
Exilado em Londres, Caetano Veloso deixara pronto seu amargo "álbum branco", cuja faixa de abertura era uma canção dedicada à irmã Irene. Nelson Motta, responsável pelas trilhas das novelas da TV Globo, que ouvira o disco antes de ser lançado, achou que ela "serviria muito bem" para ser o tema de Lúcia, uma das personagens de Véu de Noiva, de Janete Clair, cujas gravações logo começariam. Janete também gostou da música, que apareceria na voz de Elis Regina, e concordou em trocar o nome da personagem para Irene. Apresentada entre 1969 e 70, Véu de Noiva foi a primeira novela da Globo com assuntos e personagens contemporâneos brasileiros, com diálogos coloquiais, depois de vários melodramas ambientados em outras épocas e países, em sua maioria assinados pela cubana Glória Magadan.
Essa é uma das muitas histórias que perpassam as 512 páginas de Teletema - A História da Música Popular Através da Teledramaturgia Brasileira, de Guilherme Bryan e Vincent Villari, ambos paulistas. Trata-se do mais completo e articulado levantamento sobre a relação música-telenovelas, o que o insere na história da TV e da música no Brasil e, enfim, do próprio país, no período 1964-89. É um primeiro volume - o segundo, de 1990 a 2014, deve sair em dois anos. O título do livro remete também ao primeiro sucesso radiofônico oriundo das novelas, de novo Véu de Noiva: a canção romântica Teletema, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, cantada por Regininha.
O livro demorou 14 anos para ser concluído. Bryan e Villari estudaram Jornalismo na mesma faculdade e na mesma época, mas só se conheceram depois de formados, por intermédio de uma amiga em comum. Em 2000, Bryan estava escrevendo o livro Quem Tem um Sonho Não Dança - Cultura Jovem Brasileira nos Anos 80 e queria saber quais eram as músicas da novela Paraíso. A amiga lhe passou o e-mail de Villari, estudioso e colecionador de discos de trilhas sonoras de novelas. Já no primeiro encontro, Bryan propôs produzirem juntos um livro sobre o assunto. Ele fizera seu trabalho de mestrado sobre a história do videoclipe brasileiro. Villari já trabalhava na Globo desde 1995 - integrou a equipe de roteiristas de A Casa das Sete Mulheres (2003).
A telenovela é um fenômeno entranhado na vida brasileira. Na verdade, sua história começa antes da própria televisão - nas radionovelas, de onde vieram artistas como Salathiel Coelho, apresentado em Teletema como o primeiro criador de trilhas para as produções da TV Tupi, como O Direito de Nascer (1964). Em ordem cronológica, o livro repassa as mais de 200 novelas apresentadas durante os 25 anos de sua abrangência. Acompanhamos as criações dos primeiros autores, como Ivani Ribeiro e Teixeira Filho, e vamos observando a entrada em cena de Walther Negrão, Gilberto Braga, Manoel Carlos... São mais de 50 autores.
Da mesma forma, desfilam seus personagens e os atores que a eles deram vida, de Aracy Balabanian a Cláudia Raia. Com maior ou menor intensidade, cada um desses personagens ficou marcado por músicas que, em especial a partir de meados dos anos 1970, tornaram-se sucessos de execução no rádio. Os discos com as trilhas, invariavelmente divididos entre as canções nacionais e internacionais, chegaram a grandes vendagens. Vendo que ali estava uma verdadeira mina de ouro, a Globo criou em 1971 o selo Som Livre para lançar esses álbuns, que tinham artistas de várias gravadoras.
Os quatro capítulos do livro, com saborosos textos introdutórios resumindo histórias e registrando bastidores, trazem informações detalhadas sobre as trilhas completas e suas canções isoladamente, todas indissociáveis das tramas. No início, eram autores convidados, a exemplo de Nonato Buzar, Toquinho e Vinicius de Moraes, passando por Marcos e Paulo Sérgio Valle, Roberto Menescal e até Roberto e Erasmo Carlos. Depois, especialistas como Guto Graça Mello e Mariozinho Rocha passariam a cuidar disso, encomendando músicas para personagens específicos ou selecionando-as entre clássicos e novidades. Assim foram impulsionadas carreiras de compositores (como Sullivan e Massadas) e cantores (Djavan, por exemplo). Entre os temas emblemáticos dessa história, os autores destacam Rock and Roll Lullaby, de B.J. Thomas, que graças à novela Selva de Pedra (1982) fez mais sucesso no Brasil do que em qualquer outro país.
Curiosidades e revelações de Teletema
A melhor de todas
- Guilherme Bryan e Vincent Villari consideram Roque Santeiro (1985), de Dias Gomes, a melhor telenovela e a melhor trilha musical. Era a primeira vez que uma novela tinha só música brasileira. Roupa Nova, Sá & Guarabyra, Fafá de Belém, Ivan Lins e Elba Ramalho estão entre os intérpretes das canções do mundo de Sinhozinho Malta (Lima Duarte) e da Viúva Porcina (Regina Duarte).
Tom Jobim e os gaúchos
- A série O Tempo e o Vento (1985), de Doc Comparato, tinha trilha especialmente composta por Tom Jobim. Kleiton & Kledir cantaram uma das canções, Um Certo Capitão Rodrigo (letra de Ronaldo Bastos). Só duas músicas não eram de Tom: Minuano, com Renato Borghetti, e Querência - Boi Barroso, com o Conjunto Farroupilha.
A revolução Gabriela
- "Ali houve realmente uma mudança na forma de se fazer trilha", diz Guto Graça Mello, um dos 130 entrevistados para o livro, a respeito de Gabriela (1975), de Walter George Durst, estrelada por Sônia Braga. A trilha tinha três canções exclusivas de Caymmi, entre elas Modinha para Gabriela, grande sucesso de Gal Costa.
As campeãs de vendas
- Os discos com as canções das novelas eram invariavelmente os mais vendidos do país. Teletema traz a lista dos álbuns de novelas da Globo entre 1971 e 1989, com suas respectivas vendagens. As cinco campeãs são as trilhas internacionais de O Salvador da Pátria (1,7 milhão de cópias), Vale Tudo (1,4 milhão), O Outro, Roda de Fogo e Pai Herói (as três com 1,1 milhão). A trilha nacional de Roque Santeiro vendeu 950 mil.
Eu quero é disco music
- A trilha feita por Guto Graça Mello para Dancin Days (1978), de Gilberto Braga, tinha nada menos do que nove faixas disco, entre elas um medley de hits dos Bee Gees - Stayin Alive, Night Fever etc. A parte nacional tinha Rita Lee, Gal, Chico Buarque, Jorge Ben, Lady Zu e, obviamente, as Frenéticas.
Tropicalismo ao sul
- O gaúcho Sérgio Jockyman escreveu três novelas para a TV Tupi. Na Idade do Lobo (1972) tinha na trilha quatro músicas de Hermes Aquino e Laís Marques. Os autores do livro informam que esses dois eram "os maiores representantes do tropicalismo no sul do país", completando: "Sim, houve tropicalismo no sul do país".
Você sabia que...
...a primeira versão de Roque Santeiro, em 1975, estava pronta para ir ao ar, inclusive com chamadas, quando foi proibida pela censura na véspera da estreia?
...a última música gravada por Elis Regina foi feita especialmente para a novela Brilhante, a pedido do autor Gilberto Braga?
...Chico Xavier, após receber uma mensagem psicografada, pediu a Ivani Ribeiro que o tema romântico da novela espírita A Viagem fosse gravado em francês?
...Toquinho compôs sozinho o tema de abertura de O Bem-Amado e depois convenceu o distraído (e às vezes preguiçoso) Vinicius de Moraes de que a música era dos dois?
...Tom Jobim pediu a Julio Medaglia para fazer a trilha da minissérie Grande Sertão, Veredas, e ele recusou, achando que Tom não daria a força necessária?
...a novela Olhai os Lírios do Campo teve como principais temas três músicas de Lupicínio Rodrigues, mas que a canção de maior sucesso do disco foi Toada, do Boca Livre?
...o predomínio do rhythm & blues nas novelas da Globo no início dos anos 1970 deveu-se ao fato de a emissora usar fonogramas da Top Tape, que representava a gravadora negra Motown no Brasil?
...Dinheiro Vivo, de Mário Prata, foi a última novela apresentada até o fim pela TV Tupi, maior concorrente da Globo, que fecharia as portas em 1980?
Teletema - A História da Música Popular Através da Teledramaturgia Brasileira
De Guilherme Bryan e Vincent Villari. Dash Editora, 512 páginas, R$ 69 (em média).
*Jornalista e crítico musical
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