É apenas uma cena de Interestelar. Se fosse um trabalho acadêmico de final de ano, não seria mais do que nota de pé de página. Viagens espaciais podem causar angústia nos personagens - não quero nem pensar no que podem causar nos espectadores.
Lá a cenas tantas do filme, um personagem angustia-se no isolamento da nave, dentro do universo, mas longe do universo conhecido. Outro personagem, para consolá-lo, talvez até para evitar ataques histéricos desproporcionais à ação, empresta fones de ouvido dos quais saem ruídos da natureza, aquela coisa clássica de chip-chip brr brr shshshshsh.
Outros filmes, outros diretores, outros tempos, e o que sairia dos fones de ouvidos seria alguma música. Um Vivaldi. Um Mozart. O adagio de Albinoni. Ou algum Beethoven atemporal. Mas o que é atemporal numa ficção distópica?
Difícil que alguma música conhecida tivesse essa condição, pois logo vêm implicações sociais, cadeias de referências, marcadores de memória do ouvinte/espectador. Mais ainda: num futuro nem tão distante, mas já com a humanidade em extinção, sobraria música?
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E ainda mais: talvez a mensagem que Christopher Nolan queira passar seja "aqui só tem música do Hans Zimmer!". Assim, taca-lhe sons da natureza para que ninguém faça sombra ao compositor, nem um Beethoven hipotético.
A ideia não é má, garantir exclusividade para o autor dessa trilha sonora que parece ser o único ponto consensual de Interestelar. Vai bem longe o tempo em que Stanley Kubrick podia resgatar o Danúbio Azul de Strauss do baú da cafonice. Não é mais hora de fazer trilha sonora com salada de frutas de músicas.
E assim, algumas cenas mais tarde, os personagens voltam para a nave, meio combalidos e meio fora de tempo. Então os sons trovejantes do Imax silenciam e sobra apenas um piano, um pianinho modesto a preencher a vastidão do vácuo (e da tela) com uma melodia cambaleante e tristíssima. Que coragem! Reduzir a música ao mínimo para potencializar ao máximo o soco no estômago emocional do espectador.
Ah, com um compositor desses, que viajante angustiado precisaria de Mozart? Ou Vivaldi?
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Celso Loureiro Chaves: "não é mais hora de fazer trilha sonora com salada de frutas de músicas"
O colunista escreve quinzenalmente para o 2º Caderno
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