou Hsiao-hsien, Wong Kar-wai, Tsaï Ming-liang, Jia Zang-Khe) ou então nos diretores europeus mais audaciosos. E mesmo, cada vez mais, no cinema hollywoodiano dominante, de James Cameron a Tim Burton, de Christopher Nolan a M. Night Shyamalan. Igualmente, a relação cinéfila à obra seguiu tal processo de hibridismo: nos diversos suportes que permitem hoje entender uma obra, tomar conhecimento dela, apropriar-se dela. Entramos no tempo da heterogeneidade e do hibridismo das formas. O cinema, a partir de então, fabrica monstros. Vivemos em um momento de mutações delirantes tanto das obras quanto de seus amores cinéfilos, um tempo de aprendizes de feiticeiro. Ao mesmo tempo, é muito excitante e muito angustiante pertencer a esta era quimérica da cinefilia.
A diminuição do espaço para a crítica cinematográfica em jornais e revistas tem como contraponto a abertura do espaço virtual. Como você avalia essa pulverização da opinião? O crítico cultural, não apenas o cinematográfico, tem hoje a influência que teve no passado?
O cinéfilo se renovou profundamente, aquele depois da minha geração. A crítica foi, ao mesmo tempo, salva e abalada pelo DVD e pela internet. Hoje, podemos ver quase tudo, e cada cinéfilo pode entrar em contato com o outro sobre um filme, sobre uma ideia, para dividir suas preferências, sua cultura, seu saber, quer ele esteja em Paris, Roma, Taiwan, Seul, Los Angeles ou, é claro, no Brasil. Isto recriou o laço cinéfilo, multiplicou os grupos, os especialistas, desenvolveu as opiniões, os textos críticos, os fóruns e as vontades de fazer cinema. Existe uma vitalidade excepcional da crítica. Aliás, sem dúvida, nunca se escreveu tanto sobre cinema como hoje. Ao mesmo tempo, isto pode ter um efeito perverso: escrevemos demais, fazemos filmes demais. Se tudo está ai, tudo é possível, tudo é dado, falta o obstáculo, a raridade, que são as primeiras condições da criação e da crítica. A crítica na França e no mundo certamente perdeu muito de sua credibilidade, de sua influência, de seu lugar nos jornais nestes últimos anos. Mas, para mim, ela permanece essencial: sua legitimidade é integral, pois considero que é tão importante escrever sobre um filme quanto realizá-lo. A crítica faz parte da criação: ela só faz existir um filme, no sentido profundo da existência. Alguém o viu, escreveu, e ele existe.
Como sobrevive a Cahiers du Cinéma? Qual o perfil dos críticos que nela escrevem?
A revista tenta recomeçar, depois de grandes problemas financeiros, com uma equipe mais jovem. Em si, é uma coisa boa. Quando a revista é jovem é que as ideias mudam, que os gostos se afirmam. Mas o contexto é difícil. Há duas coisas que ameaçam o Cahiers du Cinéma atualmente, a revista encontra-se entre dois perigos. De um lado, a globalização: se o Cahiers tornar-se uma revista como as outras, parecendo-se a uma revista americana, então, infelizmente, será seu fim. Por outro lado, existe no Cahiers um reflexo autista, clânico, crispante, rotineiro, cegante e moralizador, que impede seguidamente de se ver a novidade, as diferenças, as surpresas, de ser curioso do mundo, das artes, dos escritos, dos pensamentos que nos rodeiam. No meu ponto de vista, o futuro do Cahiers du Cinéma é tornar-se novamente minoritário e ser mais aberto, curioso. É preciso fazer uma revista mais definida, mais teórica, mais ousada, mais aberta a todos aqueles que escrevem sobre o cinema com um ponto de vista diferente, sejam filósofos, historiadores, escritores ou artistas. É assim que o Cahiers poderá recomeçar e ganhar novamente influência, e com os leitores sendo mais críticos e mais abertos.
Foi reeditado recentemente no Brasil o livro O que É Cinema?, compilação de artigos do crítico André Bazin. Para os jovens que não conhecem Bazin, de que forma você recomendaria seus textos?
Bazin depositava no cinema as maiores esperanças: ele tornava-se a arte do século, o equivalente ao que teriam sido a pintura na idade clássica, o teatro durante o iluminismo, o romance no século 19. É através do cinema, de seus olhos, que Bazin via o mundo. A câmera é a ferramenta que permite construir uma representação do mundo, ao mesmo tempo histórica, política, ideológica, mas igualmente estética, íntima, realista. É pelo cinema que o século 20 pode ver-se. O cinema ficou à altura desta formidável crença ? Sem dúvida, ele falhou um pouco, decepcionou um pouco as expectativas colocadas nele. Mas penso que o cinema foi bastante valente, como um bravo soldado do real. O cinema nos dá sempre um estado do mundo, e nisto ele é fiel ao que Bazin escrevia dele há mais de meio século. Veja, por exemplo, estes países que conhecem os grandes eventos desconcertantes da história recente: a queda do muro de Berlim, o fim do comunismo na Europa e os conflitos do Oriente Médio. Onde encontramos, em seguida, um cinema novo, vivo, jovem, contando estes fatos com suas armas e sua forma particular? Na Alemanha, na Romênia, ou ainda na Palestina, no Líbano, em Israel. Onde a história acontece, lá está o cinema. André Bazin teria gostado deste processo.
Quando o entrevistamos à época do lançamento do seu livro Cinefilia, você disse que trabalhava em projetos biográficos relacionados a Éric Rohmer e Jacques Rivette. Em que fase estão esses projetos?
A biografia de Rohmer foi lançada em janeiro último, escrita a partir de seus arquivos pessoais e de várias entrevistas realizadas na ocasião. Foram três belos anos de trabalho, levados em colaboração com o historiador do cinema e escritor Noël Herpe. Quanto a Rivette, esse será meu próximo livro, pelo menos eu espero...
Você já escreveu livros sobre Truffaut e Godard e é autor do roteiro do documentário sobre eles. Foi difícil sintetizar em um filme a importância destes ícones e as particularidades de suas trajetórias e personalidades?
A ideia, no documentário, era de voltar a ruffaut e Godard, mas de uma maneira diferente, com eles juntos, falando de sua amizade e de sua briga. Tudo começou daí, as fotos, os documentos, as entrevistas que falam da amizade e da ruptura deles. Penso que um arquivo, quer ele seja impresso ou sonoro, é uma fonte de emoção. E o trabalho de Deux de la Vague (lançado no Brasil como Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague) quer dizer isso: em todo arquivo existe uma potencialidade de sentido e de sensibilidade, e é a montagem e a interpretação que permitirão revelá-la ao público
Qual sua opinião sobre o cinema francês contemporâneo e para quais diretores o senhor chama a atenção?
A Nouvelle Vague queria manter juntos a escrita pessoal e a cultura em comum. De uma certa forma, é também isto que poderia caracterizar o cinema atual na França: que o íntimo encontre o popular, que se possa ver a experiência formal em uma sala de cinema comercial. E muitos diretores na França dividem esta convicção, o que torna sempre atual a mensagem da Nouvelle Vague. São artistas como Abdellatif Kechiche, Christophe Honoré, Nicolas Klotz, Isild Le Besco, Olivier Assayas, Mia Hansen-Löve, Céline Sciamma, Antony Cordier.
Toda a cadeia produtiva do cinema consolida seu processo de conversão digital. O fim da película deve se concretizar sem maiores traumas?
Há um movimento duplo, que pode parecer contraditório. As salas de cinema estão sendo revolucionados pelo digital. Devem estar todas equipadas para a difusão digital dos filmes, eles próprios trocando de suporte. Isto favorece massivamente a uniformização e a difusão de grandes filmes, todos iguais para um público sempre indiferenciado. Ao mesmo tempo, não é realmente verdade: o equipamento digital permite igualmente passar pequenos filmes mais experimentais. Os subsídios permitem às salas de cinema de arte, na França, equiparem-se, o que as torna mais fortes em relação aos grandes multiplex. Elas poderão resistir melhor com sua programação mais original, com seus debates, seus encontros, sua cinefilia própria. Na verdade, a cada vez que o cinema parece tornar-se mais massivo, mais uniformizado, ele torna-se também, em pequenas ilhas reduzidas e minoritárias, mais resistente.
O senhor tem contato com a produção cinematográfica brasileira recente? Algum filme ou diretor lhe chamou a atenção nos últimos anos?
Posso citar Julio Bressane, que não é mais um jovem nem um desconhecido, mas ainda é ignorado na França. Seria importante tornar mais conhecido seu trabalho. Recentemente, eu gostei muito de Les Bruits de Récife (O Som ao Redor), de Kleber Mendonça Filho.
Serviço
-Conferência de Antoine de Baecque: 8 de novembro, às 19h, na Sala Redenção (Campus Central da UFRGS). Entrada franca.
- Sessão de autógrafos do livro Cinefilia e bate-papo com Antoine de Baecque: 9 de novembro, às 19h na sala leste do Santander Cultural. Entrada franca.
- Mostra François Truffaut: em cartaz até 29 novembro na Sala Redenção (Campus Central da UFRGS). Projeção em DVD. Entrada franca.